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Acordos de leniência do MPF continuam sem critérios para cálculo dos valores

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21 de fevereiro de 2024, 14h34

Quase dez anos após o Ministério Público Federal começar a firmar acordos de leniência com empresas acusadas de corrupção, o órgão ainda não segue parâmetros objetivos para calcular os valores estipulados nesses pactos. A falta de critérios leva as empresas — receosas com a possibilidade de responsabilização penal — a aceitar números exagerados e arbitrários.

Critérios para cálculo dos acordos são estipulados pelo próprio MP

Consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, advogados com experiência em negociações de acordos de leniência, e que atuaram diretamente em pactos com o MPF e a “lava jato” nos últimos anos, defendem a adoção de critérios mais precisos, justamente para evitar abusos.

É verdade que fórmulas para calcular os valores desses acordos já existem. A Controladoria-Geral da União (CGU), que centraliza as leniências na administração pública federal, segue os padrões do Decreto 11.129/2022, que regulamenta a Lei Anticorrupção (LAC), além de uma portaria conjunta com a Advocacia-Geral da União, de 2019.

Esses parâmetros, porém, não são seguidos pelo MPF. Apesar de avanços recentes, os critérios usados pelo Ministério Público em geral não são necessariamente alinhados aos da lei e do decreto.

No auge da “lava jato”, as penalidades e os valores eram atribuídos pelos procuradores da República sem qualquer critério objetivo. Muitas vezes, os números eram estipulados com base no que seria melhor aceito pela opinião pública.

Cálculo preciso
A CGU esclareceu à ConJur que, junto com a AGU, possui “uma metodologia padronizada e uniforme para o endereçamento e cálculo das rubricas que integram um acordo de leniência”, baseada no decreto e na portaria.

Os acordos de leniência podem estabelecer multas, ressarcimento de danos e devolução da vantagem indevida obtida (propina).

A base de cálculo da multa é o faturamento bruto da empresa no exercício (ano) anterior ao da instauração do procedimento administrativo de responsabilização (PAR), de acordo com as regras do artigo 20 do decreto.

No caso da multa, é calculada uma alíquota, definida conforme as circunstâncias agravantes e atenuantes previstas nos artigos 22 e 23 do decreto.

Entre as agravantes estão as situações de reincidência, interrupção no fornecimento de serviço público e tolerância ou ciência de pessoas do corpo diretivo ou gerencial da empresa.

Já as atenuantes envolvem, por exemplo, casos de infração não consumada, devolução e ressarcimento espontâneos, colaboração com a investigação e admissão voluntária da responsabilidade objetiva.

A CGU possui um manual de cálculo da multa da LAC e uma tabela sugestiva de escalonamento das agravantes e atenuantes, “ambos com o propósito de permitir previsibilidade e uniformidade nos critérios de sancionamento”. Há, ainda, uma calculadora online da multa de um PAR, disponível para qualquer cidadão.

A devolução da vantagem indevida é calculada com base em alguma das metodologias especificadas no §1º do artigo 26 do decreto, que levam em conta diferentes valores.

“Conforme o caso concreto, a CGU avalia qual foi o objetivo pretendido pela pessoa jurídica com o cometimento do ilícito, a fim de se verificar qual das metodologias acima melhor mensura o ganho econômico obtido com a infração, que deverá ser perdido ou restituído aos cofres públicos”, explicou o órgão.

Interpretação própria
No entanto, o histórico da “lava jato” e do MPF é de firmar acordos de leniência diretamente com as empresas, tentando sempre tirar a CGU do assunto. Como as acusações também envolviam membros do governo federal e parlamentares, os procuradores temiam que a CGU tentasse aliviar as sanções.

Muitas empresas fizeram leniências com a CGU mesmo após os acordos com o MPF. Assim, mesmo que o órgão do governo federal aplicasse parâmetros mais objetivos, as negociações já partiam de valores pactuados anteriormente sem critérios — e que, muitas vezes, eram apenas referendados.

Nesta quarta-feira (21/2), o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou uma instrução normativa que garante sua participação na definição dos cálculos dos acordos firmados com a CGU. O texto prevê, por exemplo, que o TCU informe à CGU se os valores atendem aos seus critérios para apuração do dano ao erário e se são suficientes para o ressarcimento.

Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), explica que “o contexto da regulamentação dos acordos de leniência tem a ver com a administração pública, especificamente a CGU e as controladorias de estados e municípios”.

Acordo aperto de mãos

MP tem histórico de “torcer o braço” e superestimar valores

Segundo ele, o MP “não se vê como destinatário direto” da LAC. Por isso, não a aplica. A ideia enraizada é de que, por ter a competência para a persecução penal (o combate a crimes), o órgão também tem a competência para responsabilização administrativa das empresas por corrupção. Ou seja, os membros do MP se consideram “o centro desse sistema anticorrupção”.

Com isso, o MP não segue os critérios para reparação de danos, multa e sanções relativas à responsabilização administrativa e cível. Assim, as regras da LAC e os parâmetros do decreto são ignorados.

Para contornar a ausência completa de critérios, os MPs estaduais começaram a estabelecer regras próprias. “Alguns se inspiram na LAC e nos critérios tanto da lei quanto do decreto, sobretudo na questão da multa”, indica Justino. “Outros não”.

Questionado pela ConJur quanto aos critérios para o cálculo dos valores dos acordos de leniência, o MPF não se manifestou.

Gerações
De acordo com o professor, existem duas gerações de acordos de leniência firmados com o MP. A primeira engloba aqueles da época da “lava jato” e outras autodenominadas forças-tarefas.

Essa geração não adotava quaisquer critérios para cálculo das multas e da reparação ou para estimativa da vantagem indevida obtida. Justino afirma que, em certos casos, “os danos foram superestimados”.

Segundo ele, os acordos firmados com a CGU sempre tiveram critérios. Além dessa diferença essencial, o MP se pauta no que ele chama de arm twisting — o efeito de “torcer o braço”.

A estratégia é ameaçar ajuizar uma ação criminal caso a empresa não assine um acordo de leniência com o MP. “Tem sempre essa essa espada nas costas”, aponta Justino. “A negociação nunca é uma negociação propriamente dita.”

Isso foi ainda pior quando a opinião pública esteve ao lado do MP e da “lava jato”. Nesses acordos, os procuradores forçaram multas e reparações que “nem sempre foram proporcionais e razoáveis”.

Já a segunda geração é a dos acordos de leniência mais recentes, com alguma regulamentação — que é própria do MP e não necessariamente segue os parâmetros da LAC.

Na avaliação de Justino, a segunda geração traz “um campo um pouco melhor”, mas ainda há diversos regramentos e parâmetros sem critérios padronizados.

Importância do cálculo
O advogado Igor Sant’Anna Tamasauskas, especialista em acordos de leniência, compara a padronização dos cálculos a uma receita de bolo:

“A ideia é que qualquer um que tenha essa receita consiga chegar a um bolo. Pode ser um pouco mais doce, um pouco menos doce, mas vai ter mais ou menos a mesma composição.”

De acordo com ele, um padrão objetivo permite que a empresa saiba as consequências de suas ações e o que será fixado ao longo da negociação.

Segundo Tamasauskas, um cálculo definido evita excessos na fixação da multa, já que o crime de corrupção “gera um componente moral muito grande, sobretudo na autoridade que está aplicando a lei”. É preciso cuidado “para que esse componente moral não contamine” a autoridade no cálculo.

O advogado Sebastião Tojal — o primeiro a participar de um acordo de leniência na “lava jato” —, também professor da USP, explica que “a segurança jurídica vem da crença de que todos estarão lendo da mesma forma o texto normativo”.

Até hoje, Tojal lida com leniências perante o MP, a CGU e a AGU. Ele reconhece que houve “algum avanço” quanto às normas, mas defende fórmulas mais bem definidas para todos os acordos, que garantam segurança jurídica para as empresas e para o Estado.

Em seus acordos de leniência, CGU segue critérios do decreto regulamentor da LAC

“Se não encontrarmos essa padronização que traga segurança jurídica para as partes envolvidas, é o próprio instituto da leniência que irá falir.”

Para ele, há o risco de que os acordos deixem de cumprir seu papel — “especialmente levando-se em conta que eles foram responsáveis por levantar recursos em um patamar muito superior ao histórico das ações indenizatórias, ações de improbidade e assim por diante”.

Melhorando o cálculo
Uma das regras que, na visão de Tojal, precisam ser melhor definidas é a impossibilidade de acumulação da multa da LAC com a multa da Lei de Improbidade Administrativa (LIA).

Da mesma forma, ele entende que a multa da LAC não pode ser acumulada com a do sistema de proteção à concorrência. “Fraude à licitação e cartel são expressões do mesmo fato econômico”, explica.

Outro ponto de melhoria é o parâmetro para devolução da vantagem indevida. O §1º do artigo 26 do decreto de 2022 traz três metodologias para estimar esse valor.

Pela primeira, é usado o valor total da receita obtida no contrato administrativo e seus aditivos, com desconto dos custos ilícitos comprovadamente atribuíveis ao objeto contratado. A segunda se baseia no valor total de despesas ou custos evitados e que poderiam ser atribuídos à empresa caso a infração não tivesse sido cometida. Já a terceira utiliza o valor do lucro adicional obtido com a ação ou omissão do poder público que não ocorreria sem a prática da infração.

Para o advogado, “pretender devolver todo o lucro auferido em uma determinada obra cujo contrato trouxe algo ilícito é absolutamente irreal, porque, de qualquer modo, no mais das vezes, a obra foi feita”.

Na opinião de Tojal, não deveria se buscar a devolução do lucro integral, mas o aumento do lucro que seria obtido normalmente se não houvesse uma irregularidade.

Segundo ele, as regras precisam esclarecer “o que significa a devolução de lucro na hipótese de uma obra decorrente de um contrato que tenha sido maculado”.

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