Opinião

Constitucionalidade do uso de precatórios federais para recebimento em dinheiro

Autor

  • Ravi Peixoto

    é doutor em direito processual pela Uerj mestre em Direito pela UFPE procurador do município do Recife professor da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e advogado.

30 de novembro de 2023, 6h30

Em recente texto, examinei a emenda que criou o teto de precatórios da União e defendi a sua inconstitucionalidade. [1] Ocorre que as ADIs 7.047 e 7.064, atualmente em julgamento, envolvem outras alterações no regime de precatórios promovidos pela EC 113/2021.

Embora não tenha havido pedido de inconstitucionalidade do artigo 100, §11, da Constituição, o ministro Luiz Fux o considerou inconstitucional. O texto constitucional permite que os credores, com auto aplicabilidade para a União, utilizem os “créditos líquidos e certos que originalmente lhe são próprios ou adquiridos de terceiros” para diversas finalidades. Dentre elas, a quitação de débitos inscritos em dívida ativa, compra de imóveis públicos etc. A inconstitucionalidade também foi defendida no parecer da AGU.

Segundo o parecer, a compensação afetaria o planejamento orçamentário e financeiro, gerando distorções nas contas públicas. Isso porque essa compensação não é computada como entrada de numerário e nem como ingresso de receita primária.

A AGU invoca o precedente do STF na ADI 4.357, em que é reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 100, §9º, inserido pela EC 62/2009. O texto normativo permitia uma compensação, sem o devido processo legal, de precatórios do particular, com “débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora”.

A compensação era feita de forma automática e foi julgada inconstitucional. Foram identificados vários argumentos, tais como violação da coisa julgada, do contraditório e da ampla defesa, pois a parte iria ter seu direito ao crédito frustrado sem participar desse procedimento, violação à efetividade da jurisdição, frustrando o recebimento de crédito reconhecido pelo Poder Judiciário com trânsito em julgado e violação da isonomia.

Alega a União que problemas semelhantes ocorrem no artigo 100, §11, mencionando também violação à segurança jurídica e à proporcionalidade. Tudo isso reforçado porque a previsão teria sido inserida como uma forma de diminuir os efeitos do teto para o pagamento de precatórios.

A partir também do argumento anterior, alega a possibilidade de reconhecimento de inconstitucionalidade artigo 100, §11, pela sua interdependência com a criação do regime especial. Afinal, ele não fora impugnado na petição inicial da ADI e, em princípio, não poderia ser objeto de cognição do STF.

É compreensível que a União não esteja de acordo com a alteração constitucional, mas não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade. Muito menos comparável com o ocorrido com o artigo 100, §9º, que criou um poder exclusivo para o poder público, permitindo que créditos e particulares fossem compensados automaticamente com créditos que sequer haviam sido inscritos em dívida ativa. O artigo 100, §11 consiste na criação de um direito para os credores da fazenda pública, que já são obrigados a esperar uma razoável quantidade de tempo para receber seus créditos.

É previsível que, com a regularização dos pagamentos de precatórios da União, conforme a AGU solicita, o mercado de compra e venda desses títulos desacelere. Se as partes preveem receber seus créditos até o final do exercício seguinte, o interesse na venda diminui, reduzindo os deságios aceitos.

Ao votar, o ministro Luiz Fux acolheu o argumento da União de que haveria inconstitucionalidade na utilização irrestrita desses créditos para os precatórios federais, como decorrência da declaração de inconstitucionalidade do teto dos precatórios. Seria inconstitucional a vedação ao estabelecimento de regras e limitações do exercício do direito compensatório, diante da ausência de justificativa para a existência de uma cláusula totalmente potestativa.

Não há violação a qualquer cláusula pétrea que justifique a interpretação conforme para excluir a auto aplicabilidade da utilização desses créditos para a União.

Por fim, seu principal problema é o fato de que não faz parte da cognição do STF a inconstitucionalidade do texto normativo. Não há uma interdependência dos textos normativos a justificar a declaração de sua inconstitucionalidade de ofício e não há pedido de declaração de inconstitucionalidade material do artigo 100, §11. Há apenas alegação de inconstitucionalidade formal de toda a EC 113/2021, que foi afastada pelo voto do ministro Luiz Fux.  

No controle concentrado de constitucionalidade, é possível a declaração de inconstitucionalidade sobre dispositivos não impugnados, quando ela seja imprescindível. [2] É a denominada declaração de inconstitucionalidade consequente ou por arrastamento, que é dependente da identificação de uma forte interdependência dos textos normativos. [3]

Não é o que ocorre no caso. Não se nega que a valorização da utilização de créditos no artigo 100, §11 adveio da criação do teto constitucional, como uma forma de diminuir os efeitos nocivos aos créditos a serem recebidos. No entanto, do ponto de vista normativo, não há qualquer interdependência a justificar uma expansão da possível decisão do STF. O artigo 100, §11 pode subsistir, sem qualquer problema, com o reconhecimento da inconstitucionalidade do teto de gastos de precatórios. 

Portanto, não há qualquer inconstitucionalidade na auto aplicabilidade da utilização de precatórios federais para finalidades diversas do recebimento em dinheiro. Além disso, a questão nem sequer deveria fazer parte da cognição do STF, tendo em vista que não houve pedido de reconhecimento de sua inconstitucionalidade e não se justifica a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento pela ausência de interdependência dos textos normativos.


[1] PEIXOTO, Ravi. A inconstitucionalidade do teto de precatórios da União, disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-23/a-inconstitucionalidade-do-teto-de-precatorios-da-uniao/

[2] ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 217.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 18 ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2023, versão digital, capítulo 10, item X, 2.2.2

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