Controvérsias Jurídicas

Não convém vulgarizar a aplicação do crime de golpe de Estado

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

19 de outubro de 2023, 14h20

Preceitua o artigo 359-M do Código Penal ser crime, punido com reclusão de quatro a 12 anos, "tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído". Trata-se do crime de golpe de Estado, o qual visa a punir o agente que tenta destituir do poder quem lá chegou legitimamente. Antes de mais nada, faz-se necessárias algumas observações de cunho histórico e sociológico para melhor compreensão acerca da existência desse tipo penal.

A história da América Latina tem sido marcada por constantes guerras intestinas, conflitos internos e movimentos armados com finalidade de tomada abrupta do poder. Durante os séculos 19 e 20, tornou-se prática comum a chamada insurreição política ou, sem eufemismos, o golpe de Estado. A expressão vem do francês coup d'Etat, fórmula empregada para designar a tomada de poder por Napoleão no golpe de 18 Brumário, quando este, em 1799, assumiu o poder da França, impondo uma ditadura vitalícia no lugar do terror instalado no período pós-Revolução Francesa.

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Inicialmente, de forma dissimulada, substituiu o governo do Diretório por um consulado composto por três nomes, incluído obviamente o seu, e, logo em seguida, impôs seu governo individual e ditatorial. Golpe de Estado tornou-se, então, expressão a denominar todo movimento de subversão da ordem constitucional, toda derrubada de um regime político, em geral, por elementos de dentro do Estado, mediante o emprego das Forças Armadas ou grupos paramilitares extremamente organizados e bem equipados com armamento pesado.

Nesse sentido, golpe de Estado pode ser definido como todo movimento violento de desestabilização da ordem e do regime legal e legitimamente instalado, contra a ordem constitucional, com o fim de impor um novo governo, liderança ou regime político. Está bastante atrelado ao contexto contemporâneo, notadamente em países de frágil estabilidade institucional localizados na América Central, do Sul, África, Oriente Médio e Sudeste da Ásia. De forma geral, cuida-se de fenômeno político de caráter inequivocamente violento, uma ação radical, armada e organizada contra a ordem vigente.

No caso de Napoleão Bonaparte, além de inaugurar o golpe de Estado como conceito, iniciou também a tradição da ditadura do tipo bonapartista, na qual um governante assume caráter supremo, enfraquecendo todas as formas de organização política de uma sociedade e governando em relação direta com o povo. Esse caso define, ainda, outra importante característica do golpe de Estado, o fato de que ele está frequentemente ligado ao estabelecimento de uma ditadura.

O objetivo do golpe de Estado é tomar o poder e derrubar o governo em exercício. Importante frisar, porém, que o golpe em si, não é um regime político, não é um governo, mas um movimento violento de contestação da ordem que prepara o caminho para outra forma de governo, em geral, ditatorial.

Existem várias expressões utilizadas como sinônimos de golpe de Estado. Na América Latina e Espanha é usual a utilização do termo "pronunciamiento" ou quartelada, que é o golpe militar clássico. Na Alemanha, o mais comum é o uso do verbete "putsch", primeira tentativa frustrada de tomada do poder pelos nazistas em Munique, liderados por Adolf Hitler.

No entendimento de Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, o conceito de golpe de Estado guarda similaridades com o de revolução. Em comum, ambos se apresentam como rupturas bruscas e violentas da ordem institucional, sendo seu objetivo, a derrubada violenta do governo para instituição de outro em seu lugar. Há, no entanto, uma diferença entre golpe e revolução. Enquanto a revolução consiste em uma modificação radical das estruturas econômicas e sociais, o golpe, em geral, é apenas a substituição pura e simples das elites no poder, quase sempre levado a cabo pelas denominadas elites orgânicas, ou seja, aquelas inseridas no próprio Estado, como os burocratas e os militares [1].

Normalmente, é comum nas narrativas revolucionárias, apresentar o golpe de Estado com um modelo conservador e a revolução como progressista. Todavia, esse critério não pode ser adotado em caráter absoluto, tendo em vista a existência de inúmeras revoluções com modelo conservador, tal como a Revolução Islâmica no Irã em 1979.

O golpe de Estado é característico de sociedades politicamente instáveis, sendo incomum em países com forte tradição democrática como os Estados Unidos e o bloco ocidental europeu, mais precisamente no último quartel do século passado. Nessa abordagem, a maior ou menor ocorrência de golpes de Estado está atrelada à ausência de uma cultura política democrática enraizada e instituída na sociedade. Desse modo, países com sólidas instituições democráticas apresentam pequena ou nenhuma incidência de golpes, ao passo que quanto menor for a higidez do sistema democrático, maiores são as ocorrências de tentativa de ruptura da ordem institucional e substituição do governo de turno.

Depois de contextualizada a questão, passemos à análise jurídica do tipo penal em comento.  O modo pelo qual o agente busca a destituição do governo deve ser, necessariamente, violento ou com potencialidade real de ser ameaçador, razão pela qual deverá ser inadmissível qualquer acordo de não persecução penal, por força do artigo 28-A do Código de Processo Penal.

Ressalta-se, nesse sentido, a incompatibilidade entre a gravidade do delito e o tempo estabelecido para sua pena mínima (quatro anos), uma vez que, em tese, ensejaria a possibilidade de regime aberto. A ação concreta, para ser equiparada a tão grave violação da ordem constitucional e subversão do regime democrático, aspiração natural de toda sociedade civil sadia, não pode ser vulgarizada para alcançar qualquer forma de protesto ou manifestação violenta. Golpe de Estado somente será a ação organizada e estruturada de forma hierárquica, em regra piramidal, com divisão de tarefas, financiamento adequado e armamento capaz de se contrapor à estrutura de segurança interna e externa do país, leia-se, polícias civil, militar e federal, guardas municipais, segurança interna de prédios públicos e Forças Armadas.

Golpe de Estado não é sinônimo de baderna, depredação ou movimento político de protesto. Do contrário, será ferida a mens legis, e anarquizado o sistema penal constitucional, calcado na legalidade e proporcionalidade.

A gravidade do tipo é tamanha que será o mesmo imprescritível e inafiançável, por força do artigo 5º, XLIV da Constituição, que serve de fundamento ao tipo legal. Diz o referido mandamento constitucional: "Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático".

O texto constitucional é demasiadamente claro ao exigir a existência de grupos armados e obviamente organizados com estrutura para investir contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de modo definitivo. Não se trata de mera turbação episódica da ordem, por mais grave que seja, sendo imprescindível dois elementos, um de ordem subjetiva e outro de natureza objetiva.

O primeiro consiste no animus, ou seja, no dolo de realizar a ação com vista a derrubar o governo legitimamente constituído. No entanto, o Direito Penal não se contenta com a intenção, sendo necessária a conduta real, concreta e efetiva que coloque em risco o bem jurídico tutelado. Trata-se do brocardo "pensiero non paga gabella" e "cogitationis poena nemo patitur".

Querer dar o golpe de Estado não basta. Iniciar uma ação tresloucada ou desesperada de protesto violento contra o governo legitimamente instalado não é suficiente. O elemento objetivo do tipo exige a ação de pelo menos um grupo armado, estruturado, organizado e fortemente armado a ponto de colocar em risco a defesa da ordem constitucional e do regime em vigor pelas forças de segurança e defesa institucional instaladas.

A objetividade jurídica do delito é a Defesa do Estado democrático de Direito e a soberania do voto popular. Por tratar-se de crime comum, qualquer pessoa poderá ser o sujeito ativo. Como sujeito passivo direto figurará o Estado, atingindo indiretamente todos os membros da coletividade.

Pune-se o golpe de Estado, consistente na tentativa de deposição violenta ou ameaçadora de governo legitimamente constituído. No que tange à imprecisão quanto ao termo "golpe", diz Rogério Sanchez Cunha e Ricardo Silvares: "É verdade que a palavra golpe tem sido impropriamente usada em nosso meio político em tempos mais recentes. A presidente da República eleita em 2014 sofreu, ao longo de 2016, longo e público processo de impeachment por crime de responsabilidade, por meio do qual perdeu o cargo, mantendo seus direitos políticos, mas, ainda assim, alegou ter sofrido um golpe; o presidente que a sucedeu foi alvo de ações penais promovidas pelo Procurador-Geral da República, com ampla publicidade e direito de defesa, mas também alegou ser vítima de uma tentativa de golpe" [2].

Atualmente, com o domínio dos meios de comunicação e a manipulação retórica de expressões jurídicas para a consecução de fins políticos, a guerra de narrativas torna a verdade menos relevante, com graves consequências para a estabilidade e a previsibilidade na aplicação do jus puniendi.

O tipo penal pune a tentativa de deposição, ou seja, a ação violenta, armada e organizada de um grupo civil ou militar que tenha real capacidade para derrubar, retirar, do exercício das funções, antes do final do mandato, com violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído. Não havendo demonstração desta efetividade, estaremos diante da chamada tentativa ineficaz, inadequada, quase crime ou crime impossível, quando a produção do resultado típico é impossível, seja pela ineficácia absoluta do meio ou pela impropriedade absoluta do objeto.

Por referir-se ao golpe de Estado, entendemos que o tipo se aplica exclusivamente à deposição do governo na esfera da União, vez que a expressão é utilizada para deposição de chefe de Estado enquanto pessoa jurídica de direito público internacional. Ademais, por mais que ocorra, hipoteticamente, a deposição violenta de um prefeito ou de um governador de Estado, estaríamos diante de uma situação excepcional de uma quebra da ordem legal, mas não de um golpe de Estado, pois mantida a legitimidade do presidente da República, este ainda pode valer-se de mecanismos legais e constitucionais para a reconstituição da ordem perdida no estado federativo ou município.

O elemento subjetivo do tipo é o dolo, consistente na vontade livre e consciente do agente em tentar depor, mediante violência ou grave ameaça, governo legitimamente constituído. Somente é possível o dolo direto, não se vislumbrando a possibilidade de dolo eventual. O delito se consuma no momento em que o agente inicia a ação concreta e viável objetivando a derrubada do governo legitimamente eleito, lembrando sempre que a ação inviável caracteriza crime impossível. Exige-se, portanto, a prática de atos concretos, violentos ou ameaçadores, aptos a depor o governante maior na nação. Importante salientar que a tentativa deve ser factível, real, revestida de possibilidade de êxito, não se aplicando para meros discursos, disseminação de ideias ou atos de ínfima gravidade, que jamais, de acordo com as condições de tempo e lugar, lesionariam a constitucionalidade do governo do país.

Por ser crime de atentado, a tentativa é prevista como a própria conduta típica, não se aplicando, portanto, o artigo 14, parágrafo único, do Código Penal. O crime é formal, não se exigindo qualquer resultado naturalístico para sua configuração, que no caso, seria a deposição do governante legitimamente eleito. Trata-se de crime de ação penal pública incondicionada.

Finalmente, mencionamos que o tipo sob análise guarda certa similaridade com o revogado artigo 17 da Lei de Segurança Nacional, que dizia: "Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito". Nota-se que o artigo 17 fazia menção à ruptura do regime vigente, vocábulo comumente utilizado em âmbito militar para se referir ao governo. Desse modo, o tipo visava a punir o ato de tentativa violenta do governo, caracterizando verdadeira continuidade típico-normartiva, apenas com a mudança da reprimenda. O delito é um dos mais graves por ameaçar seriamente a própria democracia, porquanto não convém vulgarizar sua aplicação

 


[1] SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo. Ed. Contexto, 2005, p. 173/175.

[2] CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado Democrático de Direito. São Paulo, Ed. JusPodium, 2021, p. 136.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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