Controvérsias Jurídicas

'Inquérito civil: excesso de prazo sem justificativa viola direito do investigado'

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

9 de novembro de 2023, 8h00

O Tribunal de Justiça de São Paulo, em lapidar decisão, concedeu a ordem no Mandado de Segurança Cível nº 2193922-06.2022.8.26.0000, impetrado por um prefeito do litoral paulista, com o fim de determinar o trancamento de um inquérito civil público que se arrastava há mais de seis anos sem conclusão e sem produção de provas concretas, em uma investigação que visava a apurar suposto enriquecimento ilícito.

No caso, o TJ aplicou o artigo 23, § 2º, da Lei 14.230/2021, que alterou e modernizou a anterior Lei 8.429/92, tida como eficiente à época, mas que, com o tempo, revelou-se excessivamente rigorosa e menos eficaz do que se tivesse rigor na medida certa. De acordo com o novo dispositivo: “O inquérito civil para apuração do ato de improbidade será concluído no prazo de 365 dias corridos, prorrogável uma única vez por igual período, mediante ato fundamentado submetido à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica” (grifo do colunista).

Spacca
Spacca

​O acórdão, relatado pelo eminente desembargador Marrey Uint e proveniente da 3ª Câmara de Direito Público do TJ paulista, contou ainda com a participação dos não menos ilustres desembargadores Kleber Leyser de Aquino e Camargo Pereira, e merece aqui ser destacado, dada sua relevância e pioneirismo.

A investigação havia se iniciado em 2016, por meio de carta anônima denunciando suposta evolução patrimonial incompatível com a renda relativa à função que o alcaide exercia à época (secretário municipal em outro município). Após devassa na vida do investigado, o inquérito não logrou produzir elementos concretos capazes de subsidiar o oferecimento da ação de improbidade, mas mesmo assim continuava em andamento, perambulando sem rumo certo e produzindo impacto político negativo na imagem do prefeito, com repercussões eleitorais.

O Tribunal de Justiça previamente analisou o Tema de Repercussão Geral nº 1.199  do STF [1] para, em seguida, concluir que a questão em julgamento não dizia respeito à prescrição, mas à inobservância do prazo legal de duração do inquérito civil imposto pela Lei 14.230/2021. Uma espécie de perempção inominada, que leva à caducidade da investigação desidiosa ou morosa. De acordo com a decisão do TJ: “A demora dos requeridos em finalizar o inquérito civil contraria o direito à duração razoável ao processo administrativo, insculpido no artigo 5º, LXXVII, da Constituição Federal, bem como da eficiência previsto no artigo 37 da CF [2]. Também não houve atenção aos artigos 4º, 6º e 8º, do Código de Processo Civil, a saber: art. 4º – As partes têm o direito de obter no prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa; art. 6º – Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva; art. 8º – Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência“.

Acentuou ainda ser “sabido que o ressarcimento ao erário não tem prazo prescricional, porém, não se mostra razoável ou proporcional que um inquérito civil se prolongue por mais de 6 anos sem que se tenha, nesse longo espaço de tempo, comprovado qualquer dano ou prejuízo“. Como foi dito, a nova LIA trouxe uma espécie de caducidade do IC semelhante ao instituto da perempção e que leva à extinção da investigação que, pela ausência de providências concretas efetivas, perdeu a razão para existir.

Foi invocado relevante precedente no julgamento de outro mandado de segurança (MS 2169108-61.2021.8.26.0000) julgado pelo mesmo Tribunal de Justiça e relatado pelo desembargador Aguilar Cortez, no qual ficaram estabelecidos os seguintes parâmetros interpretativos em caso semelhante, no qual o inquérito já perdurava por mais de 3 anos sem solução: “O princípio da razoável duração do processo, conforme leciona Hely Lopes Meirelles, ‘exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional (….), a partir da Emenda Constitucional45/2004, a eficiência passou a ser um direito com sede constitucional, pois, no Título II, Dos Direitos e Garantias fundamentais, inseriu no art. 5º, o inciso LXXVIII, que assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação’ (Direito Administrativo Brasileiro, 37 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 98/99). O que não se pode admitir, por conspirar contra a razoável duração do processo, é a demora injustificada, fruto de ação ou omissão dolosa ou culposa do aparelho estatal, isto é, o desrespeito ao procedimento, a prática de atos desnecessários, a existência de irregularidades que protelam o encerramento da investigação e que podem impingir à parte constrangimento ilegal….Não há dúvida de que o impetrante tem interesse em não ver prorrogado por tempo indefinido o inquérito, ao nuto do investigador”.

No seu voto, o desembargador Marrey Uint, ressaltou que “o primado da eficiência também deve ser aplicado ao procedimento administrativo inquisitivo, que é o inquérito civil, merecendo destaque o ensinamento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 13ª ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 83) acerca da matéria, em que afirma que tal princípio: ‘pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a administração pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público‘”.

O acórdão cita ainda entendimento do Superior Tribunal de Justiça, relativo a  um inquérito criminal que investigava indefinidamente um crime de furto, e no qual se invocou também o princípio constitucional da duração razoável do processo: “Mostra-se inadmissível que, no panorama atual, em que o ordenamento jurídico pátrio é norteado pela razoável duração do processo (tanto no âmbito judicial, quanto no administrativo), um cidadão seja indefinidamente  objeto da persecução penal, transmudando a investigação do fato para a investigação da pessoa” (RHC 61.451/MG, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, DJe 15/03/2017). No mesmo sentido, HC nº 639.572/PA, relator ministro Antônio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, DJe 3/3/2023.

Finalmente, no acórdão da 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça, o desembargador relator Marrey cita trecho de nossa obra Nova Lei de Improbidade Administrativa – Limites Constitucionais, 3ª edição, Saraiva, 2023, p. 333: “O Professor Fernando Capez, ao comentar o § 2º do artigo 23, da Nova LIA, esclarece que: ‘A razão de existir de um prazo é a de ser observado. O legislador quis evitar a duração interminável de inquéritos civis ou procedimentos preparatórios (também sujeitos ao prazo de duração, o qual continua a correr pelo tempo restante após sua conversão em inquérito civil). Os prazos, portanto, são prazos fatais e somente poderão ser prorrogados em circunstâncias excepcionais, mediante expressa justificação. Interpretar como prazo impróprio a duração das investigações inquisitivas implicaria fazer letra morta do prazo previsto, afrontando o intuito da lei’. E arremata: ‘O MP precisa atuar dentro de prazos determinados, evitando o mau uso do IC para fins outros que não o da persecução judicial do agente suspeito de praticar improbidade administrativa’“.

O subprocurador geral de Justiça do MP paulista, Wallace Paiva Martins Jr, que atua há muitos anos no combate à improbidade, com doutorado e obras publicadas nessa área, observa que “a Lei n. 14.230/21 inovou ao tratar do inquérito civil no âmbito da improbidade administrativa, pois impôs prazo para sua conclusão, bem como para a propositura da ação pelo Ministério Público (…) Por outro lado, o controle é salutar, em especial para verificar se não a indevida morosidade no trâmite, e tem a potencialidade do diagnóstico de eventual violação de dever funcional[3].

Os destacados membros do Ministério Público de São Paulo Renato Kim e Rafael de Oliveira, em sua festejada obra [4], apontam, inclusive, que “na hipótese de abuso fica facultado ao investigado acionar a respectiva Corregedoria Geral ou Conselho Nacional do Ministério Público…“, a demonstrar que abusos na condução da investigação ou propositura da ação podem em tese, ser consideradas causas de nulidade por desvio funcional.

Essa decisão é muito importante, no sentido de conferir maior eficiência e responsabilidade ao inquérito civil público e aos fins a que se destina. Atualmente, existem inúmeras (sem exagero) ações de improbidade propostas há mais de 20 anos e que sequer ingressaram na fase de instrução, muitas das quais ainda se encontram incrivelmente em primeiro grau. As ações foram oferecidas com base na legislação anterior e estavam respaldadas pela jurisprudência da época, acarretando como efeito automático o bloqueio imediato dos bens de todos os réus, independentemente da demonstração da urgência ou necessidade processual da medida. A mera propositura da ação já tinha o condão de promover a indisponibilidade, quase sempre de todo o patrimônio, apenas pelo fato de a ação de improbidade ter sido proposta, fazendo-se vistas grossas ao caráter instrumental da providência cautelar, a qual somente deveria ser imposta diante da demonstração de indícios de que o investigado ou réu está ocultando ou dissipando seus bens para frustrar a futura execução de uma sentença, cuja probabilidade de sucesso também deveria ser demonstrada.

Toda esta situação estava a caracterizar verdadeira antecipação das penas de improbidade, sob a falsa aparência de medida cautelar de urgência, em afronta ao princípio do estado de inocência (CF, artigo 5º, LVII) e em violação expressa aos artigos 12, § 9º, e 16, § 3º da Lei 14.230/2021. A par disso, a duração de um inquérito ou processo por tempo indeterminado, além de perpetuar uma situação ilegal e inconstitucional de bloqueio antecipado sem necessidade cautelar, frustrava os fins da ação ou investigação, na medida em que sua interminável jornada impedia a reparação final do dano ao ente público lesado. Esse era o retrato sob a égide da Lei 8.429/1992.

A ausência de prazos para a conclusão da investigação e a falta de lapso prescricional após o oferecimento da ação acarretavam o efeito perverso de réus processados por décadas (e não apenas anos), com todos os bens bloqueados automaticamente e sem contraditório, incluindo contas bancárias, em processos intermináveis e feitos para não terminar. Além da afronta a direitos individuais e princípios constitucionais tão claros que não necessitam ser sequer enumerados, a não conclusão da ação, como dito, tornava o ente da administração pública lesado, privado da reparação do dano causado. Por essa razão, a fixação legal de prazo para a conclusão do inquérito civil e de prazos prescricionais também a partir do oferecimento da ação, longe de trazer impunidade, tende a conferir maior eficiência à proteção do erário e preservação do princípio da ampla defesa, contraditório, duração razoável do processo, dentre outros. Por essas razões, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo tem enorme relevância e merece ser mantida.                    


[1]  “O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/21 é irretroativo, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”

[2] Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

[3] Alexandre A. de Azevedo Magalhães Jr, Beatriz L. de Oliveira e Wallace Paiva Martins Jr, Lei de Improbidade Administrativa Comentada, Ed. JUS PODIVM, 2022, p. 318/319.

[4] Nova Lei de Improbidade Administrativa: Análise da Lei n. 8.429/92 à Luz das Alterações Empreendidas pela Lei n. 14.230/21. São Paulo: Almedina, pg. 261.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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