Senso Incomum

Golpe de Estado: como o gêmeo xifópago Caio esfaqueou seu irmão Tício

Autor

15 de fevereiro de 2024, 8h00

1. Dos Caios e Tícios fictícios ao Bolsonaro concreto: dos personagens fictícios ao mundo da vida
De pronto, peço desculpas aos gêmeos xifópagos. Uso o exemplo porque ele é corrente em um lugar chamado “dogmática do direito”. No direito, gêmeos xifópagos usam arma. Leiam a seguir.

Aliás, este texto é alegórico. [1] Para explicar que, no direito, é comum criar um exemplo para estabelecer uma premissa e, baseado nela — de forma autorreferente — enquadrar todo os fenômenos do mundo.

Conceitos sem coisas. Chamemos a isso também de criterialismo: primeiro se discute as características de uma casa; depois fica fácil de dizer, que, dadas o preenchimento dos requisitos, o Palácio de Versalhes é… uma casa. Só que isso é falso.

O criterialismo transforma a discussão em uma questão de critérios linguísticos convencionais. Dworkin denunciava isso no positivismo.

Na dogmática jurídica brasileira, o problema é ainda mais grave: porque os critérios são ad hoc, reproduzidos pelos tribunais de forma também ad hoc, e as decisões são novamente replicadas pela dogmática como se direito fosse. Cria-se um discurso sobre o direito que substitui o próprio direito.

2. Caio e Tício estão em todas: falta agora entrarem no caso 8 de janeiro
Os gêmeos Caio e Tício são um clássico. São os netos do velho Criteu, o avô criterialista. São xifópagos e andam armados (não sei se possuem porte). Um desfere um tiro ou facada no outro. Qual é o crime? E a discussão enche páginas.

Outro conceito sem coisa: Caio veste fantasia de cervo e vai para a floresta (o que faria um sujeito se vestir de cervo e correr pela floresta?). Tício vai caçar e vê uma galhada (a de Caio). Dá um tiro no traseiro de Caio. Resultado: erro de tipo, isto é, Tício só responderá pelo crime culposo. Mas precisava desse exemplo para explicar o crime?

Spacca

E que tal este? Caio quer Matar Tício com veneno; incompetente, usa só meia dose. Mévio (sic) também quer matar Tício e, igualmente incompetente, usa só meia dose. Um não sabe do outro.

E tudo ocorre ao mesmo tempo! Com as duas meias doses, Tício morre. E a discussão vai longe… Dizem que os dois incompetentes só devem pagar por tentarem matar o odiado Tício.

Pelo visto, assim, temos muita munição para “explicar” o caso Bolsonaro.

3. Caio e Tício visitam a Praça dos Três Poderes
A grande discussão é: tudo o que Bolsonaro fez (o que já se sabe) é enquadrável no crime de golpe de estado (que se concretiza pela mera tentativa)? Parece que sim, não?  Pelo andar da carruagem, não é bem assim. Explico.

O jornal Zero Hora trouxe a manchete: especialistas dizem se houve crime. Curioso, abro a matéria e vejo que foram ouvidos quatro advogados. “Suficiente”, não? O jornalismo brasileiro vai ganhar o prêmio AntiPullitzer. A tese principal: não há crime. Por quê?

Porque só houve intenção, planejamento, cogitação e meros atos preparatórios… Quem salvou a reportagem da ZH foi André Callegari, quem disse, com clareza: “a reunião pode ser o início da execução do delito, desde que presentes outros elementos que indiquem que havia a intenção de abolir o Estado democrático”.

Já a Folha ouviu mais pessoas. Mas também a metade dos ouvidos (por que será que tem de dar sempre empate?) disse que não houve início de execução (por exemplo, a reunião não configura nada nesse caso – só intenção). E foram peremptórios nisso. (Alerta: lembremos que essa ‘neutralidade’ fundamentava espaço para negacionistas na época da pandemia. “Contraditório”?)

Problema da reportagem da Folha: a reunião gravada é um ato isolado na cadeia de empreendimento golpista? Essa é a minha pergunta que respondo mais adiante. Outra coisa: a Folha diz que especialistas divergem. Sim, divergem. Mas em um universo de professores e advogados como o nosso, como aquilatar o nível da divergência com a opinião de poucos? [2] O que são esses disagreements? Empíricos? Teóricos?

Será que existe, mesmo, divergência ou a “divergência” é resultado de uma “matéria equilibrada a fórceps”, tentando naturalizar a tese de que “não houve inicio de execução – logo, não há crime”?

Além disso, a premissa da “polêmica” é equivocada. É equivocado discutir se houve ou não crime levando em conta apenas a tal reunião. Davi Tangerino, na matéria da Folha, desmonta facilmente essa discussão, ao dizer que o 8 de janeiro é um conjunto e tudo está entrelaçado.

Desculpem, mas onde vai parar esse país? O que é um golpe de estado, afinal?! Talvez o chargista consiga explicar melhor.

Folha de S.Paulo – 13.fev.2024

4. Fumou, mas não tragou? O que fez “Caio Bolsonaro”?
Não é por nada que a mesma Folha publicou, no dia seguinte aos disagreements, artigo de Joel Pinheiro, indo na mesma linha: Bolsonaro só planejou, quis, mas não tentou de verdade. Em síntese, fumou, mas não tragou.

Mas, vejamos. O que o nosso “Caio-do-mundo-real” fez? “Caio Bolsonaro” chamou ministros do STF de canalhas, montou um 7 de setembro de onde quase saiu um golpe (em 2021).

Depois faz reunião — gravada — e dali se sabe das cobras e lagartos acerca de planejamento, execução, minutas de golpes, reunião com ABIN, com embaixadores, com ministros dizendo que deveriam dar o golpe antes das eleições e quejandices mil. [3]

O que não está dito nas reportagens que sustentam que “não há execução”? Lembremos que  há gente de escol da área jurídica dizendo que houve apenas cogitatio e “atos preparatórios”, que não são puníveis. O escondido, o não-dito, é a contradição principal, que é o próprio tipo penal.

Tentar já é o próprio crime. O conjunto da obra de Bolsonaro (o empreendimento todo) é o quê? É possível, juridicamente, fazer uma análise isolada de uma reunião ou de um ato sem levar em conta todo o empreendimento? Essa é a pergunta de um milhão de constituições e códigos penais.

5. Talvez o problema seja termos Caios, Tícios e Mévios em demasia no direito
Não é preciso ir longe para entender como o direito se presta a fazer abstrações. Basta ver que existe “morte ficta”. O sujeito está “morto”, mas está vivo.

O mundo dos exemplos substitui o mundo real. Arrisco dizer que, para explicar que Bolsonaro não responde ao crime de golpe de estado, logo virão explicações fazendo analogias como “Caio compra uma arma, pensa em assaltar um banco, reúne-se com comparsas, mas desiste do plano”.

Resposta: Caio fez apenas cogitatio (em latim é melhor) e/ou meros atos preparatórios. Conclusão: Caio-Bolsonaro fez toda a cogitação e muitos atos preparatórios…mas ficou nisso. Logo, não cometeu o crime. Causa finita.

O problema é que, para além de Caio e Tício, o sujeito concreto, Jair Messias Bolsonaro, era o presidente da República em exercício. E não o dono de um boteco.

O golpe de estado é obra coletiva, com divisão de trabalho. Só que as condutas devem ser analisadas em conjunto. Muitas das condutas, tomadas individualmente, constituem ações neutras, mas no conjunto implicam início de execução.

Assim, em uma reunião na presidência da república — e não em um bar —, em que se trabalha explicitamente o tema da sedição, está claro que a resolução para desacreditar as eleições e as propostas de virar a mesa antes delas etc., integram o conjunto da obra como tentativa de golpe. Dali para frente, basta executar (mas não precisa executar; o crime é meramente “tentar”).

Diga-se de passagem, que esses delitos se denominam delitos de empreendimento, Unternehmungsverbrechen — lembra bem o grande penalista Juarez Tavares. Assim se chamam justamente porque implicam mesmo um empreendimento coletivo com divisão de tarefas.

E no caso de Bolsonaro (e não de Caio e nem de Tício), houve até minuta de golpe e minuta de como justificar o golpe. Tudo concreto. Nada de caçada com galhada na cabeça. Nada de veneno com meia dose. Não há erro de tipo (sic). Nem crime impossível.  Não há apenas cogitação e atos preparatórios (com exemplo fictício de assalto a banco). Há, sim, o mundo real em que um presidente empreendeu toda a cadeia que compreende um crime de “empreendimento”.

Não tem Caio e nem Tício que possam vir a salvar.

Ou tem?

Eis a pergunta que o direito penal dos sonhos e fantasias terá que dar quando acordar. E que não seja um pesadelo.

Tivesse sido aqui o putsch de Munique, teríamos jornalistas e gente do direito dizendo “veja bem, veja bem, Hitler estava em uma cervejaria, só planejou e fez alguns atos preparatórios, não chegou a tentar, que absurdo esse Estado querendo condená-lo por traição…”.

Aliás, na Alemanha, a propósito do putsch da cervejaria, o judiciário e o ministério público de então pensaram assim, de certo modo, uma vez que aplicaram uma pena brandíssima, além de não expulsarem Hitler do país.

Ao contrário: foi para um castelo e escreveu Mein Kampf. E depois destruiu a democracia. E quase destruiu o mundo. Deve ter sido feita uma interpretação criterialista na parte da determinação de expulsão de estrangeiro sedicioso: o que é ser estrangeiro? E aí vêm os critérios… O resto, todos sabem.  Caio e Tício sempre presentes.

Post scriptum: Caio, Tício e Mévio e as teses negacionistas do golpe
A partir de Tício que atira em Caio pensando ser um cervo, falta agora alguém usar o exemplo e dizer que Bolsonaro pensou que, baseado no art. 142 da CF, tinha “legitimidade” e, assim, “puxou o gatilho” e, por engano, acertou o traseiro da democracia brasileira. Assim, foi “erro de tipo”. Como não há modalidade culposa, não há crime. Pronto. Causa finita. (obs: contém ironia).

Ou daqui a pouco dir-se-á que “Bolsonaro é muito incompetente, logo, crime impossível”. O exemplo criterialista é: Caio quer matar Tício com arsênico. Incompetente, usa açúcar. Conclusão: crime impossível (artigo 17 do CP). Pronto. Bolsonaro pode se livrar por “crime impossível” (igualmente há ironia).

Genial, não? E não é de se duvidar.

Ou que, do mesmo modo do exemplo em que Caio tentou matar Tício com veneno, Bolsonaro só usou meia dose do veneno para matar a democracia.

Ficções da realidade…realidade das ficções. A realidade? É essa que vemos. Por pouco o Brasil não teve o golpe de Estado. Escapamos? Dependerá do mundo de fantasias e ficções do direito.

E, sim, foi “apenas” tentativa. Ainda bem, não?

________________________________

[1] Esta coluna é escrita seguindo a linha do que escrevi quando comemorei 1.000 colunas no Conjur. Ali falei de Sabine Hossenfelder e seu livro A Ciência tem todas as Respostas? É com esse espírito que a coluna de hoje deve ser lida!

[2] Há até gente do direito, como Fernando Capez, quem diz que não se pode vulgarizar o crime de golpe de estado (aqui); não se pode confundir com balburdia. Pois sim. Balbúrdia. Do verbo “balburdiar”.

 

[3] Sugiro a leitura do artigo de Nicolau Cavalcanti no Estadão de 14.02.2024, intitulado A hora da verdade do art. 359-M: “afirmar que todas as ações prévias ao golpe de Estado (a deposição do governo) seriam  meros atos preparatórios é minar a eficácia protetiva do art. 359-M, além de representar um olhar simplista sobre o que é um golpe.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!