Ambiente Jurídico

Qual a natureza jurídica do tombamento de bens do patrimônio cultural?

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

30 de março de 2024, 8h00

Previsto inicialmente, de forma genérica, no artigo 46 da Lei  nº 378, de 13 de janeiro de 1937, e regulamentado pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, o tombamento é um dos mais importantes instrumentos de proteção dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, por conferir à coisa tombada o caráter de imodificabilidade e impor obrigações positivas e negativas objetivando a preservação do bem protegido, que fica submetido a um especial regime jurídico.

A longa jornada histórica do instituto permitiu que fossem formadas a seu respeito doutrina e jurisprudência fartas, conquanto nem sempre pacíficas até os dias de hoje.

Natureza jurídica do instituto

Um dos aspectos ainda controvertidos sobre o tombamento, passadas quase nove décadas de sua existência no ordenamento jurídico nacional, diz respeito à sua natureza jurídica, acerca da qual existem diversas correntes de pensamento.

Sob a ótica da doutrina administrativista clássica, existem quatro correntes a respeito da natureza jurídica do tombamento.

A primeira delas classifica o tombamento como instrumento de efetivação do exercício do domínio eminente do Estado; a segunda corrente afirma que o tombamento tem natureza de servidão administrativa, a terceira sustenta a natureza de limitação administrativa do instrumento, enquanto a quarta sustenta que o tombamento é, ao mesmo tempo, limitação e servidão administrativa.

Em tempos mais recentes, o tombamento passou a ser objeto de estudos por parte da doutrina jus ambientalista (que considera o patrimônio cultural como uma das dimensões do meio ambiente lato sensu) e também por aqueles que defendem a autonomia do Direito do Patrimônio Cultural, o que proporcionou novos aportes sobre a natureza jurídica do instituto do tombamento, em contraponto às concepções clássicas do Direito Administrativo.

Lições dos doutrinadores

Vejamos, então, as principais correntes formadas sobre o tema e suas consequentes repercussões.

Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto o domínio eminente do Estado constitui aspecto da soberania incidente sobre bens que constituem o território do Estado ou que a ele se integram ou adiram, sendo que sobre os bens privados ele se revela pelo exercício do poder de polícia, que limita o exercício de direitos inerentes à propriedade privada, alterando a disposição e a destinação utilitária desses bens [1].

Spacca

De acordo com o referido autor, o domínio eminente do estado se estende aos bens de interesse histórico, arqueológico, paleontológico, ecológico, científico, folclórico, artístico ou paisagístico e o tombamento constitui, com tal fundamento, intervenção ordinatória e concreta do Estado na propriedade privada, limitativa de exercício de direitos de utilização e de disposição, gratuita, permanente e indelegável, destinada à preservação, sob regime especial, dos bens de valor cultural [2].

Seguindo  a mesma linha de ideias, Hely Lopes Meirelles leciona no sentido de que o poder regulatório do Estado se exerce não só sobre os bens de seu domínio patrimonial, como também sobre as coisas e locais particulares de interesse público. Nesta última categoria encontram-se as obras, monumentos, documentos e recantos naturais que, embora de propriedade privada, passaram a integrar o patrimônio histórico e artístico da nação, como bens de interesse da coletividade, sujeitos ao domínio eminente do Estado [3].

Entendemos que a tese acima mencionada se refere ao fundamento sobre o qual se estrutura o instituto do tombamento, mas não propriamente à sua natureza jurídica, pois, em verdade, esta última pressupõe a delimitação dos elementos fundamentais que integram a composição específica de determinada figura, contrapondo-os ao conjunto mais próximo de figuras jurídicas similares  a fim de classificá-la.

Com efeito, o domínio eminente estatal fundamenta institutos tais como as servidões administrativas, limitações administrativas, desapropriação, tombamento, poder de polícia, entre outros, cada qual com suas particularidades próprias, razão pela qual a afirmação dos doutrinadores citados, a nosso sentir, não se volta exatamente à definição  da natureza jurídica do tombamento.

Servidão administrativa

Em continuidade, defendem a tese de que o tombamento tem natureza de servidão administrativa os doutrinadores Celso Antônio Bandeira de Mello, Ruy Cirne Lima, Lúcia Valle Figueiredo, Diógenes Gasparini e Adilson Abreu Dallari, “porque, ao contrário da simples limitação administrativa, incide sobre imóvel determinado, causando a seu proprietário ônus maior do que o sofrido pelos demais membros da coletividade” [4].

A servidão administrativa pode ser definida como um direito real de gozo sobre coisa alheia, instituído em benefício de entidade diversa da sacrificada, existindo do lado passivo um coisa serviente e, do lado ativo, uma coisa dominante, ideia que, aliás, decorre do próprio vocábulo servitudem, significando escravidão [5].

Entretanto, a tese encontra óbices sobretudo porque no tombamento a restrição não é imposta em benefício de coisa afetada a fim público ou de serviço público, inexistindo, portanto, a coisa dominante, essencial para a caracterização do instituto da servidão. Ademais, o tombamento não se configura como direito real [6]. Logo, entendemos que a tese não explica a verdadeira natureza jurídica do instituto do tombamento.

Limitação administrativa e dupla natureza

Em contraponto, defendem que o tombamento tem natureza jurídica de limitação administrativa os juristas José Cretella Júnior, Themístocles Brandão Cavalcanti e Sônia Rabello de Castro. A tese, contudo, vem sendo rebatida porque, enquanto a limitação administrativa tem por nota característica a generalidade (abrange um número indeterminado de bens), o tombamento se caracteriza exatamente por alcançar bens específicos, individualizados administrativamente em razão de suas características particulares.

Por último,  Antônio A. Queiroz Telles defende que o tombamento é, de maneira concomitante, limitação e servidão administrativa, de acordo com os seus reflexos, respectivamente, ao direito de propriedade e ao bem tombado [7]. A necessidade de recorrer a uma possível dupla natureza jurídica do tombamento a nosso sentir enfraquece tecnicamente a precisão exigida na classificação do instituto, de sorte que não contribui para a sua elucidação.

Categoria própria e especial

As teorias acima, enfim, fulcradas em conceitos e raciocínios clássicos próprios do Direito Administrativo, não conseguem explicar satisfatoriamente a natureza jurídica do tombamento, a ponto de a professa Maria Sylvia Zanella Di Pietro ter revisto o seu posicionamento anterior, passando a “considerar o tombamento categoria própria, que não se enquadra nem como simples limitação administrativa, nem como servidão” [8].

Também José dos Santos Carvalho Filho afirma que o tombamento “não é nem servidão nem limitação administrativa. Trata-se de instrumento especial de intervenção restritiva do Estado na propriedade privada, com fisionomia própria e inconfundível com as demais formas de intervenção” [9].

No âmbito do Direito Ambiental, que não se submete às amarras do raciocínio administrativista clássico, não se cogita o enquadramento do tombamento nas categorias tradicionais de intervenção do Estado na propriedade, tais como as servidões e as limitações administrativas. Paulo Affonso Leme Machado e José Afonso da Silva, a propósito, defendem que os bens de valor cultural são “bens de interesse público” que se submetem a um especial regime jurídico em razão de seus particulares atributos e relevância coletiva [10].

Defendendo a autonomia do Direito do Patrimônio Cultural em relação ao Direito Ambiental e ao Direito Administrativo, mas buscando conciliar as teses acima expostas, já tivemos a oportunidade de afirmar que: “entendemos o tombamento como um processo administrativo do qual decorre restrição concreta, sui generis, ao direito de propriedade, que impõe à coisa protegida a qualidade de bem de interesse público, sujeitando-a a um especial regime jurídico quanto à disponibilidade, à conservação e à fruição” [11].

Considerações finais

De se ressaltar, em arremate, que o tombamento, regido pelo Decreto-Lei nº 25/37, é ferramenta de efetivação do princípio da função social da propriedade e suas restrições harmonizam-se com o previsto no artigo 1.228, § 1º, do Código Civil, litteris: “O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”.

Por essa razão, o uso do instituto do tombamento, nos exatos limites de suas possibilidades legais, não implica o direito do proprietário do bem tombado reclamar indenização em razão das limitações incidentes sobre a sua propriedade, que já nasce funcionalizada à satisfação dos interesses da sociedade, nos termos do artigo 5º, XXIII, da Constituição da República.

 


[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 11. ed.  Rio de Janeiro: Forense.. 1997.  p. 249.

[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo.  p. 282.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 555.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 25ª ed. 2012. p. 154.

[5] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 25ª ed. 2012. p. 155.

[6] Segundo a doutrina: Destinando-se a operar contra toda a coletividade, não pode qualquer direito real ser reconhecido juridicamente se não houver prévia norma que sobre ela faça previsão. Portanto, inseridos em regime de ordem pública, os direitos reais são numerus clausus, de enumeração taxativa, localizados no rol pormenorizado do art. 1225 do Código Civil e em leis especiais diversas. FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 6. Ed. Rio de Janeiro:  Lumen Juris.  2010. p. 10.

[7] TELLES, Antônio A. Queiroz. Tombamento e seu regime jurídico. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1992, p. 43-45.

[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 25ª ed. 2012. p. 154.

[9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 26. Ed. 2013. p. 809. No mesmo sentido: ZANDONADE, Adriana. O tombamento à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros. 2012. p. 245.

[10] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Ação Civil Pública (ambiente, consumidor, patrimônio cultural) e Tombamento. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1986. p. 71.

[11] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução ao Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. 2. Ed. Belo Horizonte: 3i. 2023.  p.176.

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