Opinião

STF, coisa julgada, relações jurídicas de trato continuado e anacronismo

Autores

  • Rodrigo Nery

    é doutorando e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) (com ênfase em Direito Processual Civil) pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito pesquisador do Grupo de Pesquisa CNPq/UnB Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos membro da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) integrante e orador da primeira equipe da UnB na 1ª Competição Brasileira de Processo (CBP) e advogado.

  • Rodrigo Buzzi

    é mestrando em Direito Processual Civil pela USP bacharel em Direito pela UnB e advogado.

9 de abril de 2024, 16h19

Com o recente pronunciamento do Supremo Tribunal Federal [1] a respeito da ineficácia das decisões judiciais transitadas em julgado, isso no contexto das relações jurídicas de trato continuado, algumas discussões iniciaram-se no campo doutrinário brasileiro a respeito do acerto ou não da referida corte.

Nos parece, em primeiro lugar, que é preciso esclarecer o problema, com o estabelecimento de conceitos, para, somente depois, buscar trazer uma solução. Como o objetivo deste texto não é fazer uma explanação longa, nos dedicaremos a analisar, entre outros, dois institutos: o da própria “coisa julgada” e o da chamada “cláusula rebus sic stantibus” nas decisões judiciais.

Conforme esperamos, o esclarecimento desses dois conceitos propiciará um repertório teórico mínimo para estabelecer uma nova perspectiva para o problema, que é representada por meio da seguinte pergunta: a tese da ineficácia da decisão em razão de posterior decisão positiva de constitucionalidade em controle concentrado pode ser considerada como uma hipótese de anacronismo?

Coisa julgada, decisão transitada em julgado e cláusula rebus sic stantibus

Em primeiro lugar, no que concerne à coisa julgada, em razão de diversas manifestações teóricas recentes se valendo de definições distintas, entendemos ser necessário fixar que esse instituto não deve ser confundido com a própria decisão jurisdicional.

A coisa julgada não é a decisão transitada em julgado, assim como também não é o conteúdo dessa decisão, independentemente do que seja esse conteúdo.

Nesse cenário, a coisa julgada deve ser vista como um efeito jurídico [2] que, independentemente da classificação (qualidade dos efeitos e do conteúdo da sentença [3];  imutabilidade do conteúdo [4]; efeito preclusivo [5]; entre outras [6]), não pode ser confundida com a própria decisão. Portanto, quando falamos, no contexto da decisão do STF, em ineficácia em relação ao precedente, não estamos a falar em ineficácia da coisa julgada, mas sim em ineficácia da decisão.

Divulgação/STF
stf fachada sede prédio

Trata-se, nesse caso, de uma aplicação dos ensinamentos de Liebman no que diz respeito à relações jurídicas de trato continuado [7].

Em relação, agora, à cláusula rebus sic stantibus, mais uma vez segundo Liebman [8], em teoria que tem a doutrina de Savigny como referência, “todas as sentenças contêm implicitamente a cláusula rebus sic stantibus [9].

Nesse sentido, tomando como premissa a teoria liebmaniana, mas com posteriores ajustes, havendo alteração no contexto fático e/ou no contexto jurídico que consubstanciava o cenário da decisão que se tornou indiscutível pela coisa julgada, os efeitos dessa decisão serão cessados. É o que afirma, por exemplo, Teori Zavascki [10].

Logo, a cláusula rebus sic stantibus faz com que a decisão jurisdicional se torne ineficaz quando o cenário objeto de suas determinações for modificado, seja em termos jurídicos, seja em termos fáticos.

Nesse contexto, o cerne da decisão do Supremo sobre o tema é o de que uma decisão em controle de constitucionalidade concentrado, especificamente sobre a declaração de constitucionalidade de determinada norma ou tributo, acarretaria uma modificação no cenário jurídico apta a fazer ser acionada a mencionada cláusula rebus sic stantibus do pronunciamento jurisdicional  que produziu coisa julgada.

Anacronismo?

Ora, com relação à decisão em controle concentrado que declara a inconstitucionalidade, não nos parece ser problemática a afirmação de que ela, de fato, altera o cenário jurídico. A lei declarada inconstitucional deixa de existir no ordenamento jurídico. Não é possível contar com a sua existência, e a sua presunção de constitucionalidade é afastada.

Agora, com relação à declaração positiva de constitucionalidade, nos parece que há um problema grave, e que a adoção de recentes concepções a respeito das fontes normativas do Direito e da função das decisões jurisdicionais sem a devida adaptação de construções doutrinárias antigas faz com que inevitavelmente seja possível perguntar se não estaria havendo, nesse caso, um anacronismo na aplicação teórica.

É que, a teoria da cláusula rebus sic stantibus aplicada aos pronunciamentos jurisdicionais, como dito, é inspirada em uma concepção de Savigny, que serviu de fundamento para a visão de Liebman, exposta em obra que teve grande aceitação no Brasil.

Referimo-nos ao famoso trabalho intitulado de Eficácia e Autoridade da Sentença (título da tradução brasileira [11]), cuja primeira edição italiana foi publicada ainda na primeira metade do século passado. A tradução que consultamos é de 1984.

Nesse sentido, surge a pergunta: será que na época em que Liebman escreveu sua obra, já se podia pensar como algo consolidado a possibilidade de uma Corte Suprema, mediante declaração positiva de constitucionalidade, gerar um produto normativo que se equipararia à eficácia normativa de uma nova lei? Qual era a visão existente em sua época a respeito, especificamente, do efeito declaratório das decisões jurisdicionais?

Spacca

De algumas breves consultas que fizemos, percebemos que, não obstante o desenvolvimento da concepção a respeito da tutela jurisdicional como criadora de normas jurídicas, a noção de efeito declaratório das decisões jurisdicionais, ao menos em meados do século passado, era vista como uma simples declaração de algo que já existia, e, não obstante o aspecto criativo do agir jurisdicional, entendia-se que a noção declaratória seria uma forma de garantia do princípio da legalidade.

É isso o que afirma o próprio Enrico Tullio Liebman, em artigo, frisa-se, dos anos 1980, em que, curiosamente, comenta o famoso trabalho de Mauro Cappelletti sobre a noção de “juízes legisladores” (“giudice legislatori”) [12].

No contexto brasileiro, por sua vez, vale menção aqui à obra de Pontes de Miranda, ao ter afirmado esse autor que, no âmbito da tutela declarativa, “Só se pede que se torne claro (de-clare), que se ilumine o recanto do mundo jurídico para se ver se é, ou se não é, a relação jurídica que se trata. O enunciado é só enunciado de existência[13].

Tanto é assim que Pontes entendia que a declaração de inconstitucionalidade deveria ser considerada, na verdade, como uma desconstituição, tendo sido voto vencido nesse tema, conforme aponta Thompson Flores Lenz [14].

Vale destacar, entretanto, que autores com Piero Calamandrei viam, na declaração positiva de constitucionalidade pela Corte Suprema, uma declaração com eficácia de interpretação autêntica (“interpretazione autentica[15]).

Também em Kelsen já se observa as possibilidades normativas de uma decisão de constitucionaliadade [16]. Se usarmos, por exemplo, o conceito de Kelsen de interpetação autêntica para interpretar a afirmação de Calamandrei, poder-se-ia cogitar um algo mais do que uma simples declaração da norma jurídica nos efeitos declaratórios da decisão de controle de constitucionalidade, ainda mais levando-se em conta a natureza jurídica que Calamandrei atribuía à atuação da Corte Constitucional [17].

Mas, então, fixada a controvérsia acima, como deve ser vista a decisão positiva de constitucionalidade do Supremo em controle concentrado? Sob essa ótica, a respeito da declaração jurisdicional, poder-se-ia dizer que haveria alguma modificação no ordenamento jurídico, a ativar a citada cláusula rebus sic stantibus contida implicitamente nas sentenças?

A resposta é a seguinte: se, até hoje, um autor de grande relevância como o professor Luiz Guilherme Marinoni afirma que “Não há dúvida de que a declaração de constitucionalidade não modifica o ordenamento jurídico, mas antes o afirma, pronunciando a legitimidade constitucional de uma norma posta em dúvida[18], torna-se plenamente razoável defender que inexiste alteração no ordenamento jurídico quando há a tutela declaratória positiva de constitucionalidade.

Da mesma forma, se hoje ainda se fala em não ocorrência de modificação, naquele período, em que prodominava uma ideia marcante de jurisdição declaratória, provavelmente também faria sentido defender tal posicionamento.

Nesse diapasão, eis a seguinte inquietação: será que os juristas que teorizaram sobre coisa julgada, decisão e relações jurídicas de trato continuado na metade do século passado teriam estabelecido exatamente a mesma teoria, nos mesmos moldes, se concebessem que a decisão declaratória positiva de constitucionalidade, do Supremo Tribunal Federal, poderia alterar o ordenamento jurídico [19]?

Porque, vejam só o que aconteceu: na prática, aplicou-se um entendimento clássico sobre a ineficácia da decisão em razão de posterior modificação de cenário jurídico, consolidado, no mínimo, na primeira metade do século passado [20], mas com uma arrebatadora modificação, no que diz respeito à adoção de uma teoria da jurisdição completamente distinta.

Ou seja: modificaram um detalhe da teoria, a título de adaptação, e deram continuidade às reflexões. Eis então a dúvida: essa simples modificação ou adpatação, que, não obstante ser um detalhe, afeta todo o raciocínio sobre o tema, não seria um anacronismo?

Por que anacronismo? Porque, se formos citar a teoria considerando todo o contexto em que ela foi elaborada, provavelmente nos depararíamos com uma noção de jurisdição declaratória positiva, ainda que constitucional, como uma simples declaração de algo que já existe, não alterando o ordenamento jurídico.

Se isso for verdade, então a aplicação da teoria da cláusula rebus sic stantibus implícita nas sentenças judiciais acaba sendo deturpada com a inserção dessa nova forma de ver a tutela declaratória.

Uma última questão

Neste momento, surge a última pergunta deste texto: se os teóricos da metade do século passado tivessem essa noção moderna a respeito da tutela declaratória positiva no controle de constitucionalidade como meio para alterar o ordenamento jurídico, será que eles não iriam desenvolver uma teoria (dos efeitos da decisão que produziu coisa julgada) que resistisse a uma posterior decisão no âmbito da jurisdição constitucional? Será que aceitariam equiparar, em termos práticos (com as devidas ressalvas a particularidades), uma decisão jurisdicional a uma lei?

Por fim, não negamos que, para alguns autores, como os aqui citados Teori Zavascki e Luiz Guilherme Marinoni, a vinculação decorrente da decisão em controle concentrado de constitucionalidade faz com que os órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública Federal, estadual e municipal estejam vinculados [21].

Por essa razão, ressalvando respectivas especificidades de cada teoria, a declaração positiva de constitucionalidade, somada à ampla vinculação, deve ser considerada, para esses juristas, como suficiente para retirar a eficácia de sentença que produziu coisa julgada.

Ainda que seja pautado em fundamentos sólidos, ousamos respeitosamente discordar do entendimento acima. Em primeiro lugar, a vinculação decorrente da decisão do STF se dá por fator externo, e não em razão do conteúdo da decisão.

O conteúdo decisório, em sua essência, é declaratório. Daí por que, das duas uma: ou se concebe que a declaração positiva de constitucionalidade altera materialmente o ordenamento jurídico, tendo efeitos constitutivos, ou se considera que ela não gera alteração alguma, em sua essência.

Se a opção for pela segunda hipótese, então a vinculação em si somente pode derivar de um fator externo ao conteúdo decisório, um efeito processual que, por ser processual, traz consequências procedimentais para eventual descumprimento da decisão (ex: cabimento de reclamação).

Em sendo, portanto, uma vinculação processual, e não de direito material, significa dizer que, em termos de direito material, ainda assim é possível outras interpretações jurídicas, inclusive por particulares, que poderão, eventualmente, ser questionadas jurisdicionalmente pelos meios processuais cabíveis em razão da vinculação existente.

Mas ainda assim, essa vinculação é processual, e não material. Em termos materiais, o ordenamento jurídico não mudou. O que mudou, de fato, é a liberdade do magistrado de decidir sem consequências jurídicas processuais constatáveis por eventual interpretação diversa.

Mas é em razão disso que, agora, fazemos a seguinte constatação: a coisa julgada, vista como um fenômeno preclusivo [22], também é uma vedação à rediscussão de questão. Se a parte afetada for tentar rediscutir a questão objeto de decisão transitada em julgado, terá seu processo extinto sem resolução de mérito, em razão de ter havido coisa julgada.

Por outro lado, ela poderia alegar (como forma de tentar contornar a coisa julgada) que o juiz deveria decidir em conformidade com a decisão do STF posterior à res iudicata, isso em razão de o juízo estar vinculado a esse pronunciamento.

Prevalência da coisa julgada

A única solução adequada para esse caso, a meu ver, é a seguinte: a coisa julgada, por ser uma extinção da possibilidade de rediscussão da questão decidida, impede qualquer rediscussão dentro dos seus limites objetivos, inclusive para fins de verificar como que o juiz decidiria de novo. Não abre-se oportunidade para entrar no campo meritório, a possibilitar uma nova decisão do juízo.

Em sendo assim, considerando o status constitucional da coisa julgada, é indubitável que não pode haver rediscussão da questão, mesmo com uma alteração processual a título de vinculação dos magistrados futuros. Ainda que essa alteração processual (vulgo vinculação) possa ter origem em uma decisão do STF, a coisa julgada, por ser resguardada pela própria Constituição Federal, deve prevalecer em face dessa vinculação.

Essa prevalência se dá tanto em termos lógicos, por se tratar de uma vedação de rediscussão, a impedir que novos juízos adentrem no mérito para verificar se estão ou não vinculados; quanto de hierarquia constitucional, tendo em vista se tratar de garantia constitucionalmente assegurada.

Como a vinculação decorrente da decisão do STF é “processual”, e não material (caso se adote essa teoria), não terá havido, por conseguinte, alteração no ordenamento jurídico, o que afasta qualquer alegação de suposta ativação da cláusula rebis sic stantibus da decisão. Por não haver essa ativação, a decisão transitada em julgado não perde a sua eficácia nesse caso.

 

 


[1] RE 955.227 (Tema 885) e RE 949.297 (Tema 881).

[2] TALAMINI, Coisa julgada e sua revisão, 2005, p. 44-45

[3] LIEBMAN, Eficácia e autoridade da sentença, 1984, p. 54

[4] BARBOSA MOREIRA, Ainda e sempre a coisa julgada, 1971, p. 141-143

[5] CABRAL, Coisa Julgada e Preclusões Dinâmicas, 2018, p. 306

[6] Sobre o tema, cf. NERY, Repensando a coisa julgada e os motivos da decisão, 2022, p. 73-54.

[7] LIEBMAN, Eficácia e autoridade da sentença, 1984, p. 25.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] ZAVASCKI, Coisa julgada em matéria constitucional…, 2005, p. 118.

[11] LIEBMAN, Eficácia e autoridade da sentença, p. 25

[12] LIEBMAN, Enrico Tullio. “Giudici Legislatori?”. Rivista di Diritto Processuale, 1984, p. 760.

[13] Pontes  de Miranda, Tratado das ações: tomo I…, 2016, p. 160

[14] LENZ, Evolução do controle, 2015, p. 550. Há uma certa divergência sobre a expressão “desconstituição” na doutrina ponteana, isso quando aplicada ao contexto das nulidades. Fica, portanto, o alerta, pois, a depender da interpretação da obra de Pontes de Miranda, a premissa aqui adotada, quanto a esse autor, pode não subsistir.

[15] CALAMANDREI, Opere Giuridiche…vol. 3, 2019, p. 394.

[16] LENZ, evolução do controle, 2015, p. 551.

[17] Calamandrei, Opere Giuridiche…vol. 3, 2019, p. 387-388.

[18] MARINONI, Processo constitucional e democracia, 2021, p. 1170.

[19]  Em outras palavras: se esses teóricos pudessem ter noção de como se opera o sistema hoje, será que teriam estabelecido essa teoria da mesma forma que em sua época?

[20] Para justificar essa teoria, a obra mais recente citada por Teori Zavascki foi, justamente, o trabalho de Liebman. Sobre o tema, cf. ZAVASCKI, Coisa julgada em matéria constitucional…, 2005, p. 118

[21] MARINONI, p. 1170; ZAVASCKI, p. 129, mencionando a eficácia erga omnes.

[22] CABRAL, Coisa Julgada e Preclusões Dinâmicas, 2018, p. 306, sem desconsiderarmos aqui a posição desse autor quanto ao tema objeto deste artigo, que é relativamente distinta da nossa em vários pontos.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito pela UnB (com ênfase em Direito Processual Civil), pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Baiana de Direito, membro do Grupo de Pesquisa Processo Civil, Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (GEPC-UnB) e advogado.

  • é mestrando em Direito Processual Civil pela USP, bacharel em Direito pela UnB e advogado.

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