Contas à Vista

Complementação de desapropriação não exige precatório (Tema 865/STF)

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

2 de janeiro de 2024, 8h00

Existem diversas situações que dispensam o uso de precatórios, mesmo decorrendo de decisões judiciais transitadas em julgado que determinem obrigações de pagar contra a Fazenda Pública.

Spacca

Um específico caso já foi abordado nesta coluna em agosto de 2018, e agora foi confirmado pelo STF, ao analisar o Tema 865, em Repercussão Geral.

No caso antes analisado, um imóvel havia sido desapropriado por utilidade pública a fim de permitir que o Estado o usasse em alguma finalidade de interesse público. A regra de fundo é o inciso XXIV, artigo 5º da Constituição, que constitui como garantia fundamental que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.

O Decreto-lei 3.365/41 permite que o poder público tenha imissão provisória na posse do bem desde que haja urgência e seja depositada a quantia arbitrada (§1º, “c”, artigo 15), podendo o proprietário do bem desapropriado levantar até 80% desse depósito, mesmo que discorde da avaliação e decida impugná-la judicialmente (artigo 33).

Uma vez julgado que o valor depositado não foi justo e deve ser complementado, esse valor adicional deverá ser pago por meio de precatório? Absolutamente não, afirmei naquela ocasião, pois o valor deve ser justo e prévio, conforme prescreve a Constituição.

As palavras justo e prévio possuem significados específicos, que podem até ser fluídos e imprecisos em alguns sentidos, mas possuem um núcleo central em seus termos.

Justo, sob a ótica do direito positivo, é aquilo que tiver sido determinado por decisão do Poder Judiciário, goste-se ou não do que tiver sido decidido. Uma vez transitada em julgado, será considerada justa a decisão proferida por juiz competente e obedecidas as demais normas atinentes à matéria (contraditório, ampla defesa etc.). Pode-se até discutir no âmbito acadêmico a justiça do que foi decidido, mas, dentro do sistema jurídico de direito positivo, a decisão que tiver transitado em julgado será considerada justa.

Prévia significa antecedente, algo que ocorre antes de algum ato ou fato. No caso, significa dizer que o pagamento da justa indenização por desapropriação deve feita de forma antecedente à sua efetivação.

Essa mesma fundamentação que expus em 2018 foi utilizada em outubro de 2023 pelo STF ao decidir sobre o Tema 865, em Repercussão Geral (RE 922.144).

Reportagem de Sérgio Rodas nesta ConJur expôs que o município de Juiz de Fora ajuizou uma ação de desapropriação por utilidade pública de um imóvel para construir um hospital, depositando a quantia de R$ 834 mil, e se imitiu na posse do bem. A decisão de primeira instância fixou o valor do imóvel em R$ 1,7 milhão, com correção monetária, juros de mora e compensatórios, tendo determinado que a diferença fosse complementada por depósito judicial direto. Por meio de embargos de declaração, a decisão foi alterada e submetido o pagamento da diferença ao regime precatorial. O TJ-MG manteve a sentença. A base jurídica do recurso extraordinário foi a de que o regime de precatórios não se aplicaria à verba indenizatória em caso de desapropriação porque esta deve ser precedida de indenização prévia, justa e em dinheiro.

O STF fixou a seguinte Tese no Tema 865: “No caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório,deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios”.

Com essa decisão, o STF determinou que a diferença da indenização seja paga mediante depósito direto pelo município de Juiz de Fora, em face da determinação constitucional de que a indenização em casos de desapropriação deve ser justa e prévia – isto é, sem precatórios.

Inegavelmente o STF acertou na decisão, exceto por um específico ponto: mencionou que o pagamento direto, isto é, sem precatório, somente poderia ocorrer “se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios”.

Por qual razão essa exceção foi criada? Não possui a menor coerência. Se o pagamento por meio de precatório não é prévio, por qual razão utilizá-lo, se o regime de pagamento precatorial estiver em dia? Nada justifica a exceção inserida na Tese. Trata-se de uma contradição em seus próprios termos.

O correto seria o STF ter declarado pura e simplesmente que: “No caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto, sem a necessidade de precatório”. Simples assim, sem exceções, e cumprindo o que estabelece a Constituição: só se pode desapropriar mediante o pagamento de prévia indenização, em dinheiro, o que alcança o montante inicial e sua eventual complementação.

Com a exceção constante do texto teremos mais judicialização à vista. Uma pena. O STF perdeu a chance de resolver de vez esse problema.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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