Ambiente Jurídico

Danos morais coletivos decorrentes de lesões a bens culturais protegidos

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

13 de janeiro de 2024, 8h00

O dano ao patrimônio cultural pode ser conceituado como toda lesão causada por atividade humana positiva ou negativa, culposa ou não, que implique, direta ou indiretamente, em perda, privação, diminuição ou detrimento significativo, com repercussão negativa aos atributos e funções de bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, enumerados, de forma exemplificativa, no artigo 216 da Constituição de 1988.

Os danos ao patrimônio cultural são, infelizmente, cotidianos e se revelam das mais variadas formas. Na maioria das vezes eles decorrem do uso nocivo da propriedade e de condutas (comissivas ou omissivas, dolosas ou culposas) do poder público e de particulares.

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A destruição, deterioração, inutilização de prédios e documentos históricos, a descaracterização e o abandono de edificações tombadas, a demolição às pressas e às ocultas de bens inventariados ou em processo de tombamento, a pichação de sítios arqueológicos rupestres, a extração e o comércio clandestinos de fósseis e bens de valor arqueológico, a subtração e o comércio descontrolado de imagens sacras coloniais, a explosão de grutas que guardam vestígios arqueológicos e paleontológicos para exploração de recursos minerais, a pichação de monumentos urbanos, as construções em frontal desrespeito às normas de ordenamento urbano, a poluição visual em cidades históricas e turísticas, o descaso com bibliotecas, museus, teatros, cinemas e demais espaços destinados às manifestações culturais, a arbitrariedade lesiva a formas de fazer e viver tradicionais, a privação da fruição de bens culturais em decorrência de subtração ou outra forma de privação do direito de acesso ao patrimônio cultural são apenas alguns exemplos da enorme e variada gama de ações lesivas ao patrimônio cultural brasileiro que devem ser objeto de especial atenção dos operadores do Direito, a quem toca lançar mão dos meios preventivos e reparadores existentes no ordenamento jurídico vigente.

O dano ao patrimônio cultural pode assumir dimensões variadas, de natureza material ou imaterial, que devem ser devidamente identificadas em cada caso concreto para que se busque o ressarcimento integral da lesão causada ao bem de interesse coletivo.

Conforme a hipótese, a restauração, a indenização por danos materiais irreversíveis, a indenização por danos interinos, a indenização por danos extrapatrimoniais e a restituição de lucros ilicitamente obtidos podem ser exigidos simultaneamente como forma de reparar integralmente o, não raras vezes, multifacetário dano ao patrimônio cultural, nos termos do permissivo da Súmula 629 do STJ: “Quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar”.

Em casos de danos graves ao patrimônio cultural (tais como a lesão significativa ou ruína de bens históricos; o impedimento arbitrário da realização de uma festa tradicional reconhecida como patrimônio imaterial; a privação injusta e duradoura do acesso e fruição de uma imagem sacra de grande valor histórico, decorrente de sua subtração; a danificação irreparável ou de difícil e custosa reparação de um local especialmente protegido etc.), é plenamente cabível a indenização pelos danos extrapatrimoniais, na modalidade de danos morais coletivos.

Com efeito, é indiscutível a possibilidade de a coletividade ser afetada, em seus valores extrapatrimoniais, não só em decorrência da existência de sentimentos subjetivos de perda ou sofrimento, mas também em razão da violação a uma carga de valores éticos comuns, verificáveis objetivamente.

Em termos normativos, a indenização por danos morais coletivos em razão de lesões causadas a bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro encontra fundamento nos artigos 5º, V, 225, § 3º c/c 216 da CF/88; 186 do Código Civil; 14, § 1º, da Lei 6.938/81 e 1º, I, da Lei 7.347/85.

De acordo com o entendimento do STJ, o reconhecimento do valor cultural de um determinado bem (no caso, por tombamento), “abre para a Administração Pública e para a coletividade, depositárias e guardiãs em nome das gerações futuras, a possibilidade de exigirem, em juízo, cumprimento desses deveres negativos e positivos, inclusive a restauração do bem ao status quo ante, sob regime de responsabilidade civil objetiva e solidária, sem prejuízo de indenização por danos causados, até mesmo morais coletivos” (STJ; REsp 1.359.534; Proc. 2012/0208175-5; MA; 2ª Turma; rel. min. Herman Benjamin; DJE 24/10/2016) [1].

Os valores obtidos em razão da condenação judicial pelo cometimento de danos morais decorrentes de agressões ao patrimônio cultural deverão ser destinados para um dos Fundos de Direitos Difusos Lesados mencionados no artigo 13 da Lei 7.347/85, admitindo-se, ainda, a destinação a fundos municipais de reparação, em homenagem ao princípio da máxima coincidência possível, que recomenda a aplicação da compensação no local mais próximo da ocorrência do dano.

Nas hipóteses de acordos judiciais ou extrajudiciais envolvendo a reparação dos danos, entendemos ser plenamente possível a destinação dos valores para a execução de projetos que beneficiem outros bens culturais situados nas proximidades do local da ocorrência da lesão (compensação por equivalente).

Questão interessante diz respeito à prova da ocorrência de danos morais coletivos em razão de lesões a bens integrantes do patrimônio cultural.  Em casos tais, presume-se (presunção hominis ou facti) a ocorrência da danosidade extrapatrimonial (damnum in re ipsa), que deriva inexoravelmente do simples fato ofensivo grave objetivamente demonstrado, segundo as regras de experiência comum.

A doutrina especializada posiciona-se no sentido de que: Cuando el daño no patrimonial resulte de situaciones em las que se superen los limites de tolerância, la mera constatación de esta circunstancia, prescindiendo de la prueba del daño, se considera suficiente para demonstrar la producción del perjuicio cuya indemnización se reclama [2].

A jurisprudência pátria tem acolhido pedidos de condenação por danos morais coletivos em razão da ocorrência de lesões a bens culturais de valor formalmente reconhecido.

Abaixo, a título meramente exemplificativo, algumas hipóteses:

1. Demolição de imóvel tombado na comarca de Joinville (SC). Indenização no montante de R$ 102 mil, além dos danos materiais irreversíveis. (TJ-SC; AC 0045581-32.2010.8.24.0038; Joinville; 3ª Câmara de Direito Público; rel. des. Jaime Ramos; DJSC 27/8/2020; Pag. 110);

2. Demolição do imóvel sede da Fazenda Pedra Redonda, bem cultural protegido por lei do município de Ubá (MG). Indenização de R$ 30 mil (TJ-MG; AC-RN 5002765-97.2016.8.13.0699; 19ª Câmara Cível; rel. des. Carlos Henrique Perpétuo Braga; Julg. 10/2/2022; DJEMG 17/2/2022);

3. Demolição de imóvel tombado situado na cidade de Florianópolis (SC). Indenização no importe de R$ 20 mil. (TRF 4ª R.; AC 5021490-84.2014.4.04.7200; SC; 4ª Turma; rel. des. fed. Vivian Josete Pantaleão Caminha; Julg. 11/4/2018; DEJF 13/8/2018);

4. Destruição parcial do prédio do Cine Brasil, bem cultural tombado pelo município de Caratinga (MG). Indenização por danos morais coletivos, no valor de R$ 100 mil, em prol do Fundo Municipal do Patrimônio Cultural de Caratinga. (TJ-MG; AC-RN 1.0134.12.011838-2/003; rel. des. Peixoto Henriques; Julg. 11/7/2017; DJEMG 18/7/2017);

5. Degradação de imóvel cultural tombado situado na cidade do Rio de Janeiro. Indenização: R$ 40 mil (TJ-RJ; APL 0281296-67.2014.8.19.0001; 22ª Câmara Cível; rel. des. Rogério de Oliveira Souza; Julg. 16/6/2015; DORJ 19/6/2015).

 A fixação do valor dos danos morais coletivos, embora não seja tarefa das mais fáceis, é possível de ser alcançada, da mesma forma que o é em sede de reparação por danos morais individuais. A fixação do quantum debeatur, em caso objeto de processo judicial, fica ao alvedrio do magistrado que, no curso da ação, definirá o valor a indenização por arbitramento, de acordo com os elementos verificados no caso concreto [3].

Em doutrina, são indicados os seguintes elementos que servirão de parâmetro para a fixação da indenização pelo julgador: 1) Intensidade da responsabilidade pelo ato danoso omissivo ou comissivo; 2) Situação econômica do ofensor; 3) Grau de proveito obtido pelo ofensor; 4) Extensão/repercussão do dano e grau/tempo/custo de reversibilidade; 5) Função de desestímulo para a prática de atos semelhantes (caráter sancionador-pedagógico).

Jorge Mosset Iturraspe, em obra específica sobre o tema, indica dez outras regras que devem ser observadas para a fixação do dano moral: 1) Não à indenização simbólica; 2) Não ao enriquecimento injusto; 3) Não à tarifação com “piso” e “teto”; 4) Não a um percentual do dano patrimonial; 5) Não à determinação sobre a base de mera prudência; 6) Sim à diferenciação segundo a gravidade do dano; 7) Sim à atenção sobre as peculiaridades do caso, da vítima e do ofensor; 8) Sim à harmonização de reparações em casos semelhantes; 9) Sim à sensação compensatória; 10) Sim a somas que podem ser pagas dentro do contexto econômico do país e o padrão geral de vida [4].

Enfim, a indenização por danos morais coletivos decorrentes de lesões a bens culturais protegidos é medida garantidora do restabelecimento da dignidade social mediante a afirmação do ordenamento jurídico, além de servir como fator de desestímulo a práticas atentatórias contra o patrimônio cultural brasileiro enquanto bem jurídico difuso, indisponível e intergeracional.


[1] No mesmo sentido: A ocorrência de dano moral coletivo — assim entendido como a lesão a valores de uma coletividade que transcende a esfera individual de cada um dos seus integrantes, atingindo uma classe específica ou não de pessoas (síntese de individualidades) — é inequívoca, uma vez que a supressão de um exemplar único, com valor histórico singular, do cenário urbano impacta negativamente a memória cultural do povo e implica uma perda de difícil reparação, ante a impossibilidade de reconstrução do original. Nessa perspectiva, o fato de o imóvel encontrar-se em mau estado de conservação, por culpa do próprio proprietário, não tem o efeito de afastar o prejuízo decorrente de sua demolição. (TRF 4ª R.; AC 5021490-84.2014.4.04.7200; SC; 4ª Turma; rel. des. fed. Vivian Josete Pantaleão Caminha; Julg. 11/4/2018; DEJF 13/8/2018)

[2] MONTERO, Guillermina Yanguas.  El daño no patrimominal en el derecho del medio ambiente. Thomson Civitas. Navarra. 2006. p. 125.

[3] LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2003. p. 301-303.

[4]  Responsabilidad por daños. El daño moral. Tomo V. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni. 2006. p. 228.

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