Opinião

A causa de pedir na prática jurídica brasileira

Autor

  • Kennedy Bispo

    é graduando da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e membro do Grupo de Pesquisa em Direito Constitucional e Hermenêutica (Gconst).

24 de abril de 2024, 16h17

Venho refletindo sobre a crise do formalismo e o seu impacto na produção da ciência jurídica, especialmente com relação às questões da dogmática processual. No passado, em alguma medida o Direito Processual prestigiou mais a forma do que a substância. Atualmente isso não mais acontece.

Isso não significa um completo abandono aos predicados mínimos de rigor para a satisfação de um devido processo legal, principalmente quando a forma tem uma repercussão prática e direta no exercício do direito ao contraditório, a ampla defesa e a segurança jurídica.

É o caso da causa de pedir.

Na atualidade, o artigo 330, § 1º, I, do CPC/2015, positivou como hipótese de inépcia da petição inicial quando inexistir o pedido ou a causa de pedir. Verificada a deficiência na peça de ingresso, atrai-se a aplicação do artigo 330, I c/c artigo 485, I do CPC para indeferir inicial.

Como adverte Tereza Arruda Alvim, esse indeferimento da petição inicial apenas pode acontecer no limiar do processo. Caso identificada a inépcia da petição inicial durante o curso do processo, após a feitura da citação e apresentação da contestação, esclarece ela, pode-se adotar a providência de extinção da ação pela ausência do pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo – a petição inicial válida [1]. Jamais, portanto, pode ocorrer a extinção por indeferimento da inicial no curso do processo.

A respeito da causa de pedir, a atual lei adjetiva adotou a teoria da substanciação, a qual sinteticamente impõe a demonstração do fundamento de fato (causa próxima) e de direito (causa remota) da ação. Alguns doutrinadores divergem sobre o que é a causa próxima e a remota. Não precisamos entrar nesse debate para as finalidades da reflexão aqui proposta.

Causa de pedir remota

Quando Nelson Nery Junior e Maria Rosa de Andrade Nery falam sobre a causa de pedir remota, explicam que “fundamento jurídico é a autorização e a base que o ordenamento dá ao autor para deduzir pretensão junto ao Poder Judiciário” [2].

Embora negligenciada na prática, essa questão não é mero academicismo, mas representa uma solução alcançada no plano teórico para a compreensão prática do objeto litigioso.

Através dela (a causa de pedir remota), percebe-se o objeto do litígio como uma afirmação jurídica, possibilitando, por exemplo, a identificação dos limites objetivos da coisa julgada (vg. artigo 502 do CPC), bem assim a ocorrência das várias prejudiciais de mérito (vg., artigo 319, VI, CPC).

Spacca

Para a doutrina de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, deve o autor apresentar os “fundamentos jurídicos do pedido, do fato jurídico, isso é, de como aqueles fatos marcados justificam o que o autor da peça pede – a razão da pretensão” [3].

Deveras, realizar a afirmação jurídica do pedido não se trata de citar dispositivos da lei substantiva, como lembra a ancestral máxima de que os juízes conhecem o direito. Não é disso que se fala. Pelo contrário, realizar a afirmação jurídica do pedido é articular o “fato ou série de fatos dentro de categoria ou figura jurídica com que se compõe o direito” [4] reclamado na ação.

Na prática jurídica brasileira, não raras as vezes, as partes se empenham em contar várias histórias na petição inicial, mas deixam de enquadrar os fatos dentro de categorias jurídicas – embora sejam generosas em citar dispositivos de leis –, evidenciando que, se isso fosse adequado, a capacidade postulatória nada significaria e o advogado se tornaria uma figura dispensável.

O juiz apenas que saber dos fatos”, diziam. Não sei dizer se os juízes somente leem os fatos… Até hoje há uma grande discussão teórica sobre como os juízes decidem. Isso significa que a causa de pedir remota, enquanto fundamento jurídico da ação, trata-se de questão de menor importância no processo? Jamais. É que o processo não serve ao juiz. Amanhã, quando uma mesma ação restar novamente proposta no Judiciário, quem saberá lhe dizer a litispendência ou a coisa julgada sem uma clara delimitação anterior da causa de pedir próxima e remota?

Por isso, tão certo quanto é ônus processual do requerido (parte ré/demandada) contestar integralmente todos os fatos articulados na petição inicial, sob pena de presunção de veracidade, como prescrito no artigo 307 do CPC/2015, também é ônus processual do requerente (parte autora/demandante) afirmar juridicamente o seu pedido, apresentando tempestivamente todo o contorno dos fatos, com a riqueza de detalhes necessária à correta compreensão do conflito, assim como todos os fundamentos jurídicos que apoiam a pretensão.

O pensamento de Candido Dinamarco explica isso com precisão ao dizer que “entre os ônus processuais, o primeiro e de maior peso é o ônus de afirmar, especificamente considerado nos termos do ônus de demandar. E como quem pede há de justificar o petitum alinhando uma causa petendi, só demanda adequadamente quem fundamenta de modo adequado. Daí a inépcia da petição inicial à qual falte, entre outros elementos essenciais, a causa de pedir deduzida de modo claro e com inteireza com relação aos fatos relevantes para a constituição do direito que alega[5].

Deficiência da causa de pedir remota

Gostaria de propor uma última exemplificação e reflexão.

Além da utilidade prática da causa de pedir remota na identificação da litispendência, coisa julgada, entre outras consequências “extraprocessuais”, digamos assim, tem uma outra questão digna de algumas palavras, relacionada com a própria entrega da prestação jurisdicional no processo em que existe uma petição inicial deficiente.

A sentença de mérito proferida em um processo em que a petição inicial contém deficiência na causa de pedir remota sempre será uma sentença extra petita. Isso porque ocorre julgamento extra petita não apenas quando inobservado o pedido formulado, mas também quando o deferimento do pedido apresentado se dá com base em fundamento não invocado como causa de pedir na petição inicial.

Além do entendimento dos professores, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica nesse sentido. Cito como exemplo os seguintes julgados: AgInt no AREsp 1.285.769/SP, ministro Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, DJe 13/8/2021; AgInt. EDcl. AREsp. 1.796.079/SP, ministro Marco Aurélio Bellizze, DJ. 21/2/2022; AgInt. no AREsp 1.666.740/SP, ministro Moura Ribeiro, 3ª Turma, julgamento em 21/8/2023, DJe. 23/8/2023.

A presente reflexão demonstra que a deficiência da causa de pedir remota não é algo que possa ser superado com meros argumentos em torno da primazia pela decisão de mérito, especialmente porque é a observância desses pressupostos mínimos de atenção às normas adjetivas que assegura o exercício do direito de defesa e a segurança jurídica.

Viola o direito de defesa a sentença que impõe condenação fundada na causa de pedir que não fora deduzido na petição inicial, pois sobre ela não se formou o contraditório, assim como viola a segurança jurídica o desenvolvimento de um processo com a petição inicial inepta em sua causa de pedir, pois ela não permitirá a futura identificação dos limites objetivos da coisa julgada – por exemplo.

Acrescento que, na minha ótica, deve ser satisfeito esse ônus antes da formação da relação jurídico-processual, pois uma vez contestada ação e identificada a deficiência da peça de ingresso, já não é possível falar em saneamento do vício, em razão do prejuízo ao contraditório e a ampla defesa, motivo pelo qual o processo deve ser extinto por ausência pressupostos de desenvolvimento válido e regular do processo – petição válida – (artigo 485, IV, CPC).

 


[1] ARRUDA ALVIM, Tereza. Nulidades do processo e da sentença. 10. ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019. p. 57.

[2] JÚNIOR, Nelson Nery; NERY, Maria Rosa de Andrade. Código de processo civil comentado. 20. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 851.

[3] MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. tomo IV: arts. 282 a 443. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 14.

[4] MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. tomo IV: arts. 282 a 443. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 14.

[5] DINAMARCO, Candido Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. tomo I. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 572.

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