Ambiente Jurídico

Desapropriação como instrumento de proteção do patrimônio cultural brasileiro

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

17 de fevereiro de 2024, 8h00

Segundo o doutrinador De Plácido e Silva, a palavra desapropriação deriva do verbo desapropriar (tirar a propriedade de alguém sobre certa coisa) e é utilizada, na terminologia jurídica, para indicar o ato, emanado do poder público, em virtude do qual declara desafetado, ou resolvido, o domínio particular ou privado sobre o imóvel, a fim de que, a seguir, por uma cessão compulsória, o senhor dele o transfira para o domínio público [1].

No texto constitucional vigente, conquanto a propriedade seja considerada um direito fundamental, ela não ostenta  natureza absoluta.

Com efeito, assim dispõe a Constituição da República:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

Para o professor José Cretella Júnior, um dos maiores especialistas no tema:

Em sentido genérico, desapropriação é o procedimento complexo de direito público, pelo qual a Administração, fundamentada na necessidade pública, na utilidade pública ou no interesse social, obriga o titular de bem, móvel ou imóvel, a desfazer-se desse bem, mediante justa indenização para o proprietário.
A desapropriação principia pelo decreto expropriatório, veículo da declaração expropriatória, editado pelo Chefe do Executivo [2].

A potencialidade da utilização do instituto da desapropriação como instrumento de proteção do patrimônio cultural brasileiro tem reconhecimento em nível constitucional, considerando que o art. 216, § 1º, da Constituição da República,  prevê que:

“O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.”

Refinando a previsão constitucional,  o Decreto-Lei 3.365/41, no artigo 5º, k e l,  estabelece  que são considerados casos de utilidade pública,  justificadores da aplicação do instrumento da desapropriação, entre outros:

  • a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza;

  • a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens moveis de valor histórico ou artístico;

A primeira hipótese trata especificamente de bens imóveis dotados de valor cultural (monumentos históricos e artísticos)  ou natural (locais particularmente dotados pela natureza), considerados individualmente (um sobrado colonial, v.g.) ou em conjunto (um grupo de edificações históricas com características comuns, v.g.).

Spacca

A previsão resguarda, também, a possibilidade de utilização da desapropriação para manter ou realçar os aspectos essenciais de bens culturais, o que possibilita, por exemplo, o uso do instituto para a aquisição de determinado imóvel, sem valor cultural, que prejudique a ambiência ou a vizinhança de outro bem culturalmente importante, com o intuito de demolir aquele e realçar a visibilidade do imóvel merecedor de proteção.

Sobre as paisagens e locais dotados pela natureza, leciona José Cretella Júnior [3]:

Há recantos favorecidos pela natureza e que, por isso merecem especial proteção do Estado, que os defende contra demolições, trepidação de máquinas e veículos, corte de árvores, escavações e retirada de areia e terra. Para isso, o poder público expropriante desapropria paisagens e locais particularmente dotados pela natureza, integrando-os no patrimônio do estado e, assim, exercendo de modo mais efetivo a tutela sobre tais bens, de outro modo mais difícil.

É de se destacar que a desapropriação poderá abranger a área contígua necessária ao desenvolvimento da obra a que se destina, e as zonas que se valorizarem extraordinariamente, em consequência da realização do serviço. Em qualquer caso, a declaração de utilidade pública deverá compreendê-las, mencionando-se quais as indispensáveis à continuação da obra e as que se destinam à revenda (artigo 4º do Decreto-Lei 3.365/41).

No que tange à segunda hipótese de desapropriação envolvendo bens de valor cultural, ela versa especificamente sobre bens móveis, acerca dos quais leciona José Cretella Júnior [4]:

Arquivos e documentos históricos
Arquivos organizados, catálogos, documentos esparsos, livros, cartas, diplomas, autógrafos, edições raras, armas, brasões, enfim, qualquer documento ou monumento que se revista de valor para a História da Pátria poderá ser desapropriado pelo Estado que, assim, evita a perda desses bens, sua deterioração ou extravio para o Exterior ou para o interior do país, caindo nas mãos de outros particulares.

Móveis de valor histórico
O valor histórico de um móvel coloca-o em posição especial diante do poder público, que tem o maior interesse em resguardá-lo. O móvel pode ligar-se à História da União, dos Estados, dos Municípios, do Distrito Federal ou territórios. No primeiro caso, a União é o sujeito expropriante competente para agir em todo o país, editando a declaração expropriatória a respeito de coisa que se encontre em qualquer ponto do território. Os Estados desapropriam na órbita estadual, os Municípios na órbita municipal.

Por acordo recíproco, qualquer pessoa de direito público interno pode desapropriar bens móveis de valor histórico, que tenham interesse a pessoa expropriante…

Móveis de valor artístico
O valor artístico de objeto móvel coloca-o também em posição singular diante do poder público, que tem o maior interesse em resguardá-lo. O patrimônio artístico poderá ser desapropriado pelo Estado que, desse modo, evita a perda do bem, sua deterioração ou extravio.

A hipótese ocorre nos casos de quadros, esculturas, obras de artesanato, não só de artistas do passado, como também de nossos dias.

Em assomo às hipóteses acima mencionada, a Lei 3.924/61, que trata da preservação do patrimônio arqueológico brasileiro, dispõe em seu artigo 15 que em casos especiais e em face do significado arqueológico excepcional das jazidas, poderá ser promovida a desapropriação do imóvel onde se encontrem os vestígios, ou parte dele, por utilidade pública, com fundamento nos dispositivos do Decreto-Lei 3.365/41.

Ademais, outra hipótese de desapropriação está prevista no artigo 19, § 1º do Decreto-Lei 25/37, sendo o ato extremo possível quando o proprietário da coisa tombada, que não dispuser de recursos para proceder às obras de conservação e reparação do bem, comunicar a necessidade tais serviços ao órgão tombador. Em tal caso o órgão responsável mandará executar as obras, às expensas dos cofres públicos, devendo ser iniciadas dentro do prazo de seis meses, ou providenciará para que seja feita a desapropriação do bem cultural tombado.

Também chamada desapropriação-sanção, a medida apresenta-se como obrigação alternativa do poder público a fim de garantir a permanência do regime especial de proteção pelo tombamento.

Em termos procedimentais a efetivação da desapropriação segue o seguinte rito, em síntese:

  1. A declaração de utilidade pública far-se-á por decreto do Presidente da República, Governador, Interventor ou Prefeito.
  2. Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas do expropriante ou seus representantes autorizados a ingressar nas áreas compreendidas na declaração, inclusive para realizar inspeções e levantamentos de campo, podendo recorrer, em caso de resistência, ao auxílio de força policial.
  3. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará.
  4. O poder público deverá notificar o proprietário e apresentar-lhe oferta de indenização
  5. Aceita a oferta e realizado o pagamento, será lavrado acordo, o qual será título hábil para a transcrição no registro de imóveis.
  6. Rejeitada a oferta, ou transcorrido o prazo sem manifestação, o poder público formalizará o processo judicial de desapropriação.
  7. Se o expropriante alegar urgência e depositar quantia arbitrada, o juiz mandará imití-lo provisoriamente na posse dos bens;
  8. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.
  9. O juiz indicará na sentença os fatos que motivaram o seu convencimento e deverá atender, especialmente, à estimação dos bens para efeitos fiscais; ao preço de aquisição e interesse que deles aufere o proprietário; à sua situação, estado de conservação e segurança; ao valor venal dos da mesma espécie, nos últimos cinco anos, e à valorização ou depreciação de área remanescente, pertencente ao réu.
  10. Efetuado o pagamento ou a consignação, expedir-se-á, em favor do expropriante, mandado de imissão de posse, valendo a sentença como título hábil para a transcrição no registro de imóveis.

É de se destacar que na fase judicial da desapropriação de bens de valor cultural mostra-se imprescindível a intervenção do Ministério Público no feito, na condição de custos iuris,  em razão da presença de evidente interesse público na lide, hipótese expressamente prevista no artigo 178, I, do Novo Código de Processo Civil [5], sob pena de nulidade.

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[1] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 18. Ed.  Rio de Janeiro: Forense. 2001. p. 256.

[2] CRETELLA JÚNIOR, José.  Tratado Geral da Desapropriação. Fase Administrativa da Desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 11.

[3] CRETELLA JÚNIOR, José.  Tratado Geral da Desapropriação. Fase Administrativa da Desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 227.

[4] CRETELLA JÚNIOR, José.  Tratado Geral da Desapropriação. Fase Administrativa da Desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 227-228.

[5] Existentes indícios de que o bem imóvel objeto de Ação de Desapropriação possui valor histórico-cultural, além de salvaguardado como Unidade de Proteção Integral, necessária oitiva prévia dos órgãos competentes, sob pena de degradação irreversível da área.- A existência de interesses à proteção ao patrimônio histórico-cultural e ao meio ambiente diretamente ligados à desapropriação justifica a intervenção obrigatória do Ministério Público, nos termos do artigo 25, IV e V da Lei nº 8.625/1993 e do artigo 178 do Código de Processo Civil. (TJ-MG – Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.19.056344-5/001, Relator(a): Des.(a) Ângela de Lourdes Rodrigues , 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 10/10/0019, publicação da súmula em 15/10/2019).

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