Uma retrospectiva do direito brasileiro ao longo de 2023 aponta para novos paradigmas, que já eram de algum modo anunciados. Marcadas por decisões em massa, inteligência artificial e por intensa intervenção judicial, em todo os temas, da política à economia, dos costumes ao controle do pensamento, essas novas fórmulas potencializam a força de quem o poder da caneta. O Judiciário torna-se o grande protagonista de políticas públicas.
O voluntarismo das decisões joga luzes sobre os donos das canetas pesadas e das togas anunciadoras da ordem. A magistratura ocupa os proscênios e todos acompanhamos qualquer movimento que indique o caminho que seguirão. Tornamo-nos realistas, muito tempo depois de experiência parecida, vivida pelos norte-americanos. Vale a pena lembrarmo-nos um pouco da inusitada experiência que viveram. Nós brasileiros vivemos à busca de lições.
O realismo jurídico norte-americano levou ao limite a premissa de que juízes primeiramente decidem e depois engendram modelos de dedução lógica. Porque o pensamento seria instrumento para ajuste das condições de vida, a reflexão jurídica seria mecanismo para resolução de problemas concretos. Abandonaram a metafísica e os construídos românticos de direito natural, em favor do pragmatismo, da utilidade prática, da atuação fática [1].
O realismo jurídico norte-americano desenvolveu-se a partir de professores que lecionavam em Johns Hopkins, Columbia e Yale. Surgiu na academia, revolucionando tribunais e bancas de advocacia. Potencializou-se no período entre guerras, captou material conceitual no intervencionismo do governo Franklyn Delano Roosevelt, matizando o plano governamental, o New Deal, perdendo fôlego durante os anos mais problemáticos da luta contra o perigo vermelho, na década de 1950. Karl Llewellyn, Thurman Arnold e Felix Cohen estavam entre esses professores revolucionários.
Das salas de aula combatia-se o colapso do movimento progressista, que se enfraqueceu com a primeira guerra mundial. Demonstrava-se mal-estar para com as decisões da Suprema Corte, que invalidava regulamentação estadual e federal em matéria econômica, e que enfatizava a substancialidade do processo e os direitos adquiridos, em matéria contratual. O fim da primeira guerra anunciava uma guinada da jurisprudência norte-americana para o conservadorismo de direita.
O caso Lochner v. New York (198 U.S. 45), de 1905, com o famoso voto vencido de Oliver Wendell Holmes Jr., é emblemático de uma era que se pretendia esquecer e combater. Lei estadual havia proibido que se contratassem padeiros para que trabalhassem mais de sessenta horas semanais, ou mais de dez horas diárias. A lei do estado de Nova Iorque foi pensada a partir do poder de polícia, por meio do justificaria o intervencionismo, em nome da defesa de quem economicamente hipossuficiente, além de razões de saúde pública; é que não se poderia confiar alimento básico a trabalhador que atuasse em regime de horas excessivas.
Tomou-se a lei como abuso da intervenção do Estado, em relação ao direito de contratar, que sociedade liberal entendia como ilimitado. Questionou-se se lei estadual regulamentadora de horas de trabalho em padarias exerceria poder de polícia validamente implementado pelo Estado. Não se concebia direito do Estado interferir em matéria de direito de trabalho e no campo sagrado da liberdade contratual. A Suprema Corte enfatizou, na decisão, que a limitação das horas de trabalho em padaria não era alcance de poder de polícia.
A decisão em Lochner v. New York consubstanciava resposta firme às campanhas populares e aos movimentos socialistas que desde a década de 1890 defendiam legislação protetora do trabalho. Esses movimentos pregavam melhores salários, proteção contra condições insalubres de trabalho e se desenvolviam mediante a utilização de táticas que incluíam greves, lobbies, além de uma maior atuação sindical, protagonizada pela American Federation of Labor.
Por outro lado, Joseph Lochner era o proprietário de pequena padaria especializada em bolos e tortas, no estado de Nova Iorque. Porque contratou padeiros em regime que excedia o número de horas estipulado pela legislação estadual, foi multado primeiramente em cinquenta dólares, e numa segunda vez, dois anos depois, ao dobro dessa quantia. Nessa última oportunidade, Lochner levou a questão ao judiciário.
Perdeu em Nova York, porém uma bateria de advogados de Wall Street defendeu a posição de Lochner na Suprema Corte em Washington. Ironicamente, o advogado principal era Henry Weismann, que havia feito lobby pela lei limitadora de horas de trabalho em padarias, como defensor do sindicato, contra o qual agora lutava. Triunfou a doutrina da liberdade absoluta do contrato, em sua versão mais superlativa.
Reduziu-se o poder de polícia a posição de neutralidade absoluta. A decisão em favor de Lochner contou com cinco votos, e insistiu-se na inconstitucionalidade de lei estadual que limitava a liberdade contratual (; cristalizou-se a doutrina do laissez-faire jurídico.
O voto vencido de Oliver Wendell Holmes Jr., anunciava o realismo jurídico e dava os contornos da jurisprudência sociológica norte-americana. Foi um voto é simples, direto, redigido na primeira pessoa, contestando a doutrina do liberalismo e do formalismo jurídicos, dando indícios de ataque ao uso da lógica e das proposições gerais pelo direito, o que era frequente em Oliver Wendell Holmes Jr. Para Holmes, o direito em geral e a 14ª. Emenda à constituição norte-americana em especial não teriam abraçado o ideário de Herbert Spencer, pensador inglês que incorporou o darwinismo às ciências sociais, numa série de ensaios que marcou o liberalismo vitoriano.Além do que, para Holmes, a constituição não tinha como objetivo assumir determinada teoria econômica, seja paternalista que caracterize uma relação orgânica do cidadão com o Estado, seja a doutrina do laissez-faire. O voto traz uma das mais conhecidas passagens do magistrado norte-americano, que na parte conclusiva afirmou que proposições gerais não decidem casos concretos.
A disputa revela a intervenção do Judiciário em matéria de organização do trabalho, e as disputas recorrentes em torno da uberização no Brasil são casos concretamente semelhantes. As relações econômicas vivem impasses quase intransponíveis, em momentos ruptura, a exemplo do que presentemente vivemos. De algum modo, e de alguma forma, estamos nos tornando todos realistas. Essa, me parece a lembrança do ano jurídico de 2023.
[1] O direito constitucional norte-americano, especialmente sob o prisma da Suprema Corte foi entre nós estudado profundamente por João Carlos Souto, Suprema Corte dos Estados Unidos, principais decisões, Barueri: Gen/Atlas, 2021.