Diário de Classe

O juiz Hércules olhou para o espelho e disse: 'eu sou um idiota'

Autor

20 de abril de 2024, 8h00

 1. Hércules e o impossível

Alguém com um mínimo e razoável aprofundamento no estudo das teses, argumentos e alegorias que encontramos nos debates contemporâneos sobre teoria do direito ou da teoria da decisão judicial, já leu ou ouviu falar a respeito da figura dworkniana do “juiz Hércules”.

Para Dworkin, o direito é um “conceito interpretativo”, de modo que, reduzindo-se o fenômeno jurídico à sua célula básica, encontramos a barreira definitiva que se ergue contra o acionamento do uso legítimo da força pelo Estado. Assim, quando uma juíza decide, seu esforço hermenêutico parte – expressa ou implicitamente – da adoção de uma resposta para a seguinte pergunta: existem razões substantivamente legítimas para que a força do Estado seja ou não refreada neste momento? Simplificando um pouco as coisas: Dworkin defenderá que a resposta correta para essa pergunta envolve a noção de “integridade”; essa “força oficial” pode ser imposta se o conjunto regras e princípios consolidados no passado de uma dada comunidade política, interpretado de forma construtiva – i.e., a partir de uma posição hermenêutica comprometida com o passado, mas ciente dos desafios do futuro –, assim autorizar.

Uma leitora atenta poderia dizer: “isso não esclarece muito as coisas? É um tanto quanto óbvio que o direito envolve uma prática discursiva de legitimação do uso da força oficial”. Para a sorte de pessoas pouco esclarecidas como eu e essa leitora hipotética, Dworkin nos traz duas alegorias bastante elucidativas: (1) o romance em cadeia e (2) a mencionada personagem do juiz Hércules.

A primeira ideia envolve, em resumo, o seguinte: para compreender a resposta que a integridade oferece para essa relação entre direito e validação permanente da coerção, pensemos em um romance escrito, ao longo do tempo, por uma sequência de autores. Entre o primeiro autor e aqueles que o seguirão no enredo, há um vínculo que impõe duas responsabilidades: (1) o autor do presente não pode simplesmente desconsiderar as tramas que já foram estabelecidas no passado (v.g. não pode desconsiderar que Hamlet é a personagem principal, e não Horácio); ao mesmo tempo, (2) o autor do presente deve realizar um exercício crítico e prospectivo capaz de direcionar a estória para um “bom caminho”, em termos de qualidade literária (v.g. Hamlet não pode simplesmente fazer as malas, viajar para o Rio de Janeiro e começar a dar aulas de piano). Em outras palavras, os autores que vão surgindo no caminho não podem desconsiderar o trabalho desenvolvido pelos seus antecessores, mas também não podem simplesmente repetir o que já foi dito ou ignorar os propósitos centrais da mensagem da obra iniciada. Hércules é justamente o juiz que Dworkin nos apresenta para aprofundar essa primeira ideia, aplicando-a para o exame da decisão judicial.

O processo de captura dos elementos essenciais daquilo que já foi estabelecido no romance, associado a esse processo reflexivo crítico, demanda do intérprete – do juiz – a tarefa de “testar sua interpretação acerca de qualquer parte da grande rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade perguntando se ela é capaz de fazer parte de uma teoria coerente que justifique essa rede como um todo[1]. A tarefa, como se percebe, é digna de um semideus; um juiz, sempre que analisasse um determinado caso concreto envolvendo, por exemplo, um tema de responsabilidade civil, deveria realizar a reconstrução da tradição institucional dessa “parte da rede” do ordenamento jurídico, e verificar se a sua interpretação de fato renova a legitimidade política dessa parte do todo, de forma a apresentar essa não apenas como “uma fração”, mas uma “fração íntegra e coerente com o todo”.

Alguém – e muitos de fato o fizeram – poderia objetar: “isso é impossível…não há tempo…os problemas precisam ser resolvidos de forma eficiente…menos é mais[2]. Apesar dessa possível objeção, gostaria de propor uma abordagem de outro nível: e se, ao invés de simplesmente afastarmos a viabilidade do modelo “Hércules” de juiz, realmente refletíssemos sobre o quão distantes estamos desse modelo? A partir dessa autocrítica, será que nós, comunidade jurídica, não chegaríamos à conclusão de que estamos tão distantes de Hércules que mesmo o passo mais tímido e factível em sua direção já nos levaria a um nível gritantemente mais confortável sob o ponto de vista institucional? Ainda que não possamos ser deuses, não podemos ao menos nos esforçarmos para enxergar as luzes da sacada do Olimpo?

2. O roubo a banco e a máscara de suco de limão

Charles Darwin disse certa vez que “a ignorância gera confiança mais frequentemente do que o próprio conhecimento[3]. O ponto é: o não saber não só nos afasta da verdade, mas nos impõe um dado estado de cegueira que acreditamos piamente que a verdade está ao nosso lado. David Dunning e Justin Kruger, dois psicólogos sociais estadunidenses, foram a fundo nessa proposição, desenvolvendo um argumento que se consolidou como o conhecido “efeito Dunning-Kruger”. O estudo empírico desses autores inicia contando um interessante causo.

Em 1995, na cidade de Pittsburg, EUA, dois assaltantes de banco, “in broad daylight”, realizaram um assalto audacioso: ignoraram quaisquer câmeras de segurança, não utilizaram máscaras ou algo que escondesse seus rostos e assaltaram um banco da cidade. Poucas horas depois, a polícia já os havia identificado a partir das filmagens e realizado a prisão de ambos. Ocorre, no entanto, que, ao serem presos, um dos assaltantes, Mr. Wheeler, parecia incrédulo com o fracasso da empreitada e soltou a seguinte frase: “mas eu estava usando suco”.

Aparentemente, Wheeler – e seu parceiro, McArthur foi na onda – havia visto em algum lugar que o suco de limão possuía certas propriedades que tornavam a pessoa “invisível” aos sistemas de identificação das câmeras de segurança. Dunning e Krueger, movidos por causos como o de Wheeler e McArthur, resolveram testar a proposição inicial de Darwin: “quando pessoas são incompetentes nas estratégias que adotam para atingir o sucesso e satisfação, elas sofrem de um fardo duplo: não apenas atingem conclusões equivocadas e fazem escolhas desafortunadas, mas a incompetência rouba delas a habilidade de perceber que isso está acontecendo[4].

O resultado do estudo confirmou a proposição. Por meio dos vários testes realizados com grupos de controle pelos dois autores, foi possível constatar que indivíduos com menos aptidão naturalmente tendiam para uma supervalorização de suas capacidades, ao passo em que indivíduos de maior aptidão tendiam a avaliar suas competências com maior precisão. No entanto, o mais interessante do estudo é notar que a curva de aprendizagem envolve sempre uma abertura inicial para o contato do indivíduo com a própria ignorância. Na medida em que se avança com a capacidade reflexiva, naturalmente se acaba desenvolvendo as capacidades “metacognitivas” necessárias para perceber que, no fim do dia, não se sabe nada.

3. Hércules sabe que é um idiota

A Crítica Hermenêutica do Direito (CHD) de há muito trata a respeito da busca incessante da comunidade jurídica por “respostas antes das perguntas”. Entramos em contato com mudanças de paradigma consideráveis, como é o caso do debate sobre a (tentativa de) superação do “modelo de regras” (positivismo jurídico) pelo “modelo de regras e princípios” (interpretativismo), mas caímos em uma paisagem de absoluta banalização da ideia de princípio. Acreditamos tanto que dominamos essa categoria, que a utilizamos com uma certa leviandade assustadora, dentro daquilo que o professor Lenio Streck caracteriza como o problema do neoconstitucionalismo (pamprincipiologismo) [5], fragilizando até mesmo o dito “estatuto epistemológico” dos domínios específicos da ordem e conhecimento jurídico, tal como denunciado, no âmbito do direito civil, por autores como Otávio Luiz Rodrigues Jr. [6]. Em outras palavras, a ideia de “princípio” – não raras as vezes confundida como sinônimo de “valor” [7] – virou o nosso suco de limão; assaltamos o direito sem máscaras, crentes da nossa própria genialidade.

O mesmo acontece com outras tantas categorias jurídicas relevantes, como é o caso dos precedentes; nos “reencantamos” [8] com o CPC e a pretensão de instauração de um “sistema de precedentes à brasileira” [9], que ignoramos por completo a tamanha complexidade do ofício de interpretar um precedente, identificar a sua ratio decidendi. Essa complexidade, por sua vez, é bem reconhecida pela tradição do common law – uma tradição que sabe bem o que é um precedente, diferentemente de nós. Em outros momentos, mesmo o texto expresso da lei e da Constituição acaba perdendo lugar para construções interpretativas salomônicas, contra qualquer noção de limites semânticos ou hermenêuticos.

Enfim, retornando ao princípio, Hércules é Hércules, não porque sabe o que é um princípio, como interpretá-lo, identificá-lo, por saber se todo princípio se faz presente em uma regra ou se toda regra representa um princípio, ou porque sabe o que é um precedente, como identificar a sua ratio decidendi, ou por ter compreensão da existência entre uma separação ontológica entre texto e norma, com a consciência da necessidade de respeito aos limites hermenêuticos do primeiro. Hércules é Hércules, porque sabe a grandeza do seu fardo e dificuldade da sua tarefa; conhece suas limitações como quem conhece o reflexo do próprio rosto no espelho – e sem suco de limão. Hércules, no fundo, sabe que é só mais um idiota. Talvez, se nos déssemos conta disso na hora de “fazer a coisa certa” [10], poderíamos começar a ver, de longe, a borda do Olimpo.

 


[1] DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: The Belknapp Press, 1986. p. 245.

[2] Para aprofundamentos a respeito dessa objeção, ver: LOPES, Ziel Ferreira. Onde habita o juiz Hércules? Uma aproximação entre teorias da interpretação e questões institucionais. 2020. Tese de doutorado – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Faculdade de Direito, São Leopoldo, 2020.

[3] DARWIN, C.. The descent of man. London: John Murray, 1871.  p. 3.

[4] KRUGER, Justin; dunning, David. Unskilled na Unaware of It: How Difficulties in Recognizing One’s Own Incompetence Lead to Inflated Self-Assessments. Journal of Personality and Social Psychology. 1999, v. 77, n. 6. 121-1134

[5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. rev. ampl. São Paulo: Saraiva, 2017.

[6] RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Direito Civil contemporâneo: Estatuto epistemológico, Constituição e direitos fundamentais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023

[7] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2020.

[8] Ver: https://www.conjur.com.br/2023-abr-13/senso-incomum-parafuso-bacon-francis-bacon-reencantamento-direito/

[9] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes Judiciais e Hermenêutica – o sentido da vinculação no novo cpc/2015. 5 ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2024.

[10] STRECK, Lenio Luiz. O que é fazer a coisa certa no direito? São Paulo: Dialética, 2023

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!