Legado vivo

'Desrespeito aos precedentes cria vã ilusão e impede a pacificação social'

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7 de janeiro de 2024, 9h49

Prestes a se aposentar após 39 anos de magistratura, e quase 50 como operadora do Direito, a ministra Assusete Magalhães, do Superior Tribunal de Justiça, tem uma mensagem a deixar: é preciso respeitar a cultura dos precedentes, sob pena de oferecer ao cidadão uma vã esperança que, ao fim e ao cabo, só servirá para impedir a pacificação social buscada no Poder Judiciário.

Assusete Magalhães Spacca

Esse é um mantra que a magistrada, como integrante da Comissão Gestora de Precedentes da corte, vem entoando há nove anos. Sob a liderança do saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino, ela embarcou em uma missão de convencimento por meio do contato direto com servidores e magistrados das instâncias ordinárias, visando à valorização da jurisprudência que o STJ firma.

Aos que ainda não se convenceram, ela avisa: essa resistência não traz benefício para ninguém. “O que isso vai exigir é o processo chegar ao STJ, que vai, na primeira assentada, reformar a decisão. Com isso, cria-se uma vã ilusão para o jurisdicionado. Não há nada mais injusto do que duas pessoas que procuram o Poder Judiciário com a mesma postulação receberem respostas judiciais distintas no mesmo espaço de tempo e perante a mesma ordem jurídica. Como o jurisdicionado pode aceitar uma coisa dessas?”.

O resultado da campanha pela consolidação da cultura dos precedentes, segundo a ministra, é tão positivo que ela classifica essa atuação como um de seus dois maiores legados profissionais. O outro a sua trajetória mostra. Nascida em Cerro (MG), Assusete desafiou o destino que se impunha às mulheres do interior e prestou vestibular para a faculdade de Direito escondida da família. A ousadia e o forte desempenho em concursos públicos a levou a uma sucessão de cargos que culminou na chegada ao STJ, em 2012. Antes disso, ela foi a primeira, e até hoje única, mulher a exercer a corregedoria da Justiça Federal da 1ª Região e a presidência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, a ministra Assusete Magalhães repassou a carreira e as situações que a moldaram como magistrada, recordou como seus caminhos se cruzaram com os de futuros colegas de STJ e elencou os resultados alcançados por ela ao longo de sua trajetória. A magistrada vai se aposentar no próximo dia 15, três dias antes de completar 75 anos.

Leia a seguir a íntegra da entrevista:

ConJur — A senhora integrou a Comissão Gestora de Precedentes desde a sua criação, e o trabalho desse grupo levou a mudanças muito positivas no tribunal. Como isso começou?
Assusete Magalhães — Antes mesmo do CPC de 2015, o STJ estava preocupado com o volume de recursos que chegava a este tribunal. Em setembro de 2014, o STJ começou a desenvolver um trabalho de inteligência voltado à gestão desses precedentes. Naquela ocasião, já tínhamos a previsão dos recursos repetitivos, então foi criada uma comissão especial de ministros. Ela foi integrada pelo saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que a presidiu, representando a 2ª Seção, o ministro Rogério Schietti, representando a 3ª Seção, e por mim, representando a 1ª Seção. Desde então, o STJ vem trabalhando com os olhos voltados para a formação e a gestão de precedentes, incentivando, inclusive, os tribunais de segundo grau a assumir essa cultura. É preciso mudar o modo de ver o Poder Judiciário e o nosso sistema processual.

Essa comissão, então, começou um trabalho de convencimento dos tribunais e também dentro do próprio STJ, porque até então existia já o recurso repetitivo, criado em 2008, mas ainda era muito incipiente, andava pouco, era muito pouco utilizado. Foi aí que começamos a ter reuniões periódicas com todos os ministros de cada seção. E, antes da pandemia, nós visitamos os maiores tribunais do país exatamente para levar essa mensagem. A melhoria aqui no âmbito do STJ e do Poder Judiciário de modo geral dependia disso. Começamos a realizar muitos eventos e chamávamos a Brasília os desembargadores, os servidores que trabalhavam com admissibilidade de recursos especiais, para esse treinamento. E passamos a fazer o Encontro Nacional de Precedentes.

Certo é que esse trabalho trouxe resultados tão positivos que ele inspirou o CNJ a editar a Resolução 235/2016, determinando que todos os tribunais do Brasil, exceto o Supremo, deveriam criar uma comissão gestora de precedentes, tal como a nossa aqui, e deveriam criar também um Núcleo de Gerenciamento de Precedentes. A experiência daqui foi tão exitosa que ela se viu replicada em outros tribunais.

ConJur — É interessante que o convencimento tenha se destinado também aos servidores, não apenas aos magistrados, e hoje a resistência aos precedentes é menor. Os tribunais já estão afetando temas?
Assusete Magalhães — Tem melhorado um pouco, mas ainda falta. Hoje, mais de 70% dos recursos que são afetados e julgados nos repetitivos não decorrem de processos enviados pelos tribunais, mas do trabalho que é feito pela comissão. E qual é o trabalho? É identificação, com o uso da inteligência artificial, com o Sistema Athos, daqueles em que há matéria repetitiva ou um entendimento uniforme do STJ sobre o assunto. As informações assim disponibilizadas são encaminhadas ao presidente da Comissão Gestora de Precedentes, que, então, sugere ao relator a afetação. Isso tem aumentado de modo significativo a afetação e o julgamento de recursos repetitivos.

Uma outra estratégia que vem sendo adotada, e essa é só na 1ª Seção, é a realização de uma sessão mensal dedicada exclusivamente ao julgamento de recursos repetitivos. E criou-se recentemente um processo de imersão nos precedentes. Os magistrados e servidores que trabalham com gestão de precedentes vêm ao STJ e conhecem nossa estrutura. É um modo de incentivá-los a assimilar essa cultura de formação de precedentes.

Outra importante iniciativa da comissão foi a integração com outros projetos. Quero destacar um acordo de cooperação técnica que foi firmado em junho de 2020 com a Advocacia-Geral da União e teve resultados muito exitosos buscando a desjudicialização. Esse acordo conseguiu desjudicialiar 2,3 milhões de processos. Mais do que o STJ, isso beneficiou a sociedade. Na medida em que a AGU desiste de processos dessa natureza, porque nós julgamos os repetitivos aqui, o jurisdicionado tem a sua solução em um prazo mais curto.

ConJur — No fim das contas, o estabelecimento de uma cultura de precedentes mexe com o embate entre o livre convencimento motivado do juiz e a necessidade de uma jurisprudência íntegra e una. Como tem se resolvido esse dilema?
Assusete Magalhães — É preciso que haja uma mudança de cultura. É preciso que o Judiciário, em todas as suas instâncias, assimile essa cultura de formação de precedentes qualificados e procure implementá-la efetivamente, porque esse mesmo CPC que criou esse sistema de precedentes alargou a marcha processual e ampliou os prazos recursais, que passaram a ser computados em dias úteis. Ele ampliou o contraditório na fase recursal e passou a exigir impugnação. Se o Judiciário brasileiro não assimilar essa cultura, sem dúvida, haverá uma piora da situação.

Nós ainda temos magistrados, e são poucos, é verdade, mas ainda temos os que dizem: “Existe mesmo esse precedente qualificado, mas eu penso de modo diferente.” Isso não traz benefício para ninguém porque o que vai exigir é o processo chegar ao STJ, que vai, na primeira assentada, reformar a decisão. Com isso, cria-se uma vã ilusão para o jurisdicionado. Não há nada mais injusto do que duas pessoas que procuram o Poder Judiciário com a mesma postulação receberem respostas judiciais distintas no mesmo espaço de tempo e perante a mesma ordem jurídica. Como o jurisdicionado pode aceitar uma coisa dessas? A cultura dos precedentes, com a formação dos precedentes qualificados, de observância obrigatória, permite esse tratamento isonômico. Isso conduz a um Judiciário eficiente e traz pacificação social.

ConJur — A senhora está se aposentando após 39 anos de dedicação ao Poder Judiciário. Como essa história começou?
Assusete Magalhães — Eu nasci e me criei até o ensino médio em Cerro. Cerro é uma pequena cidade do interior de Minas, uma centenária e histórica cidade onde se cultivam as tradições, as artes e a leitura de um modo muito especial. Esse ambiente, aliado à geografia da cidade — ela se situa em um vale cercado pela Serra do Espinhaço —, conduziu-me ainda muito jovem a uma postura mais reflexiva. Sempre fui uma leitora voraz, e isso tudo me conduziu para a área de Ciências Humanas, o que acabou por me inclinar para o estudo do Direito. Eu sempre estudei em escola pública. No caminho, eu passava em frente ao fórum local e defronte tinha uma grande e linda praça. Eu me recordo bem de que me impressionava e me encantava com a verve oratória dos advogados do Tribunal do Júri, os advogados da defesa. Aquela verve oratória ecoava na praça e, quando eu passava, eu me encantava com isso. E penso que aí foi que surgiu o meu interesse pelo curso de Direito.

ConJur — Em uma das homenagens feitas por causa de sua aposentadoria, o ministro Mauro Campbell (também do STJ) contou que a senhora prestou vestibular escondida da família…
Assusete Magalhães — É verdade. Eu vivia naquela tradicional família mineira, onde o destino natural da mulher, ao terminar o ensino médio, era o casamento. Não se previa outro destino senão ser professora e se casar cedo ainda. Eu sempre li muitos jornais. O meu pai era comerciante, ele só lia jornal ao final do dia, então eu lia antes dele. Penso que aí foram se abrindo meus horizontes e eu tinha sonhos mais largos. Em função disso, eu estava passeando em Belo Horizonte no mês de janeiro e lá prestei vestibular para Direito sem ciência da minha mãe. A minha mãe tinha dez filhos quando ficou viúva, então imagine a responsabilidade dela. Sempre procurou ser muito rígida, especialmente na criação das mulheres, que eram sete. Eu tinha certeza de que, se pedisse permissão para ir morar em Belo Horizonte e estudar, eu não a teria, então fiz o vestibular. E era difícil. Fiz em 1969, foi o último ano em que as universidades tinham também prova oral. Fui aprovada e minha mãe teve ciência pelos jornais. Foi aí que eu tive de enfrentar uma resistência familiar para conseguir me mudar para Belo Horizonte para estudar. A solução foi: eu tinha um irmão que lá estudava Medicina, então eu mudei para lá para estudar Direito na UFMG.

Essa minha postura, esse meu comportamento, acabou sendo boa porque abriu espaços não só para mim, mas também para as minhas irmãs mais velhas. Todas elas também se mudaram para Belo Horizonte, lá se formaram. E também para outras moças, minhas contemporâneas, que também saíram e puderam estudar. Estudei Direito e, ao mesmo tempo, também estudei Letras. E em Belo Horizonte iniciei a minha vida profissional. Fui advogada inicialmente, depois assessora jurídica do Ministério do Trabalho, mediante concurso, fui procuradora do INSS e também procuradora da República.

ConJur — Como essas experiências contribuíram para a sua formação?
Assusete Magalhães — Eu sempre sonhei com a magistratura, mas eu queria amadurecer profissionalmente para enfrentar esse grande desafio. Foi uma experiência muito importante na minha vida e muito relevante para o exercício da magistratura federal, porque ali eu adquiri uma ampla experiência no trato da matéria previdenciária e assistencial. E hoje eu vejo como aquilo foi relevante, porque nos levantamentos últimos feitos pelo ‘Justiça em Números’ (relatório anual produzido pelo CNJ), dos cinco assuntos mais demandados na Justiça Federal, quatro dizem respeito a matéria previdenciária ou assistencial.

E os dois anos que passei na Procuradoria da República foram também de muita experiência. Foi antes da Constituição de 1988, em uma ocasião em que o procurador da República era responsável também pela representação judicial da União. Tive a oportunidade de trabalhar com grandes magistrados. Trabalhei com o ministro Carlos Mário Velloso, ele era juiz federal em Minas Gerais, e com o ministro Sebastião Augusto Reis, que é o pai do ministro Sebastião Reis Júnior (do STJ) — ele era juiz titular da vara que depois eu vim a ocupar. Então, quando eu ingressei na magistratura federal, eu me sentia segura e preparada.

ConJur — E como a senhora chegou à magistratura?
Assusete Magalhães — O período em que fiquei na Procuradoria foi o tempo em que eu fazia o concurso para a magistratura federal, que demorou dois anos. Foi o segundo concurso feito no Brasil para juiz federal. Na ocasião, a carreira era diferente do que é hoje. Hoje se ingressa como juiz geral substituto, depois ele é promovido a juiz federal titular. Naquela ocasião, o concurso era para juiz federal auxiliar. Ele se encarregava de prestar auxílio. Fui aprovada em primeiro lugar em Minas Gerais, mas não havia vaga. Eu tinha filhos muito pequenos, de quatro e dois anos, então eu preferi ficar, assumi em Belo Horizonte, mas quando eu percebi que ia surgir uma vaga de juiz titular, eu me transferi para o Rio de Janeiro. E por quê? Porque a lei dizia que, surgindo vaga de juiz titular, haveriam de concorrer todos os juízes titulares do Brasil e, se ninguém se interessasse, então concorreriam os juízes auxiliares. E, como Belo Horizonte era um local muito procurado, eu me titularizei no Rio de Janeiro para que pudesse, quando surgisse a vaga, concorrer (em BH).

Eu me titularizei na 18ª Vara, trabalhei lá por cerca de um ano. Quando surgiu a vaga em Minas, eu retornei e fui titular da 2ª Vara de Minas, que ocupei até que fui promovida por merecimento para o TRF da 1ª Região. Foi um período de muito desafio na minha vida. Eu sei que a dificuldade é muito grande, não só para mim, como para qualquer mulher, para conciliar a vida profissional e a vida familiar, especialmente naquela época, em que poucas mulheres ocupavam espaço mais restritos de poder. Contei com a parceria do meu marido, e também, posteriormente, com o apoio dos meus filhos mais crescidos para prosseguir nessa caminhada. Eu ia para o Rio de Janeiro na segunda-feira bem cedo, no primeiro voo, e voltava na noite de sexta-feira, ficava afastada da família. Penso que, como diz Fernando Pessoa, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena.”

ConJur — E depois disso?
Assusete Magalhães — Fui a primeira juíza federal em Belo Horizonte e a primeira a integrar o Tribunal Regional Eleitoral de Minas, em uma época de eleição municipal. Foi um dos maiores desafios da minha vida. Minas tem mais de 800 municípios, a eleição municipal é difícil porque é muito emocional, os adversários políticos travam uma guerra acirrada, às vezes violenta, é preciso dizer. Depois disso, eu trabalhei por dez anos na Justiça Federal e, em 19 de outubro de 93, fui promovida por merecimento para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Fui a terceira mulher a integrá-lo. Fui também a primeira corregedora e a primeira presidente do tribunal.

ConJur — E como a senhora chegou à presidência do TRF-1?
Assusete Magalhães — O acesso aos cargos diretivos de qualquer tribunal do Brasil se faz por antiguidade. Alguns se dissociaram disso, mas, como eu cheguei cedo ao tribunal, em pouco tempo eu estava em vias de ascender à presidência. No âmbito do TRF-1, eu jamais tive restrição na minha atuação como mulher. Não estou me elogiando, mas é preciso dizer que sempre trabalhei com muito comprometimento. Tudo isso, ao longo do tempo, seja você homem ou mulher, leva ao reconhecimento. Quando chegou a minha hora de disputar a presidência, eu não tive qualquer dificuldade. Tive o apoio irrestrito dos meus colegas, homens, mulheres, juízas e juízes federais, então foi uma questão de acesso natural.

ConJur — E como foi o seu período na presidência da corte?
Assusete Magalhães —
Eu implementei algumas inovações pioneiras no âmbito da Justiça. Naquela ocasião, ainda não era tão amplo o acesso à internet, então, para facilitar para os advogados, que, para protocolar uma petição no TRF-1, tinham de se deslocar para Brasília, ou então mandar alguém, eu implantei um projeto que se chamava Protocolo Postal. Bastava que o advogado procurasse uma agência dos Correios, onde ele morasse, e ali valia como protocolo. Aquela petição, protocolada naquele dia, cumpria o prazo. E também encaminhei ao Supremo Tribunal Federal o primeiro recurso extraordinário virtualmente. Além disso, inaugurei um sistema de vídeoconferência para treinamento, para evitar que servidores e juízes federais tivessem de se deslocar dessas regiões longínquas para se qualificar. E criei também a universidade corporativa, algo inédito no Judiciário Federal, para aperfeiçoamento e treinamento dos juízes. E criei ainda a primeira ouvidoria. Eu entendia que era importante que o tribunal tivesse um canal de escuta ativa do jurisdicionado. Foi um período de muito desafio e acho que essa minha carreira, até chegar ao Superior Tribunal de Justiça, foi produto de muito trabalho.

ConJur — A única mulher até hoje a presidir o TRF-1…
Assusete Magalhães — Infelizmente. A única presidente em um tribunal que hoje tem 34 anos. Procurei aproximar o Judiciário Federal da sociedade. Trabalhei muito na questão da conciliação. A ministra Ellen Gracie era, na mesma ocasião, a primeira presidente do Supremo Tribunal Federal, e ela lançou aquele programa Conciliar é Legal. Trabalhamos muito em parceria. Ela até escolheu a seção judiciária de Minas Gerais para lançar o programa. Na presidência, eu implementei projetos de conciliação na esfera dos Direitos Previdenciário e Assistencial. Foi naquela ocasião que as portas do INSS se abriram para um acordo com a Justiça Federal.

Outro assunto em que eu me empenhei muito foi incrementar o funcionamento dos Juizados Especiais Federais. A gente tinha uma carreta que adentrava pelo sertão, pelos locais mais distintos, mas tinha também Juizados Especiais Federais fluviais, em barcos, especialmente na Região Norte. Mais importante de tudo, elas levavam o oficial do registro civil, porque aí a Justiça Federal conseguia alcançar uma parcela da população brasileira invisível para o Estado. Eram pessoas que não existiam perante o Estado porque não tinham um documento sequer de identidade: nasciam, não se registravam; morriam e não se registrava o óbito. A gente percebeu através dessa atuação que é possível aproximar a Justiça Federal da sociedade brasileira.

Quando assumi na Justiça Federal, em 1984, ela existia apenas nas capitais do país. Em Minas Gerais, apenas em três cidades: Uberaba, Uberlândia e Juiz de Fora. Era considerada, então, uma Justiça elitista. A partir do Juizado Especial Federal, mudou o perfil da Justiça Federal, ela se aproximou da sociedade brasileira e isso hoje representa uma verdadeira mudança de paradigma. Ensejou que especialmente os mais vulneráveis tivessem a sua oportunidade de postular, independentemente de advogados, os seus direitos perante a Justiça.

ConJur — Sua história mostra como os caminhos dos magistrados muitas vezes se cruzam. A senhora citou que trabalhou com dois juízes que viriam a se tornar ministros. No TRF-1, o hoje ministro do STJ Reynaldo Soares da Fonseca foi juiz auxiliar durante seu período na Corregedoria e na presidência… Quem mais?
Assusete Magalhães — Quando eu me empossei como corregedora, eu podia escolher um juiz que pudesse ser o meu auxiliar na Corregedoria. Eu sempre brinco com ele (Reynaldo) que ele foi o anjo bom que Deus colocou na minha vida no momento certo. Inúmeros são os problemas que se apresentam a um corregedor, especialmente em uma região tão grande como a do TRF-1. Ele foi alguém que me auxiliou muitíssimo porque era como se fosse um vice-corregedor. Os problemas de menor magnitude, quando chegavam para mim, já estavam resolvidos. Eu fui alguém que saiu da Corregedoria ilesa. Geralmente o corregedor sai odiado pelos juízes, mas eu saí querida. Eu credito isso à atuação do então juiz Reynaldo Soares da Fonseca. Ele tem uma habilidade muito grande, é muito amigo dos juízes, sabe dizer o que precisa ser dito — e às vezes é preciso dizer coisas negativas. Ele trabalhou comigo dois anos na Corregedoria, depois eu o levei e ele ficou comigo dois anos na presidência. Depois disso, eu voltei para um gabinete que julgava processos criminais e ele trabalhou comigo mais um ano, até que eu vim promovida para o STJ. É um grande magistrado que esse tribunal ganhou, a sua trajetória até agora bem demonstra isso.

E também teve a ministra Eliana Calmon (atualmente aposentada). Ela foi uma grande inspiração. Trabalhei com ela por algum período no TRF-1. Ela foi a primeira mulher a chegar ao STJ e eu a tenho como um grande parâmetro de magistrada e de exemplo a seguir durante a minha vida de magistrada.

ConJur — Qual é o legado que a senhora deixa para o Judiciário brasileiro?
Assusete Magalhães — Penso que tenho dois legados. Um deles é esse trabalho de nove anos na Comissão Gestora de Precedentes. É uma comissão que trabalhou de maneira pioneira para a melhoria do Poder Judiciário no seu todo, não foi só para aliviar o tribunal. Claro que isso tudo repercutiu no trabalho do STJ, mas se voltou para a melhoria do Judiciário brasileiro no seu todo. Eu credito isso tudo ao ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que capitaneou a comissão. Ele era uma pessoa visionária, uma figura além do seu tempo. Ele ainda dizia que, na época, mandou um ofício ao presidente do tribunal, então o ministro Francisco Falcão, mas que nem sabia exatamente o que a gente iria fazer na comissão. Foi com o tempo que a gente foi caminhando e vendo o que precisava enfrentar. É um legado diferenciado que eu tenho, posso deixar esse trabalho de melhoria do Poder Judiciário nacional no seu todo.

ConJur — E o outro legado?
Assusete Magalhães — O outro legado que eu posso deixar é que fui pioneira na atuação feminina em vários tribunais, em uma ocasião em que o acesso à mulher, especialmente em espaços mais restritos de poder, ainda era muito difícil. Minha trajetória de vida serve de inspiração, eu tenho recebido testemunhos nesse sentido. Foi uma época difícil, conciliar a vida profissional e a familiar, e graças a Deus eu consegui. Tenho uma família estruturada, sou casada há 47 anos, tenho três filhos. O que eu espero é que essa minha história de vida, que não foi fácil, sirva de inspiração para que as magistradas brasileiras, as mulheres brasileiras de modo geral, procurem ampliar essa participação feminina em espaços de exercício de poder, seja no Judiciário, seja fora dele. E que, juntamente com os homens, trabalhem na construção coletiva de uma sociedade mais igualitária, demonstrando que a Justiça, na sua cúpula, também pode ser exercida pelas mulheres, tal como a sua deusa Temis, que é representada por uma mulher.

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