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Decreto do governo federal sobre GCMs possui caráter meramente simbólico

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16 de janeiro de 2024, 19h44

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou, no fim do último mês de dezembro, um decreto que regulamenta trechos do Estatuto Geral das Guardas Municipais. O texto reforça que os guardas civis municipais (GCMs) podem efetuar prisões em flagrante, por exemplo.

Decreto reforça, entre outras coisas, que GCMs podem efetuar prisão em flagrante

No entanto, especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico apontam que, na prática, o decreto não traz qualquer novidade. A norma, na verdade, é simbólica: serve como manobra política e tentativa de conter certos efeitos da jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

Ao anunciar a publicação do decreto, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino — que assumirá uma cadeira no Supremo Tribunal Federal no próximo mês —, deixou claras as intenções do governo federal: “Guardas Municipais mais fortes e com mais segurança jurídica para atuarem na segurança pública”.

Chovendo no molhado
O artigo 2º do decreto diz que as Guardas Municipais podem fazer patrulhamento preventivo. Por sua vez, o artigo 5º prevê que esses órgãos também podem fazer prisão em flagrante; apresentar o preso e a notificação da ocorrência à polícia competente para apuração do delito; e contribuir para a preservação do local do crime, quando possível e sempre que necessário.

A criminalista Márcia Dinis lembra que o Estatuto das Guardas já estipula competências específicas dessas forças locais, tais como: prevenir, inibir e coibir infrações penais ou administrativas contra os bens, serviços e instalações municipais; colaborar com outros órgãos de segurança pública pela paz social; garantir o atendimento de emergências ou prestá-lo diretamente quando se deparar com elas; e, em caso de flagrante, encaminhar o autor da infração ao delegado de polícia e preservar o local do crime.

“Considerando as disposições do estatuto, o patrulhamento preventivo e a prisão em flagrante fazem parte das competências regulares das Guardas Municipais, de forma que o decreto não confere novas atribuições”, conclui a advogada.

O também criminalista Aury Lopes Jr., professor da PUC-RS, aponta que o decreto é muito mais simbólico do que efetivo: “Um golpe de cena, pois não cria nada e não muda nada”.

Segundo ele, o texto não promove avanços no tema dos guardas. “Persiste uma grande lacuna jurídica sobre qual o espaço de poder que eles possuem e quais as suas funções e os seus deveres.”

Lopes Jr. destaca que, conforme os artigos 301 e 302 do Código de Processo Penal, efetuar a prisão em flagrante é “um dever dos agentes públicos e uma faculdade de qualquer pessoa”. Ou seja, qualquer cidadão pode prender quem estiver em flagrante delito.

O advogado não vê na norma nada que torne as Guardas Municipais mais fortes ou lhes dê maior segurança jurídica: “O decreto apenas reafirma um poder já existente no CPP desde 1941”.

Decreto foi assinado pelo presidente Lula e pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, que está prestes a assumir vaga no STF

Já o trecho sobre preservação do local do crime é, segundo ele, “completamente genérico”, pois a ideia de contribuir “quando possível” é “vaga e imprecisa, além de subjetiva”. Na sua visão, o artigo deveria, no mínimo, “criar um dever legal de preservação do local do crime até a chegada dos peritos ou da autoridade com poder de polícia judiciária”.

Cálculo político
O defensor público Bruno Shimizu, membro da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e doutor em Direito Penal e Criminologia, concorda que o decreto “não tem qualquer efeito jurídico no que diz respeito às hipóteses em que a GCM está autorizada a realizar abordagens”, já que repete as previsões do CPP.

Ou seja, a norma não permite (e nem poderia, pois o tema é constitucional) que os guardas façam buscas pessoais ou revistas em pertences e veículos com base em alegação de “fundada suspeita”. Para isso, seria necessária a “ciência prévia acerca da prática de crime”.

Por outro lado, Shimizu diz que o decreto “parece ser uma sinalização política à categoria dos guardas”, com o objetivo de aproximá-los para apoiar o governo — “em contraposição às corporações policiais, que majoritariamente aderiram ao campo bolsonarista”.

Na visão do defensor, a “pulverização da atividade policial por corporações paramilitares municipais” é uma “política absolutamente equivocada de segurança pública”.

Ele ressalta que as Guardas Municipais não estão submetidas a um controle externo do Ministério Público e respondem apenas às suas corregedorias internas (não judiciais) e ouvidorias.

Para Shimizu, a principal preocupação é saber se Flávio Dino “continuará a defender esse modelo equivocado de segurança pública no STF”.

“O decreto não inova em nada, mas pode ser uma sinalização de que o ministro, no STF, seja uma força para alterar a jurisprudência consolidada do STJ sobre o tema.”

Contraponto ao STJ
Em setembro do ano passado, a 3ª Seção do STJ, sob a relatoria do ministro Rogerio Schietti Cruz, confirmou que a atividade das Guardas Municipais não é equiparada à das polícias.

Desde 2022, Schietti tem sido responsável por construir uma jurisprudência da corte no sentido de que as ações das GCMs para repressão e prevenção ao crime só podem ocorrer se estiverem relacionadas de forma direta à finalidade da corporação (proteção de bens, serviços e instalações do município).

Nos últimos anos, ministro Rogerio Schietti Cruz construiu jurisprudência no STJ sobre atuação das GCMs

Na maioria dos casos, isso significou a anulação de provas decorrentes de abordagens e buscas pessoais feitas por guardas em situações que não eram de flagrante.

Por serem autoridades públicas, os guardas municipais podem ter poder de polícia — um conceito do Direito Administrativo que envolve a possibilidade de restrição dos direitos dos cidadãos. O mesmo ocorre com um guarda de trânsito que apreende um carro.

O advogado Eduardo Pazinato, professor universitário e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), considera que “alguns ruídos de comunicação têm aparecido” no STJ, de forma mais direta, com relação à discussão sobre o poder de polícia das GCMs.

Segundo ele, Schietti tem proferido decisões, em situações específicas, que “podem conduzir a uma interpretação equivocada”, contrária à Constituição, ao Estatuto das Guardas e à Lei do Sistema Único de Segurança Pública (Susp).

“É claro que o processo de flagrância não autoriza a entrada em domicílio sem mandado judicial”, ressalta. “Se algum guarda municipal, na sua atuação ordinária, abusou dessa autoridade ou violou algum desses dispositivos, evidentemente a decisão do ministro Schietti sobre o caso concreto vai ser de rechaçar esse tipo de violação.”

Porém, de acordo com Pazinato, a jurisprudência arquitetada por Schietti acaba “convalidando interpretações equivocadas” de policiais militares e civis. Como exemplo, ele cita que delegados não vêm registrando flagrantes apresentados pelas GCMs.

Outra situação recorrente apontada pelo advogado é a prisão de guardas que portam arma de fogo. De acordo com ele, isso é “disciplinado para profissionais da segurança há mais de 15 anos no Brasil”, em “um regramento inclusive constitucional e reconhecido pelo STF”. O Supremo já decidiu que todos os guardas, mesmo de cidades pequenas, têm direito ao porte de arma de fogo.

Pazinato avalia que essas atitudes “concorrem para uma insegurança jurídica”. O decreto de Lula e Dino tem “efeitos bem mais simbólicos do que práticos” porque “vem no sentido de apoiar uma ambiência com maior segurança jurídica”.

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