Senso Incomum

Por que não é vedado ao defensor ler alegações do MP no júri

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25 de abril de 2024, 8h00

1. Plenário do Júri — colocação do problema: a inovação legislativa no CPP

Há alguns anos foi feita uma alteração no CPP, visando a impedir que as partes usassem, como argumentos de autoridade, trechos de acórdãos ou decisões ocorridas no âmbito do mesmo processo sob julgamento em plenário.

Ficou assim:

“Art. 478. Durante os debates as partes não poderão, sob pena de nulidade, fazer referências:

I – à decisão de pronúncia, às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação ou à determinação do uso de algemas como argumento de autoridade que beneficiem ou prejudiquem o acusado.”

Vejamos: não podem ser utilizadas a decisão de pronúncia e decisões outras (posteriores à pronúncia). Também não se pode falar sobre uso de algemas.

Ocorreu um caso em Sergipe que mostra o exagero da leitura do artigo 478 e que vale aqui ser referido, até para iluminar outras situações correlatas. O STJ está por julgar o agravo interposto no REsp porque o TJ-SE não admitiu o recurso.

2. O caso concreto em que o MP e o juiz censuraram o advogado

Nas alegações finais (atenção: alegações não é decisão), o Ministério Público admitiu que o caso teria duas possíveis versões e estaria em dúvida sobre o caso: homicídio simples e homicídio qualificado e que, diante de tal dúvida, deveria ser o acusado submetido a julgamento pelo mais grave. O MP invocou o famoso in dubio pro societate — ilegal e inconstitucional, registre-se.

No dia do julgamento pelo tribunal popular, a defesa tentou reler esse trecho. Afinal, o MP dizia que tinha dúvidas! Contudo, foi impedido pelo MP em plenário, que disse que não seria possível ler as alegações finais do Parquet. Tal pedido foi acatado pelo magistrado e a defesa restou prejudicada. Isso restou registrado em detalhes na ata do julgamento.

Tudo muito claro, pois. A defesa alegou cerceamento e apelou da condenação. O TJ de Sergipe respondeu negativamente, dizendo que não foi provado o prejuízo e muito menos tinha razão a defesa na sua reclamação quanto ao artigo 478. Assentou o TJ que a interpretação do MP e do juiz estava correto: de fato, a defesa não poderia usar parte das alegações finais do MP.

3. A adequada hermenêutica do caso

Parece evidente que juiz e MP extrapolaram na interpretação do artigo 478 do CPP. O que não pode ser utilizado em plenário é decisão (ou decisões). No texto do dispositivo nada consta em relação às alegações finais do MP. A interpretação, porque trata de restrição a direitos, deve ser feita nos estritos limites fixados pelo legislador. Qualquer interpretação alargando o “tamanho semântico” do texto do inciso I do artigo 478 é analogia em malam partem. E isso é vedado.

Spacca

Tratou-se de um desvio de finalidade hermenêutico da lei. O telos do dispositivo foi conspurcado. O legislador estabeleceu proibições taxativas. Caso contrário, se a defesa não pode ler o conteúdo de alegações, também não poderá ser lida sequer a denúncia. Afinal, escancarada a interpretação extensiva, limites já não existirão. Tudo será proibido. Simples assim.

Parece ser um easy case. No máximo poderia ser um hard case. Mas o TJ-SE o transformou em um tragic case. Para o réu.

Aqui fizeram o contrário do exemplo de Recaséns Siches: se é proibido carregar cães na plataforma, é razoável entender que ursos ou quaisquer animais que possam representar perigo para os transeuntes estejam igualmente proibidos. No caso de Sergipe, na ânsia de proibir cães, o juiz proibiu, além do cão guia do cego, o pequeno Yorkshire de uma criança.

Desde Schleiermacher que se pretende estabelecer critérios para evitar mal-entendidos na interpretação. Pelo visto, ainda não conseguimos.

Quanto à alegação do TJ-SE de que a defesa precisaria provar o prejuízo, trata-se de exigir a prova do demônio. Como provar o prejuízo? Parece evidente que, se o réu foi condenado (e por um voto), o prejuízo é decorrência lógica. Trata-se de uma exigência inconstitucional, que viola o devido processo legal. As ordálias já foram superadas.

Na hermenêutica brasileira, até a literalidade [1] dá azo a voluntarismos.

 


[1] Para evitar mal-entendidos, sugiro a leitura do verbete Literalidade no meu Dicionário de Hermenêutica, 2ª ed. Ed. Casadodireito.

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