Embargos Culturais

O direito brasileiro e o realismo jurídico norte-americano

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de janeiro de 2024, 7h48

Uma retrospectiva do direito brasileiro ao longo de 2023 aponta para novos paradigmas, que já eram de algum modo anunciados. Marcadas por decisões em massa, inteligência artificial e por intensa intervenção judicial, em todo os temas, da política à economia, dos costumes ao controle do pensamento, essas novas fórmulas potencializam a força de quem o poder da caneta. O Judiciário torna-se o grande protagonista de políticas públicas.

O voluntarismo das decisões joga luzes sobre os donos das canetas pesadas e das togas anunciadoras da ordem. A magistratura ocupa os proscênios e todos acompanhamos qualquer movimento que indique o caminho que seguirão. Tornamo-nos realistas, muito tempo depois de experiência parecida, vivida pelos norte-americanos. Vale a pena lembrarmo-nos um pouco da inusitada experiência que viveram. Nós brasileiros vivemos à busca de lições.

Spacca

O realismo jurídico norte-americano levou ao limite a premissa de que juízes primeiramente decidem e depois engendram modelos de dedução lógica. Porque o pensamento seria instrumento para ajuste das condições de vida, a reflexão jurídica seria mecanismo para resolução de problemas concretos. Abandonaram a metafísica e os construídos românticos de direito natural, em favor do pragmatismo, da utilidade prática, da atuação fática [1].

O realismo jurídico norte-americano desenvolveu-se a partir de professores que lecionavam em Johns Hopkins, Columbia e Yale. Surgiu na academia, revolucionando tribunais e bancas de advocacia. Potencializou-se no período entre guerras, captou material conceitual no intervencionismo do governo Franklyn Delano Roosevelt, matizando o plano governamental, o New Deal, perdendo fôlego durante os anos mais problemáticos da luta contra o perigo vermelho, na década de 1950. Karl Llewellyn, Thurman Arnold e Felix Cohen estavam entre esses professores revolucionários.

Das salas de aula combatia-se o colapso do movimento progressista, que se enfraqueceu com a primeira guerra mundial. Demonstrava-se mal-estar para com as decisões da Suprema Corte, que invalidava regulamentação estadual e federal em matéria econômica, e que enfatizava a substancialidade do processo e os direitos adquiridos, em matéria contratual. O fim da primeira guerra anunciava uma guinada da jurisprudência norte-americana para o conservadorismo de direita.

O caso Lochner v. New York (198 U.S. 45), de 1905, com o famoso voto vencido de Oliver Wendell Holmes Jr., é emblemático de uma era que se pretendia esquecer e combater. Lei estadual havia proibido que se contratassem padeiros para que trabalhassem mais de sessenta horas semanais, ou mais de dez horas diárias. A lei do estado de Nova Iorque foi pensada a partir do poder de polícia, por meio do justificaria o intervencionismo, em nome da defesa de quem economicamente hipossuficiente, além de razões de saúde pública; é que não se poderia confiar alimento básico a trabalhador que atuasse em regime de horas excessivas.

Tomou-se a lei como abuso da intervenção do Estado, em relação ao direito de contratar, que sociedade liberal entendia como ilimitado. Questionou-se se lei estadual regulamentadora de horas de trabalho em padarias exerceria poder de polícia validamente implementado pelo Estado. Não se concebia direito do Estado interferir em matéria de direito de trabalho e no campo sagrado da liberdade contratual. A Suprema Corte enfatizou, na decisão, que a limitação das horas de trabalho em padaria não era alcance de poder de polícia.

A decisão em Lochner v. New York consubstanciava resposta firme às campanhas populares e aos movimentos socialistas que desde a década de 1890 defendiam legislação protetora do trabalho. Esses movimentos pregavam melhores salários, proteção contra condições insalubres de trabalho e se desenvolviam mediante a utilização de táticas que incluíam greves, lobbies, além de uma maior atuação sindical, protagonizada pela American Federation of Labor.

Por outro lado, Joseph Lochner era o proprietário de pequena padaria especializada em bolos e tortas, no estado de Nova Iorque. Porque contratou padeiros em regime que excedia o número de horas estipulado pela legislação estadual, foi multado primeiramente em cinquenta dólares, e numa segunda vez, dois anos depois, ao dobro dessa quantia. Nessa última oportunidade, Lochner levou a questão ao judiciário.

Perdeu em Nova York, porém uma bateria de advogados de Wall Street defendeu a posição de Lochner na Suprema Corte em Washington. Ironicamente, o advogado principal era Henry Weismann, que havia feito lobby pela lei limitadora de horas de trabalho em padarias, como defensor do sindicato, contra o qual agora lutava. Triunfou a doutrina da liberdade absoluta do contrato, em sua versão mais superlativa.

Reduziu-se o poder de polícia a posição de neutralidade absoluta.  A decisão em favor de Lochner contou com cinco votos, e insistiu-se na inconstitucionalidade de lei estadual que limitava a liberdade contratual (; cristalizou-se a doutrina do laissez-faire jurídico.

O voto vencido de Oliver Wendell Holmes Jr., anunciava o realismo jurídico e dava os contornos da jurisprudência sociológica norte-americana. Foi um voto é simples, direto, redigido na primeira pessoa, contestando a doutrina do liberalismo e do formalismo jurídicos, dando indícios de ataque ao uso da lógica e das proposições gerais pelo direito, o que era frequente em Oliver Wendell Holmes Jr. Para Holmes, o direito em geral e a 14ª. Emenda à constituição norte-americana em especial não teriam abraçado o ideário de Herbert Spencer, pensador inglês que incorporou o darwinismo às ciências sociais, numa série de ensaios que marcou o liberalismo vitoriano.

Além do que, para Holmes, a constituição não tinha como objetivo assumir determinada teoria econômica, seja paternalista que caracterize uma relação orgânica do cidadão com o Estado, seja a doutrina do laissez-faire. O voto traz uma das mais conhecidas passagens do magistrado norte-americano, que na parte conclusiva afirmou que proposições gerais não decidem casos concretos.

A disputa revela a intervenção do Judiciário em matéria de organização do trabalho, e as disputas recorrentes em torno da uberização no Brasil são casos concretamente semelhantes. As relações econômicas vivem impasses quase intransponíveis, em momentos ruptura, a exemplo do que presentemente vivemos. De algum modo, e de alguma forma, estamos nos tornando todos realistas. Essa, me parece a lembrança do ano jurídico de 2023.

 

[1] O direito constitucional norte-americano, especialmente sob o prisma da Suprema Corte foi entre nós estudado profundamente por João Carlos Souto, Suprema Corte dos Estados Unidos, principais decisões, Barueri: Gen/Atlas, 2021.

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