Repensando as Drogas

Tinha medo, o tal João de Santo Cristo

Autor

  • Felipe Morais Barbosa

    é juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça do Estado de Goiás) graduado em Direito pela UFJF (Universidade de Juiz de Fora); pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro) mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa) pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados).

26 de abril de 2024, 10h16

 O João deste artigo existe. Apesar de “Santo Cristo” ter sido uma adaptação. Nosso João é, na verdade, “João Gabriel”. O nome Gabriel tem origem hebraica e é composto por duas palavras: “gever”, que significa “homem” ou “herói”, e “El”, que significa “Deus”. Portanto, o significado do nome Gabriel é “homem de Deus”. A etimologia me concedeu a licença poética do título.

Reprodução

Nosso João, contudo, não tem nada de “santo”. Talvez até o tenha, mas, nesta oportunidade, ater-nos-emos à qualificação de “santo” como “cidadão de bem”. Disso, ele não tem nada!

Nosso João é, muito provavelmente, um traficante de drogas e possui anotações em sua folha de antecedentes criminais. Um transgressor de normas penais incriminadoras.

João Gabriel foi abordado e preso pela Polícia Militar do estado de Goiás no ano de 2021, sob a suspeita de praticar a conduta tipificada no artigo 33 da Lei 11.343/2006 (tráfico de drogas). Diga-se de passagem, João é um, dentre milhares de presos em flagrante por tráfico de drogas pela polícia ostensiva em Goiânia.

A maioria delas possuí características assemelhadas: pretos, pobres, baixa escolaridade e moradores da periferia. São os nossos “severinos” para fazer alusão a outro João… o Cabral de Melo Neto.

A referência à Capital Verde é um dado desimportante na questão “drogas x abordagem pela Polícia Militar de pretos e pobres”. Poderia ter sido em qualquer outra capital:  São Paulo, Belo Horizonte, Recife, João Pessoa (no nosso sistema de justiça, talvez lá, João também não fosse considerado “pessoa” de direitos).

Existem vários “Joãos”, por aí! Principalmente, “Joãos Ninguéns”.

João Gabriel, após ser abordado e detido, na noite do dia 23 de julho, foi encaminhado à Central de Flagrantes e lavrado o auto de prisão em flagrante delito.

Nestes termos, o depoimento do policial condutor:

QUE faz a apresentação do(s) conduzido (S) JOAO GABRIEL (…), preso(s) em flagrante delito por infração, em tese, ao(à) Artigo 33 da lei 11.343/2006, por ter sido este(s) surpreendido(s) Transportando porção considerável de droga. Equipe de Rotam 10216 em Patrulhamento Tático especial pelo Setor Campinas em Goiânia visualizou um veículo Fiat Argo, de cor Cinza placa (…) com um indivíduo no banco de trás. Ao perceber a proximidade da equipe o passageiro demonstrou nervosismo e por isso foi realizada abordagem ao veículo que era conduzido pela pessoa de LEIDIANE (…), motorista do Aplicativo UBER, sendo o passageiro identificado como JOÃO GABRIEL (…). Durante a busca veicular foi encontrado no assoalho do banco traseiro uma sacola contendo várias porções de substância análoga ao crack.

O depoimento de outro Policial Militar, também presente na abordagem, ratificou as palavras de seu antecessor:

Declara que ao avistar um veículo que transitava pela Avenida Anhanguera, no Setor Campinas, o qual transportava um homem em atitude suspeita, já que o mesmo, ao perceber a aproximação da viatura, ficou desconcertado, resolveu abordá-lo. Assim que o veículo parou tomou conhecimento que a condutora do automóvel era motorista de aplicativo, a qual levava um passageiro. Em ato contínuo foi realizada uma busca no veículo e encontrado no assoalho do banco de trás uma sacola contendo uma peça de material petrificado que parecia se tratar de crack.

Ao que parece, os policiais estavam certos. O tirocínio, em tese, funcionou. Com João Gabriel fora encontrada “(uma) porção de material petrificado fragmentado em três partes de cor amarelada envolta em segmento plástico, com massa bruta de 0,520 kg”.

Informalmente, aos policiais militares, e formalmente, quando ouvido na Central de Flagrantes, João confessou a posse da droga. Ao que pese negar o dolo de mercancia, forneceu detalhes sobre a dinâmica na aquisição do entorpecente:

Declara que a droga que transportava no momento da abordagem policial seria utilizada para consumo próprio, a qual adquiriu em uma praça no Jardim Imperial, em Trindade no dia de hoje, de uma pessoa desconhecida, tendo pagado quatro mil reais pelo entorpecente. Nada mais disse nem lhe foi perguntado.

Convenhamos que João, que não tem nada de santo, deu uma de “João sem braço”. A quantidade de drogas e o valor de R$ 4 mil pagos, fogem a tese do “mero uso”. O próprio abordado afirmou que ganha R$ 1.200,00 por mês. Seriam necessários quatro meses de salário para adquirir a droga.

Lavrado o auto de prisão em flagrante pelo delegado responsável, os autos foram encaminhados ao Poder Judiciário. Em audiência de custódia, a prisão em flagrante de João fora homologada e convertida em prisão preventiva.

Aproximadamente um mês após o flagrante, em 20/8/2021, João fora denunciado pelo Ministério Público:

Segundo o apurado, no dia 23 de julho de 2021, por volta de 21:00h, policiais militares em patrulhamento visualizou um veículo Fiat Argo, de cor cinza, placa (…), com um indivíduo no banco de trás e decidiram realizar a abordagem do referido para averiguação
Ao ser procedida a busca veicular, apurou-se que o denunciado transportou, para fins de repasse a terceiros, uma sacola contendo em seu interior 01 (uma) porção de substância entorpecente petrificada, fragmentada em três partes, de cor amarela, na qual constatou-se conter Cocaína, com massa bruta de 520g (quinhentos e vinte gramas).
(…)
Ante o exposto, encontra-se o denunciado JOÃO GABRIEL OLIVEIRA SILVA incurso nas penas do artigo 33, caput, da Lei n. 11.343/06(…).

Retroalimentação

Em uma análise acrítica, um indivíduo portando uma significativa quantidade de crack/cocaína ficou nervoso ao avistar policiais militares. Os agentes da segurança, diante daquele comportamento “suspeito”, resolveram abordá-lo. A droga fora encontrada e ele detido. Homologado o flagrante, a prisão fora convertida em preventiva e o Ministério Público o denunciou por tráfico de drogas.

ConJur

É desta forma que um sistema de justiça racista se retroalimenta!

O fato de ter sido encontrada droga mascara o preconceito da atuação policial. O fato de João ter outras anotações em sua certidão de antecedentes, de igual modo.

A mesma crítica deve ser feita à polícia investigativa, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário. Nosso teto é de vidro, ou mantendo os trocadilhos do João, nossa casa é de barro. Formamos uma grande engrenagem de moer pretos e pobres.

Imperioso questionar a arbitrariedade dessa abordagem. Reconhecer que ela não advém de uma possível maestria de um tirocínio de policial. Tirocínio que conseguiria detectar um comportamento atípico de “nervosismo” no banco de trás de um veículo à noite!!!

A narrativa “abordagem do veículo que era conduzido”, a princípio, leva a crer que o veículo estaria em movimento. No entanto, ainda que estivesse parado, a situação causa interrogações. Parece que a justificativa da abordagem advém de um fato mais objetivo: existia um jovem negro no banco de trás de um veículo.

Nesse caso, João realmente estava praticando o delito previsto no artigo 33 da Lei nº 11.343/2006. A questão que se problematiza é quantos indivíduos pertencentes à mesma raça e/ou classe social não foram abordados de maneira injustificada, em desrespeito ao previsto no artigo 244 do CPP? [1] E quantas infrações criminais cometidas por pessoas que não se encaixam na estética de criminoso passaram ao largo das “caçadas” policiais?

Esses dados não vêm para o Poder Judiciário. Quanto mais periférico e vulnerável o indivíduo, menores são os seus conhecimentos sobre direitos e maior a descrença no Estado. Os “Joãos Ninguéns” não comunicam às instâncias de controle quando seus direitos são violados.

Há, inclusive, o medo da perseguição. Em 2017, uma pesquisa Datafolha [2] apontou que metade dos brasileiros tem medo de sofrer violência policial. Caso entendamos que “nervosismo”, por si só, é um autorizativo de abordagens, metade da população pode ser alvo de buscas pessoais. Na prática, sabemos qual metade seria.

Pessoas inocentes também apresentam comportamentos de excitação negativa perante a Polícia Militar. Notadamente se forem pertencentes a determinada classe social e de pele escura.

O famigerado tirocínio, não resiste aos números. Em 2019, mais de 15 milhões de abordagens foram feitas pela Polícia Militar de São Paulo. Apenas 0,8% resultaram em prisões em flagrante [3].

Não há tirocínio que resista às estatísticas. Devemos reconhecer que nosso subjetivismo nos leva injustiça. Abordagens devem ser oriundas de fatos objetivos, concretos, juridicamente justificáveis.

Já replicava outro João: “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.

O processo de João Gabriel fora arquivado. O Poder Judiciário não recebeu a denúncia. Na sentença ressaltou que: “sentar-se num banco de trás de um veículo não é crime, tampouco fato moralmente reprovável”.

Não havia justificativa para a abordagem. Aceitá-la, porque fora encontrada droga, é vulnerar grande parte da nossa população. Não é o sistema de justiça que desejamos.

Somos muitos “Joãos”.

_________________________

[1] Código de Processo Penal. Art. 244. A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

[2] DATAFOLHA. Disponível em: http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2017/07/03/b167d1a2f87d7e1364b08e99d0e5147c148da194.pdf>. Acesso em: 13 jun. 2022.

[3] https://iddd.org.br/iddd-vai-a-cidh-por-protocolo-com-criterios-claros-para-abordagem-policial-no-brasil/

Autores

  • é graduado em Direito pela Universidade de Juiz de Fora (UFJF), pós-graduado em Direito pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), mestre em Direito Constitucional pelo Instituto brasileiro de desenvolvimento e pesquisa (IDP), pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás e autor do livro Atitude Suspeita - a Seletividade na Atuação da Polícia Militar e Poder Judiciário no Combate ao Narcotráfico.

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