Senso Incomum

As mais de 1.000 colunas, as sutilezas e as retrancas epistêmicas

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12 de outubro de 2023, 8h00

A alemã Sabine Hossenfelder, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados de Frankfurt, escreveu A Ciência Tem Todas As Respostas? [1], denso livro em que procura explicar de forma didática vários dos temas mais pops da física, como a origem do Universo e as teorias quânticas. "Muitos divulgadores científicos tentam deslumbrar as pessoas, especialmente na cosmologia. Tudo sobre início do Universo e teorias quânticas é cheio de 'uau!', de grandes mistérios", diz em entrevista ao jornalista Uirá Machado, da Folha [2]. "Mas acho que as pessoas ficam em parte confusas e em parte decepcionadas quando descobrem que quase tudo isso é bobagem."

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E eu quero que as pessoas saibam a verdade, acrescenta. "Quero que saibam o que realmente está acontecendo na física, o quanto sabemos e o que é blablablá." Ou, para usar a formulação chique do seu livro: "Isso não é ciência. É religião mascarada de ciência sob o disfarce da matemática".

Sabine questiona dados da ciência considerados como uma espécie de "mito do dado". Bom, isso também é forte no direito. Por vezes, o que os pesquisadores estão fazendo quando defendem certas teorias nem pode ser chamado de ciência, pela impossibilidade de as evidências mostrarem se as teorias estão certas ou erradas. Querem algo mais "improvável" que a ponderação feita à machado (não de Assis)? Ou o argumento da "voz das ruas"? Alguém tem algum dado concreto, um aparelho tipo "vozômetro"?

Claro que ela põe uma retranca: "Mas não é como se tudo fosse bobagem". "Há algumas boas pesquisas em andamento e há grandes questões sobre o quanto realmente podemos descobrir. Deveríamos falar sobre isso de forma honesta, deixando claro o que a ciência pode descobrir e o que não pode."

Ela disse que tem consciência de que suas críticas duras não fazem amigos e, pior, têm sido usadas por inimigos da ciência para reforçar o negacionismo. Como se fosse possível apontar para ela e dizer: "Tá vendo, ciência é tudo besteira!".

"Não sei se há algum jeito de consertar isso. Não importa o que você faça, sempre haverá pessoas que tiram conclusões precipitadas e atribuem opiniões a você. O melhor que posso fazer é explicar que há sutilezas."

Pois é a partir do livro de Sabine que, já na introdução, em meus dois livros que lançarei em breve (Como Fazer a Coisa Certa em Direito e O que é isto – a crise do ensino jurídico?) mostro que aquilo que pretendo explicar não significa que o que estou criticando não tem valor ou é bobagem. Apenas levanto questões críticas.

Nessas duas obras busco desmi(s)tificar determinados modos de ensinar, interpretar e aplicar o direito. Como o livro de Sabine, minhas críticas não querem dizer "tudo o que está aí é bobagem" ou "o que está aí é ruim". Se tivesse que dizer, a cada frase, algo como "aqui ressalvo as boas práticas, os bons livros e os bons autores", não teria sentido escrever. Mas (no Brasil) escrever é perigoso.

É claro que tenho consciência — e isso se aplica às minhas mais de 1.000 colunas e textos publicados aqui na ConJur — de que as críticas podem ser utilizadas por "negacionistas jurídicos", aqueles que dizem "de fato, o direito não serve para nada, a não ser justificar o poder ou permitir que dele se apoderem" ou coisas assim. É o risco que corro. Não só com esses dois novos livros, mas com todos os demais.

Parafraseio o que afirmou Sabine ao repórter: não sei se há algum jeito de consertar o ensino jurídico e a dogmática tomados pelo senso comum e pelo criterialismo. Não importa o que você faça — e trabalho nesse tipo de crítica há décadas — sempre haverá pessoas que tiram conclusões precipitadas e atribuem opiniões a você, como a de que "é contra o Judiciário" (quando meu maior trabalho é buscar a construção de um Judiciário democrático), "é contra a dogmática jurídica" (como se fosse possível substituir a dogmática pela crítica), "ao defender a legalidade, é um positivista" (como se positivismo fosse uma teoria prescritiva) e mais um conjunto de afirmações semelhantes que se fazem a quem crítica as afirmações da física ou da matemática.

Ainda com Sabine, afirmo: "o melhor que posso fazer é explicar que há sutilezas". Há complexidades. Muitas. Embora também como ela, tendo a pensar que a doutrina e a jurisprudência continuem a negar a existência dos problemas por mim denunciados nesses livros.

Mas não posso desistir antes de começar.

Quem escreve sempre pode ser descontextualizado. O que se escreve, sempre pode acabar instrumentalizado. Sabine sabe disso. Eu sei disso. Mas não é por isso que devemos deixar de escrever. Kelsen não teria escrito a TPD. Não teríamos uma das maiores obras da história do pensamento jurídico se seu autor não a tivesse escrito por saber que se diria por aí que "o positivismo legitimou o nazismo" ou que Kelsen pregava a "aplicação da letra fria da lei". Ora, exatamente porque há o negacionismo é que escrevo. Para que, no futuro, haja menos negacionismo. Exatamente para que não se diga bobagens como essa sobre o Kelsen (nesse caso, a questão das "bobagens" se aplica). Para ficar só nesse exemplo. Há sutilezas. Sempre.

Entendo bem o que Sabine quer dizer ao escrever o seu livro. E não é porque há quem ignore as sutilezas que elas não devem ser trabalhadas. Pelo contrário. É exatamente por isso. Esse é o paradoxo. Que não é um paradoxo. Percebem a sutileza?

 

[1] Cf. HOSSENFELDE, Sabine. A Ciências tem todas as Repostas? São Paulo, Editora Contexto, 2023

[2] MACHADO, Uirá. Big Bang e multiverso são religião, não ciência, diz pesquisadora. Folha de S.Paulo, edição de 8/10/2023.

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