Informações no freezer

Veto ao congelamento de dados pessoais garante privacidade, dizem advogados

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7 de fevereiro de 2024, 20h08

Advogados consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico consideraram acertada a decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal segundo a qual a preservação de dados pessoais por requisição direta do Ministério Público, sem ordem judicial, gera a nulidade das provas.

Supremo decidiu que preservação de dados pessoais por requisição direta do MP, sem ordem judicial, gera a nulidade das provas

A decisão é desta terça-feira (6/2). Os ministros entenderam que o mero congelamento de informações pessoais sem autorização afronta o direito à intimidade porque tira do cidadão o controle sobre seus próprios dados.

Para a maioria do colegiado, o Marco Civil da Internet só permite a preservação de dados de conexão, que consistem em informações sobre data e hora em que a conexão à internet foi feita por um usuário, além do endereço de IP utilizado para o envio e recebimento de pacotes de dados.

No caso julgado, no entanto, o congelamento requerido pelo MP aos provedores envolveu o conteúdo de e-mails, além de fotos, contatos e histórico de localização e de busca.

Atuou no processo o advogado Daniel Gerber, que considerou a decisão uma “vitória da cidadania”.

“A partir de agora resta decidido que o MP e as autoridades investigativas não podem congelar dados de qualquer cidadão sem, primeiro, haver ordem judicial para tanto. Ressalte-se que não se ignora a relevância das investigações conduzidas pelo MP e pela autoridade policial, mas o mínimo que se espera é que esses passos investigatórios sejam conduzidos dentro dos limites legais.”

Privacidade e intimidade
Para Marcos Filipe Araújo, integrante da área cível do escritório Peixoto & Cury Advogados, a decisão do Supremo valoriza os direitos à privacidade e à intimidade dos cidadãos.

“A decisão reflete a preocupação com a proteção dos direitos individuais em meio às investigações, destacando a necessidade de resguardar a privacidade dos cidadãos enquanto não há decisão judicial autorizando que os dados sejam congelados.”

Ainda segundo Araújo, o direito de gerir e dispor do conteúdo pessoal de comunicações eletrônicas é uma garantia individual enraizada no direito à preservação da intimidade e da vida privada.

“O êxito quanto ao reconhecimento da nulidade de provas obtidas dessa forma, ou seja, sem autorização judicial para manutenção dos dados pessoais, reafirma a importância e o fortalecimento da Lei Geral de Proteção de Dados e estabelece limites para a atuação dos órgãos de investigação, contribuindo para o fortalecimento do Estado de Direito e para a preservação dos direitos individuais na era digital.”

Daniel Bialski, sócio do Bialski Advogados Associados, afirmou que a decisão aplica direitos previstos na Constituição, como à privacidade e à intimidade.

“A partir do momento em que há uma pesquisa, e uma pessoa armazena dados de terceiros e os guarda como uma espécie de dossiê, também existe uma violação. E se isso foi conseguido de forma espúria, é uma prova ilícita”, defendeu ele.

Flávia Pietri, sócia da área de Direito Consultivo Empresarial e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados do Nascimento e Mourão Advogados, destacou que o MP extrapolou a permissão legal que contempla o congelamento dos registros de dados de conexão.

“A cessão de dados a terceiros, bem como a indisponibilidade dos mesmos para o titular, representam afronta aos direitos à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem”, opinou ela.

“A decisão da Suprema Corte trará novas discussões ao meio jurídico, vez que, além da celeuma decorrente da interpretação do Marco Civil da Internet, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), conforme disposição do artigo 4º, III, “a” e “d”, excetua de sua aplicação o tratamento de dados pessoais quando realizados para o fim exclusivo de segurança pública e atividades de investigação e repressão de infrações penais. Isso certamente ganhará novos contornos interpretativos após a decisão em comento”, prosseguiu a advogada.

Sigilo de informações
De acordo com Eduardo Maciel, sócio do escritório MFBD Advogados, tanto a Constituição quanto a LGPD garantem o direito à intimidade e à vida privada, o que assegura o sigilo de informações pessoais.

“A LGPD, em específico, veta o tratamento e a manutenção dos dados individuais e protegidos sem que haja expresso consentimento individual do cidadão, caso a caso. Nesse sentido, o Marco Civil da Internet tem de caminhar em harmonia com a LGPD. Se, por um lado, a LGPD garante o congelamento prévio de dados a pedido da polícia e do Ministério Público para fins de investigação, por outro, esse congelamento deve se limitar exclusivamente aos ‘registros de conexão’, que armazenam data, hora da conexão à internet e endereço de IP da conexão.”

Mayra Mallofre Ribeiro Carrillo, criminalista especializada em Direito Penal Econômico e sócia do Damiani Sociedade de Advogados, afirmou que em um Estado democrático de Direito é impossível admitir que órgãos de investigação adotem, por conta própria, medidas invasivas aos direitos dos cidadãos.

“Há uma enorme diferença entre a mera solicitação de preservação de registros de conexão e o congelamento do conteúdo de e-mails, fotos, contatos, histórico de localização, pesquisas, entre outros, que cabe somente ao sujeito deles dispor e administrar, em consonância com as garantias constitucionais da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Tais garantias só podem ser mitigadas nos casos expressamente autorizados por lei e mediante ordem judicial.”

Savio Nascimento da Silva, sócio da área tributária do Diamantino Advogados Associados, afirmou que na Constituição há a prevalência dos direitos e das garantias dos cidadãos e que a decisão do Supremo reafirma isso.

“Restringir o controle do cidadão sobre suas próprias informações pessoais, sejam elas fotos, e-mails ou outros registros pessoais, vai de encontro aos preceitos constitucionais das garantias previstas na Constituição Federal.”

Para Conrado Gontijo, criminalista e doutor em direito penal e econômico pela USP, a decisão é fundamental para deixar tornar mais claras as balizas interpretativas sobre a proteção de dados.

“A exigência de autorização judicial prévia é essencial, tanto para o compartilhamento, quanto para a própria preservação dos dados pessoais. É preciso que o cidadão tenha efetiva prerrogativa de administrar os seus próprios dados. O posicionamento do Supremo nesse caso, inclusive, deverá servir de norte para a análise de outros casos, em que idênticas ilegalidades foram praticadas pelos órgãos da persecução penal.”

Insegurança
Daniel Becker, sócio das áreas de Resolução de Disputas e de Proteção de Dados, Regulatório e Inteligência Artificial do BBL Advogados, achou a decisão ruim.

Segundo ele, as grandes plataformas possuem canais para comunicação e requisição de informações necessárias, desde que consideradas razoáveis e proporcionais. Por isso, defende Becker, a decisão do Supremo cria uma “sensação de insegurança” a um setor que “tradicionalmente colabora com os entes públicos”.

“Diante de tal posicionamento do Supremo, é gerado um limbo sobre o cumprimento de tais determinações, sobretudo àquelas relacionadas à preservação de dados, uma vez que ela limita a preservação aos registros de conexão. Isso tudo sem haver, na lei, uma determinação expressa de descarte, salvo aquela prevista na LGPD e em leis esparsas.”

Sofia Rezende, especialista em Compliance e Lei Geral de Proteção de Dados do Nelson Willians Advogados, disse que ao solicitar o congelamento de dados, o MP está “cumprindo um mister investigativo de ordem constitucional”, que pressupõe a boa-fé e a defesa de interesses da sociedade.

“Além disso, posteriormente ao atendimento do pedido do MP, de congelamento das informações pelos próprios provedores, houve a concessão da autorização judicial, o que não deveria ter sido totalmente desconsiderado pela decisão”, afirmou.

“O que se pode ponderar desde já é que, da mesma maneira que não podemos tolerar violações aos direitos fundamentais temos que ser cautelosos para que ninguém se utilize destes nobres argumentos para cometer crimes e se furtar à aplicação da lei”, concluiu.

A decisão
O colegiado do STF julgou nesta terça-feira (6/2) se é lícito o congelamento de dados pessoais, sem o acesso dos órgãos de investigação ao material, nos casos em que não há ordem judicial autorizando a diligência. Os ministros entenderam que provas obtidas dessa forma são nulas.

O caso concreto é o de uma mulher investigada por supostas irregularidades no credenciamento de empresas para prestação de serviços ao Departamento de Trânsito (Detran) do Paraná.

O Ministério Público paranaense conseguiu a preservação de dados pessoais dos investigados com base em previsão do Marco Civil da Internet que permite que autoridades policiais e administrativas e o MP solicitem aos provedores o congelamento de informações sem prévia autorização judicial.

O relator da matéria, ministro Ricardo Lewandowski, hoje aposentado, entendeu que o congelamento prévio previsto no Marco Civil da Internet se restringe aos chamados “registros de conexão”, que consistem em informações sobre data e hora em que a conexão à internet foi feita por um usuário, além do endereço de IP utilizado para o envio e o recebimento de pacote de dados.

Já no caso analisado, disse o ministro, o congelamento envolveu o conteúdo de e-mails, fotos, contatos e histórico de localização, o que exigiria prévia autorização judicial, ainda que o acesso às informações tenha ocorrido só depois de ordem do Judiciário. O voto do relator foi apresentado em abril de 2023, quando o pedido de Habeas Corpus começou a ser analisado em julgamento virtual.

“O direito de qualquer cidadão de administrar e dispor do conteúdo pessoal de e-mails, mensagens, contatos e históricos de localização é uma garantia individual enrijecida pelo direito à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem”, afirmou Lewandowski em seu voto. Ele foi acompanhado pelos ministros Gilmar Mendes e Nunes Marques.

HC 222.141

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