Diário de Classe

Teorias de ocasião e o crepúsculo dos deuses

Autor

  • Vinícius Quarelli

    é mestrando em Direito Público pela Unisinos editor-adjunto da Revista Constituição Economia e Desenvolvimento: Revista Eletrônica da Academia Brasileira de Direito Constitucional (Qualis A3 ISSN 2177-8256) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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4 de maio de 2024, 8h00

1. A genealogia dos conceitos

A instrumentalização das teorias jurídicas constitui um dos grandes problemas contemporâneos para a integridade do Direito. Isso porque o dilema atual não reside tão somente na compreensão das teorias jurídicas, mas, igualmente, na forma pela qual elas são frequentemente adaptadas e, em muitos casos, distorcidas para servir a interesses particulares ou conjunturais, desviando-se de seus propósitos originários. Com efeito, cumpre reiterar que assim como os textos, as teorias não são tudo; mas também não podem ser nada (cf. aqui).

Nesse contexto, a ideia de álibis teóricos, forjada por Lenio Luiz Streck, desempenha um papel importante na crítica à instrumentalização das teorias jurídicas [1]. Essa conceituação nasce da observação de que, frequentemente, as teorias jurídicas são empregadas não tanto por sua capacidade de esclarecer e resolver problemas legais de maneira coerente, mas sim como ferramentas retóricas para fornecer uma cobertura teórica a decisões que, de outra forma, pareceriam discricionárias ou infundadas.

Álibis teóricos, portanto, traduzem-se numa ação deliberada de manipulação das teorias para servir a interesses que não são necessariamente os propostos pela teoria em sua concepção original. Isso é particularmente evidente quando decisões judiciais são justificadas através de argumentações teóricas que parecem sólidas à primeira vista, mas que não suportam uma análise mais profunda quanto à sua verdadeira aplicabilidade ao caso concreto.

Por conseguinte, os álibis teóricos são um sintoma de uma prática jurídica que desvirtua o uso genuíno das teorias como guias para a interpretação e aplicação do direito, substituindo-o por uma prática onde as teorias são reduzidas a meros instrumentos de justificação post hoc de decisões tomadas com base em outros critérios, que não os jurídico-teóricos.

Enquanto os álibis teóricos representam uma forma deliberada de distorção das teorias jurídicas, eles são complementados por um fenômeno correlato, as teorias de ocasião — um outro fenômeno a que dou nome no sentido de, neste espaço, definir e distinguir algumas das suas nuances no contexto jurídico.

Embora este último fenômeno possa ter uma relação de cooriginariedade para com os álibis teóricos, importa assentar desde logo que as teorias de ocasião se distinguem por uma nuance importante: elas não são a própria instrumentalização, mas sim o subproduto desta prática que, quer seja ela culposa ou dolosa, surgem como respostas adaptativas a situações específicas, frequentemente sem uma conexão profunda ou genuína com os princípios fundamentais que regem suas aplicações típicas.

Dessa forma, as teorias de ocasião refletem uma espécie de oportunismo teórico, onde a escolha de uma teoria jurídica para aplicar em um determinado caso é ditada mais pela conveniência ou pela peculiaridade do momento do que por uma aderência estrita aos propósitos originais da teoria. Tal resultado, embora não necessariamente desonesto ou manipulativo, pode levar a uma aplicação inconsistente e ocasional das teorias, resultando em uma jurisprudência fragmentada e potencialmente incoerente.

Isso sublinha uma preocupação com a estabilidade e previsibilidade do direito, aspectos que são comprometidos quando as teorias são aplicadas de maneira tão flexível que seus propósitos fundamentais são ofuscados ou ignorados. Assim, enquanto os álibis teóricos são uma crítica à instrumentalização explícita das teorias para fins espúrios, as teorias de ocasião apontam para o risco de uma prática jurídica que, embora menos calculadamente distorcida, é problemática pela sua falta de compromisso com a coerência teórica e argumentativa.

2. Exemplos de teorias de ocasião

A teoria dos direitos fundamentais e a lei da ponderação desenvolvida por Robert Alexy, por exemplo, são propostas projetadas para mediar e resolver a colisão entre princípios constitucionais de maneira pretensamente racional e sistemática. Estas propostas não somente enfatizam a necessidade de uma balança cuidadosa entre direitos e deveres conflitantes, mas também propõem uma metodologia rigorosa para garantir que cada decisão seja justificada a partir da análise das razões e contrarrazões pertinentes aos princípios em jogo e ao seu respectivo peso [2].

No entanto, conforme apontado pelo jurista Fausto de Morais [3], existe uma aplicação inadequada e superficial destas articulações teóricas pela comunidade jurídica brasileira, especialmente pelo STF (aqui, p. ex.). Morais argumenta que, em muitas situações, a ponderação é empregada mais como um dispositivo retórico do que como um método de deliberação jurídica autêntica. Essa prática transforma a ponderação em um mero formalismo, utilizado para endossar decisões que, apesar de parecerem fundamentadas em princípios constitucionais, na realidade já foram decididas com base em outros critérios menos transparentes e teoricamente fundamentados [4].

Esse uso distorcido falha em capturar a essência da ponderação como um processo genuíno de racionalidade procedimental, conforme Alexy a concebeu. Em Alexy, pressupõem-se uma análise minuciosa que equilibre a importância relativa dos princípios em colisão, considerando as especificidades de cada caso para determinar qual princípio deve prevalecer. Tal abordagem requer uma exploração detalhada das implicações de privilegiar um princípio sobre outro, garantindo que a decisão final seja a mais adequada quanto possível dentro do quadro legal existente.

Adicionalmente, Morais declara que a prática observada no STF muitas vezes reduz a complexidade da ponderação a um processo superficial, onde a retórica substitui a análise substancial. Isso resulta em uma jurisprudência que pode parecer arbitrária ou desvinculada dos princípios que deveriam orientar a interpretação e aplicação das leis. Esta abordagem não somente compromete a integridade das decisões judiciais, como também pode levar a uma percepção de que as decisões são manipuladas ou influenciadas por fatores externos à própria lógica jurídica.

Portanto, a crítica de Morais destaca uma preocupação significativa com o modo como a ponderação alexyana tem sido aplicada no Brasil. O desvio da aplicação meticulosa e detalhada proposta por Alexy revela uma falha estrutural na prática jurídica do país, transformando a ponderação em uma mera Teoria de ocasião, utilizada de acordo com a conveniência das circunstâncias, sem a aderência ao rigor teórico que é fundamental para a sua eficácia. Tal situação sublinha a necessidade urgente de revisão e reforma na aplicação das teorias jurídicas no sistema legal brasileiro, para restabelecer a confiança na justeza das decisões judiciais e na integridade do Direito [5].

Similarmente, a teoria dos princípios de Ronald Dworkin [6] é fundamental no entendimento de que os princípios jurídicos não são apenas normas jurídicas opcionais, mas possuem uma carga deontológica significativa que exige um exame minucioso e respeitoso. Dworkin propõe que os princípios devem ser vistos como razões que determinam o fenômeno jurídico enquanto tal e, bem por isso, a aplicação correta dessa teoria requer que os juízes façam mais do que simplesmente identificar os princípios relevantes; eles devem justificar sua importância relativa no contexto específico de cada caso, considerando a coerência e a integridade do sistema legal como um todo.

No entanto, a realidade da jurisprudência brasileira, como aponta Lenio Luiz Streck, revela uma deturpação significativa dessa abordagem teórica. Os tribunais no Brasil têm, frequentemente, adotado uma prática descrita como “pamprincipiologismo” [7], na qual os princípios são criados de maneira artificial e sem necessidade real, transformando-os em meros instrumentos para “justificar” decisões que já foram tomadas com base em outras motivações. Esta prática de fabricar princípios ad hoc desconsidera a exigência de Dworkin para que os princípios sejam tratados com seriedade e respeito, pois eles são fundamentados em considerações sociais profundas que transcendem as preferências do julgador.

A consequência dessa abordagem é uma erosão da integridade do Direito, em que princípios sem uma base sólida ou necessária são utilizados para sustentar decisões duvidosas. Isso não apenas contradiz a teoria de Dworkin, mas também compromete a percepção de justiça e equidade do sistema jurídico. Além disso, essa prática pode levar à incoerência jurisprudencial, pois a criação indiscriminada de princípios pode resultar em uma aplicação desigual e contraditória do direito.

Ao desvirtuar a racionalidade do pensamento de Dworkin, os tribunais brasileiros não apenas falham em aderir ao rigor teórico necessário para uma aplicação legítima do seu legado teórico, como também comprometem a própria função dos princípios como normas que efetivamente justifiquem o processo da tomada de decisões judiciais. Este abuso da teoria de Dworkin não só transforma os princípios em uma teoria de ocasião, utilizada conforme a conveniência do momento, mas também mina a confiança no sistema jurídico, colocando em xeque a legitimidade e a autoridade das decisões judiciais.

A crítica apontada por Streck chama a atenção para a necessidade urgente de uma reflexão profunda sobre como os princípios são integrados na jurisprudência brasileira. É fundamental que os tribunais se orientem para uma prática que respeite a profundidade normativa dos princípios, garantindo que eles sirvam como verdadeiros fundamentos de interpretação e aplicação do Direito, e não como meros ornamentos para pretensamente justificar decisões discriminatoriamente tomadas.

As implicações de tais práticas são profundas, refletindo uma crise na aplicação do direito que vai além da mera instrumentalização de teorias. Ao transformar a ponderação alexyana e a concepção de princípios em Dworkin em meras teorias de ocasião, o sistema jurídico brasileiro revela uma tendência preocupante de distanciamento dos fundamentos teóricos rigorosos em favor de uma aplicação mais flexível e conveniente da tradição jurídica que deve(ria) nos legar um patrimônio conceitual.

Isso não apenas compromete a integridade das decisões judiciais, como também mina a confiança no sistema jurídico como um todo, pois subordina o direito a uma lógica de conveniência e oportunidade. A longo prazo, tal prática pode corroer os alicerces da própria democracia, na medida em que as decisões judiciais deixam de ser vistas como justas e passam a ser percebidas como manipuladas ou artificialmente construídas. Portanto, é crucial uma reflexão e revisão sobre como as teorias jurídicas são aplicadas, assegurando que sirvam ao seu propósito original.

3. O dilema contemporâneo

Em suma, ordeno a exposição dos conceitos discutidos: os álibis teóricos representam a instrumentalização das teorias jurídicas, onde estas são deliberadamente desviadas de seus objetivos fundamentais para respaldar decisões pré-estabelecidas por critérios pouco transparentes. Por sua vez, as teorias de ocasião, surgem como possíveis manifestações desses álibis, adaptando-se flexivelmente às circunstâncias sem um compromisso firme com os princípios originais das teorias. Em forma de conceito, teorias de ocasião são teorizações que são utilizadas em desacordo com a sua racionalidade e diferenciam-se do álibi teórico na medida em que podem ocorrer de forma não intencional.

Para concluir, embora figuras como Ronald Dworkin e Robert Alexy tenham contribuído significativamente para enriquecer o entendimento contemporâneo do direito com suas robustas teorias, observa-se que até mesmo suas ideias sofrem distorções no ambiente jurídico brasileiro. Este cenário é reflexo de um realismo jurídico muitíssimo peculiar ao contexto brasileiro, onde predomina a concepção de que “o Direito é aquilo que os Tribunais dizem que é” e que, em adição a isso, traz consigo uma prática em que as teorias jurídicas são frequentemente transfiguradas para se alinhar com interpretações que elas originalmente não previam. Este fenômeno não apenas revela um niilismo interpretativo, mas destaca um paradoxo onde as teorizações mais clássicas são simultaneamente veneradas em teoria e distorcidas na prática.

Assim, a prática jurídica no Brasil está diante de um desafio crítico de realinhar suas interpretações e aplicações teóricas à tradição jurídica, sob risco de se tornar cada vez mais irracional e ocasional, e da própria tradição se tornar o resquício de um passado em decadência.

 


[1] Nesse contexto, recomendo a leitura do livro no qual o autor explora de forma detalhada as várias dimensões deste problema: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[2] Cf: (i) ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011; (ii) ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015; e (iii) ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[3] MORAIS, Fausto Santos de. Ponderação e arbitrariedade: a inadequada recepção de Alexy pelo STF. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2018.

[4] Nota explicativa: “A ponderação será o modo de resolver os conflitos jurídicos em que há colisão de princípios, num procedimento composto por três etapas: a adequação, necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. As duas primeiras se encarregam de esclarecer as possibilidades fáticas; a última será responsável pela solução das possibilidades jurídicas do conflito, recebendo do autor o nome de lei do sopesamento (ou da ponderação), com seguinte redação: ‘[…] quanto maior for o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior terá que ser a importância da satisfação do outro'”. In: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. 2. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 257.

[5] Nesse sentido: LORENZONI, Pietro Cardia. Jurisdição constitucional de crise: o papel do STF no enfrentamento das crises constitucionais. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

[6] Cf: (i) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002; (ii) DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005; e (iii) DWORKIN. Ronald. O império do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

[7] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. op. cit. p. 253 e seg.

Autores

  • é bolsista Capes/Proex, doutorando e mestre em Direito Público pela Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), pós-graduado em Teoria do Direito, Dogmática Crítica e Hermenêutica pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional), bem como em Direito Constitucional pela mesma instituição, advogado, membro do Dasein (Núcleo de Estudos Hermenêuticos) e editor da Revista da ABDConst.

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