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O irretocável voto do ministro André Mendonça no RE 870.214

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15 de maio de 2024, 8h00

Minucioso e tecnicamente perfeito, o irretocável voto do ministro André Mendonça no RE 870.214 é uma verdadeira aula sobre um dos capítulos mais importantes do Direito Tributário Internacional do Brasil: A incompatibilidade do artigo 74 da MP 2.158 com o artigo 7 dos tratados contra a dupla tributação.

Aqueles que, como nós, são testemunhas oculares e participantes ativos dessa história desde o seu nascedouro, no já longínquo ano de 1995, com a edição da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro, sabem o quão intensos foram os debates e embates sobre aquela legislação inovadora, que revolucionou a sistemática de tributação dos investimentos de empresas brasileiras no exterior.

Com efeito, após breves tentativas frustradas nos anos de 1987 e 1988, foi apenas a partir do ano de 1996 que o princípio da universalidade passou a ser adotado de forma perene para tributar a renda das pessoas jurídicas residentes no país.

Sucede, porém, que a nova legislação não se bastava em tributar os rendimentos e ganhos de capital obtidos através da realização de uma atividade direta no exterior, pretendendo também tributar de forma automática os lucros auferidos pelo exercício de atividades indiretas, através de filiais, controladas e coligadas no exterior de pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil.

O artigo 25 da Lei nº 9.249 mandava adicionar o lucro dessas entidades ao lucro real da pessoa jurídica brasileira ao final do exercício quando da sua mera apuração (§2) e ressalvava expressamente (§6) que o resultado de avaliação pelo método da equivalência patrimonial – aplicável às participações detidas em controladas e coligadas – continuaria a ter o mesmo tratamento (de neutralidade fiscal), sem prejuízo do disposto nos §§ 1,2 e 3, ou seja, sem prejuízo da tributação dos lucros pelo método da adição.

Spacca

Deixando de lado as filiais, entidades desprovidas de personalidade jurídica e, por conseguinte, suscetíveis de terem seus lucros considerados como lucros próprios da matriz brasileira, a quaestio iuris girou em torno de saber se a tributação automática dos lucros de sociedades controladas e coligadas no exterior seria compatível com dois planos normativos: o artigo 43 do Código Tributário Nacional (CTN) (direito interno) e o artigo 7 dos tratados contra a dupla tributação brasileiros que seguiram o Modelo OCDE (direito internacional).

Plano interno

No que concerne à discussão face ao plano normativo interno, o voto traça, de forma didática, as diversas etapas da conturbada evolução legislativa sobre a matéria, começando pelo proposital recuo da Receita Federal que, pela Instrução Normativa 38/96, com a novel expressão “disponibilização”, reconhecia, em seu preâmbulo, a necessidade de compatibilizar o novo regime com o artigo 43 do CTN, passando pelo breve sistema de tributação (correta) dos dividendos do artigo 1º da Lei nº 9.532/97, até, finalmente, o retorno à brutal tributação automática na forma do artigo 74 da MP n. 2.158-35, de 2001, segundo o qual:

“Art. 74. Para fim de determinação da base de cálculo do imposto de renda e da CSLL, nos termos do art. 25 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, e do art. 21 desta Medida Provisória, os lucros auferidos por controlada ou coligada no exterior serão considerados disponibilizados para a controladora ou coligada no Brasil na data do balanço no qual tiverem sido apurados, na forma do regulamento.”

A questão da compatibilidade da tributação automática de lucros de uma entidade controlada ou coligada no exterior com o requisito da disponibilidade econômica e jurídica da renda exigido pelo CTN teria sido para alguns resolvido pela Lei Complementar 104 de 2001, que acrescentou um § 2º ao artigo 43 do CTN prevendo que “na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará a sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto (…)”.

A matéria foi objeto de longa discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal, iniciada na ADI nº 2.588/DF, julgada conjuntamente com o RE nº 611.586-RG/PR (Tema RG nº 537), embora finalizado em 2014, iniciou-se ainda em 2003, sob a relatoria da ministra Ellen Gracie.

A síntese das conclusões alcançadas pelo STF no plano do direito interno relativamente à constitucionalidade do artigo 74 da MP nº 2.158-35, pode ser lida nas seguintes passagens do voto do ministro André Mendonça:

“72. O debate se deu justamente a respeito da constitucionalidade do art. 74 da MP n.º 2.158, no que atina ao momento da disponibilização do resultado operacional, se havido por uma construção jurídica ou por uma operação econômica.

  1. Isso porque o art. 43 do CTN fala na incidência do IR a partir da “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica”, ao passo que o art. 74 da MP previa a disponibilização de lucros à empresa controladora nacional em vista da mera apuração no balanço das controladas.

(…..)

  1. Embora, inadvertidamente, seja propalado que este Pretório Excelso declarou a constitucionalidade do art. 74, é certo que o cenário-chave mais importante a respeito da incidência do dispositivo deixou de receber chancela neste sentido, qual seja a incidência do art. 74 de empresas controladas em países sem tributação favorecida.
  2. Numa distinção encontrada no atual regramento sobre o tema (Lei n.º 12.973, de 2014), o Supremo ponderou a incidência da norma do art. 74 a partir do nível de ingerência da controladora na empresa radicada no estrangeiro (se coligada, com menor controle; se controlada com maior controle), além de dispor sobre a situação que, objetivamente, denota um subterfúgio evasivo maior, qual seja a fixação da empresa em paraísos fiscais (ou, com tributação favorecida).
  3. Logo, a maioria decidiu como inconstitucional a tributação pelo art. 74 quando uma empresa coligada esteja instalada num país sem tributação favorecida, e como constitucional a incidência tributária no caso de uma controlada situada num país com tributação favorecida.
  4. A tese para o Tema nº 537 do ementário da Repercussão Geral, a propósito, teve sua redação restrita à aplicação da norma em relação a empresas controladas em paraísos fiscais:

O art. 74 da MP 2.158-35 aplica-se às empresas nacionais controladoras de pessoas jurídicas sediadas em países de tributação favorecida ou desprovidos de controles societários e fiscais adequados, sendo inconstitucional o parágrafo único do mesmo dispositivo legal, o qual não incide sobre os lucros apurados até 31.12.2001.” 

Plano internacional

Já no que concerne à discussão no plano do direito internacional, a questão é aparentemente complexa, porém sua solução é de uma simplicidade cartesiana.

Em primeiro lugar, nunca se duvidou que o objeto da tributação perseguido pela lei interna brasileira é o lucro da sociedade controlada ou coligada no exterior.

Isso é matéria de direito positivo. Está dito com todas as letras no artigo 25 da Lei nº 9.249/95:

“Art. 25 Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exteriorserão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondentes ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano.”

O artigo 74 da MP nº 2.158-35, já acima transcrito, faz remissão expressa ao artigo 25 e considera os lucros disponibilizados para suas finalidades, isto é, para fazer nascer a obrigação de adição dos lucros das controladas e coligadas no exterior ao lucro real das pessoas jurídicas brasileiras para apuração do imposto de renda e da CSLL.

Ora, todos os tratados contra a dupla tributação celebrados pelo Brasil, sem exceção, contêm um artigo 7, que disciplina a competência para tributação dos lucros de empresas. Na sua redação simples e direta, o artigo 7, 1, dispõe:

“1. Os lucros de uma empresa de um Estado Contratante só são tributáveis nesse Estado, a não ser que a empresa exerça sua atividade no outro Estado Contratante por meio de um estabelecimento permanente aí situado. Se a empresa exercer sua atividade desse modo, seus lucros poderão ser tributados no outro Estado, mas unicamente na medida em que forem atribuídos a esse estabelecimento permanente”.

Assim, por exemplo, se uma empresa brasileira detém o controle de uma sociedade em Portugal, os lucros obtidos por essa controlada só podem ser tributados por Portugal (competência exclusiva). O Brasil somente poderia tributar essa sociedade portuguesa caso ela dispusesse de um estabelecimento permanente (uma filial, por exemplo) e mesmo assim a tributação estaria limitada aos lucros auferidos através dessa unidade no Brasil.

A tentativa da administração fiscal de fugir das amarras da lei e dos compromissos internacionais pela sustentação criativa e sem base legal de que o objeto da tributação seria o resultado da equivalência patrimonial não escapou ao olhar crítico do voto do ministro André Mendonça:

“89. A meu sentir, improcedem os argumentos trazidos no sentido de que o lucro da controlada estrangeira repercute como lucro próprio da controladora investidora, em razão da parcela positiva do investimento, conforme o método de equivalência patrimonial. A lei brasileira (art. 74) jamais tributou o ajuste positivo de equivalência patrimonial, mas a mera adição de lucros na empresa controladora, indistintamente.

  1. O que se nota na evolução legislativa é mais uma acomodação de conceitos com o fito de tributar o lucro como mera adição ao balanço da controladora, conforme me referi à lição de Alberto Xavier. Tal qual previa o art. 25 da Lei n.º 9.249, de 1995, remanesceu com o art. 74 a mesma tributação automática dos lucros de empresas controladas no exterior, haja vista a ideia da disponibilidade direta. O mesmo parece haver em relação à atual Lei 12.973, de 2014, que, em seu art. 77, revolve-se a um conceito da equivalência patrimonial (“parcela do ajuste do valor do investimento”), tal qual a IN nº 213, de 2002, sem que substancialmente tenha sido alterada a materialidade da tributação: o lucro.” 

Ora, sendo indiscutivelmente o objeto da tributação previsto em lei o lucro da entidade controlada no exterior e tendo os tratados internacionais contra a dupla tributação primazia de aplicação ex vi do artigo 98 do CTN, dúvidas não podem subsistir que nas relações com países com tratados – como reconhecido no voto do ministro André Mendonça – o artigo 7 opera como norma de bloqueio de aplicação do artigo 74 da MP 2.158-35/01.

Extrema sensatez

O irretocável voto ainda se esmerou em examinar a questão pelos ângulos das mais recentes discussões do direito tributário internacional, enveredando sobre os conceitos e contornos das normas do tipo “CFC” (Controlled Foreign Corporation) destinadas a prevenir o diferimento da distribuição de lucros, demonstrando que “(…) o Brasil adotou uma materialidade muito distinta dos demais Estados. Enquanto os demais adotaram formas específicas para a incidência excepcional das regras CFC (conforme os patamares de rendimentos, as alíquotas dos impostos praticados no estrangeiro e a natureza dos rendimentos passivos) o Brasil, contudo, produziu uma legislação de absoluta incidência sobre lucros e resultados (full inclusion), de modo a, até mesmo, ser negada a classificação de nossa lei como regra CFC”.

Ainda há muitas outras importantes reflexões no voto sobre os critérios e regras de interpretação das convenções, o dever de lealdade do Brasil com seus parceiros internacionais, especialmente face à Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, as possíveis ressalvas de aplicação às normas de tributação nas convenções bilaterais para permitir a incidência de verdadeiras normas CFC, o projeto Beps, entre diversas outras considerações doutrinárias que muito contribuirão para o debate que se inaugura sobre o tema no STF.

As conclusões alcançadas no voto são de extrema sensatez e não negam o mister da Corte Constitucional brasileira de fazer o Brasil cumprir suas obrigações internacionais no concerto das nações, como Estado de Direito que é, observando os limites impostos pelos tratados internacionais contra a dupla tributação firmados com seus pares, como se pode ler da magistral passagem final do voto:

“139. A gravidade de se admitir um descumprimento está tanto para o relacionamento internacional público, considerados os países com os quais foram assinados os acordos, como para a legislação privada, a afugentar o investimento externo ante o claro aceno à volatilidade de nossas instituições.

140. Ainda, é perniciosa a postura não apenas em relação aos próprios contribuintes, como também ao próprio Estado de Direito. A doutrina tributária moderna tem se debruçado sobre a confiança como princípio que, na sua dimensão subjetiva, tem a função instrumental de resguardar os direitos fundamentais de liberdade do cidadão-contribuinte e, na sua vertente objetiva, opera com função estruturante do Estado de Direito enquanto Estado de Confiança, ou seja, resguarda a própria credibilidade do sistema jurídico-tributário. Nesse último caso, atua como pilar da moralidade administrativa e garantia do Estado de Direito, de modo a objetivar a ordem jurídica com credibilidade suficiente para não desconstitui comportamento induzido ao contribuinte à sombra do ordenamento jurídico vigente”.

Indiscutivelmente o voto do ministro André Mendonça é um texto que deve ser lido por todos aqueles que têm interesse na matéria e querem estudar o Direito Tributário Internacional do Brasil, disciplina fundada pelo meu mestre, professor Alberto Xavier, a quem dedico este artigo, com imensas saudades.

 

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