Opinião

Utilização dos valores da cláusula de earn-out para apuração do goodwill

Autor

  • Jorge Henrique Anorozo Coutinho

    é advogado sócio do escritório Jorge Ponsoni Anorozo & Advogados Associados bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrando em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

4 de maio de 2024, 15h22

A dificuldade na definição do preço adequado nos contratos de compra de quotas societárias ou ações torna comum a adoção, nessas operações, de cláusulas contratuais que estabeleçam “preços contingentes” [1]  [2] — ou seja, pagamentos eventuais destinados ao alienante vinculados à performance da companhia ou sociedade alienada. [3]

Nesse sentido, a criatividade da prática empresarial deu origem à cláusula de earn-out, através da qual “contratualmente, as partes estabelecem percentuais sobre ganhos futuros e fixam metas que, caso atingidas, disparam o gatilho da contraprestação monetária adicional”. [4]

Contudo, a natureza jurídica da cláusula de earn-out, por si só, não é pacífica — inclusive, pela possibilidade de que essa assuma diversas facetas no caso concreto. Igualmente, as controvérsias tributárias e contábeis decorrentes de sua estipulação referente à apuração do goodwil ainda persistem.

Identificada essa lacuna e, considerando a relevância prática do tema, o presente texto pretende tecer comentários acerca da natureza jurídica da cláusula de earn-out e as consequências contábeis e tributárias de sua adoção, especialmente no que tange à apuração do goodwill nas operações de aquisição de empresas.

Como brevemente adiantado, a cláusula de earn-out corresponde à parcela do preço de um negócio jurídico de aquisição das quotas ou ações de determinada sociedade ou companhia cujo valor é determinável (sendo ilíquido no momento da contratação) e seu pagamento está atrelado a eventos futuros e incertos.

Spacca

Trata-se, portanto, de hipótese em que as partes optam por deixar a fixação de parcela do preço do negócio em “função de índices ou parâmetros, desde que suscetíveis de objetiva determinação” (artigo 487, do Código Civil), e condicionam seu pagamento para o futuro (artigo 121, do Código Civil). Nesse sentido, como anota Luciano Zordan Piva, o earn-out é “uma forma de pagamento pelo qual parcela do preço é diferida para o futuro”. [5]

A obrigação de pagamento do preço contingente, nesse sentido, tem sua eficácia suspensa por cláusula condicional, geralmente atrelada ao cumprimento de metas empresariais e financeiras futuras e predefinidas [6]. Portanto, desde a celebração do contrato de compra e venda com cláusula de earn-out existe a obrigação de pagamento do preço contingente, entretanto, sua eficácia está condicionada à ocorrência de eventos futuros e incertos.

Pode-se definir o earn-out, portanto, como a cláusula contratual acessória [7] que faz surgir a obrigação de pagamento do preço (determinável) pelo comprador e o direito de receber a contraprestação (determinável) pelo vendedor, os quais têm sua eficácia suspensa e condicionada à ocorrência de eventos futuros e incertos atrelados ao desempenho econômico da sociedade ou companhia adquirida.

A partir dessa definição, ao se adentrar no âmbito tributário e contábil, três itens merecem destaque:

  1. a obrigação de pagamento e o direito de recebimento do preço decorrente do earn-out existe desde a celebração do negócio jurídico;
  2. seu valor é indeterminado, porém determinável;
  3. sua eficácia está suspensa e condicionada à ocorrência de eventos futuros e incertos.

Controle de sociedades

No âmbito contábil, as operações de aquisição de controle de sociedades e companhias são regidas pelo Pronunciamento Técnico CPC 15, o qual determina que a mensuração do preço contingente deve se dar “pelo seu valor justo na data da aquisição como parte da contraprestação transferida em troca do controle da adquirida”.

Logo, o CPC 15 reconhece a existência da obrigação de pagamento decorrente da cláusula de earn-out desde o momento da celebração do contrato e, ainda que não seja líquida ou certa, determina seu registro contábil desde então como parte da contraprestação — servindo, portanto, como componente do custo de aquisição contábil do investimento.

Em assim sendo, para fins contábeis, o valor do custo de aquisição do investimento deve considerar também o preço contingente representado pelo earn-out, o qual, nesse cenário, terá reflexo na apuração contábil da mais-valia [8] e do goodwill. [9][10]

Entretanto, no aspecto tributário, não é pacífica a consideração da obrigação decorrente da cláusula de earn-out como custo de aquisição desde a contratação, uma vez que “a ideia de custo está atrelada a sacrifício patrimonial efetivo, não dependente de evento futuro e incerto”. [11]

Nesse sentido, inclusive, a IN RFB nº 1.700/2017 previu que “os reflexos tributários decorrentes de obrigações contratuais em operações de aquisições de negócios, subordinadas a evento futuro e incerto, inclusive nas operações que envolvam contraprestação contingentes, devem ser reconhecidos na apuração do lucro real e do resultado ajustado” no momento da implementação da condição suspensiva, a teor do previsto no artigo 117, inciso I, do Código Tributário Nacional. [12]

Igualmente, a Receita Federal, por ocasião da SC Cosit nº 03/2016, registrou que o reconhecimento fiscal do preço contingente somente deve se dar quando constatada a ocorrência da condição, momento no qual esse passará a integrar o custo de aquisição da participação societária:

“De fato, o regime de competência determina que o valor das transações e de outros eventos seja reconhecido nos períodos a que se refere, independentemente do recebimento ou pagamento. Entretanto, para seu reconhecimento fiscal é necessário também que esse valor represente com fidedignidade aquilo que consubstancia, no caso em tela o efetivo preço da aquisição da participação societária, uma vez que, conforme sobejamente demonstrado acima, o preço consignado em contrato não é determinado, já que o valor final está condicionado a eventos futuros e incertos. Somente a efetiva e definitiva entrega de numerário aos Vendedores, nas condições estabelecidas no contrato, é que permite reconhecer que determinado valor integra o custo de aquisição da participação societária.”

Deste modo, constata-se a existência de descompasso entre as normas contábeis e a legislação tributária: se, por ocasião das primeiras, o earn-out deve ser contabilizado desde a data de celebração do negócio e avaliado a valor justo como item do preço e, portanto, parte do custo de investimento contábil. Para o âmbito tributário, o earn-out não pode ser considerado como realizado, não podendo impactar na mais-valia e no goodwill, enquanto a condição não estiver implementada.

Portanto, ainda que contabilmente deva ser contabilizado como parte do preço de aquisição, os valores referentes à obrigação decorrente do earn-out não podem, para fins tributários, ser considerados para cálculo da mais-valia e do goodwill — devendo, contudo, estar registrados em subconta contábil identificada e, uma vez incorrida a condição, poderão ser considerados como ajuste positivo.

 


[1] ZILVETI, Fernando Aurelio; NOCETTI, Daniel Azevedo. Earnout – Aproximação interdisciplinar e a IN n.º 1.700/2017. IN: PINTO, Alexandre Evaristo [et. al] (coord.). Controvérsias Jurídico-Contábil. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788597023275. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597023275/. Acesso em: 04 abr. 2024. P. 129.

[2] Conforme relatório da Pepperdine Private Capital Markets Project – Private Capital Markets Report (2023), 44% das operações de compra e venda de participações societárias em empresas de capital fechado nos Estados Unidos tiveram a adoção da cláusula de earnout. Disponível em: <https://digitalcommons.pepperdine.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1015&context=gsbm_pcm_pcmr>. Acesso em: 14 abr. 2024.

[3] Nos termos do art. 197, inc. I, alínea “a”, da IN RFB n.º 1.700/2017, considera-se contraprestação contingente “as obrigações contratuais assumidas pelo adquirente de transferir ativos adicionais ou participações societárias adicionais aos ex-proprietários da adquirida, subordinadas a evento futuro e incerto”.

[4] ZILVETI, Fernando Aurelio; NOCETTI, Daniel Azevedo. Earnout – Aproximação interdisciplinar e a IN n.º 1.700/2017. IN: PINTO, Alexandre Evaristo [et. al] (coord.). Controvérsias Jurídico-Contábil. São Paulo: Grupo GEN, 2019. E-book. ISBN 9788597023275. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597023275/. Acesso em: 04 abr. 2024. P. 130.

[5] PIVA, Luciano Zordan. P. 80.

[6] MARTINS-COST, Judith. “Contrato de Cessão e Transferência de Quotas. Acordo de Sócios. Pactuação de Parcela Variável do Preço Contratual denominada earn out. Características e função (“causa objetiva”) do earn out. Revista de Arbitragem e Mediação, p. 153-188, vol. 42, jul.-set./2014, p. 154.

[7] Não se desconhece o posicionamento de que o earn-out pode figurar como negócio jurídico autônomo, com objeto, conteúdo e perfil dogmáticos próprios. (PIVA, Luciano Zordan. P. 90). Ademais, como bem alerta José Arnaldo Godoy Costa de Paula, o earn-out pode assumir naturezas diferentes do preço, tais como prêmio pelo atingimento de metas desvinculado do preço ou contraprestação pelos serviços prestados pelos antigos acionistas da empresa adquirida. (DE PAULA, José Arnaldo Godoy Costa. O Earn Out na compra de participações societárias e seus efeitos tributários sobre o custo de aquisição de investimentos. Revista Direito Tributário Atual, n. 43, ano 37, p. 222-251, São Paulo, jul.-dez./2019, p. 225). Entretanto, a fim de delimitar a hipótese de pesquisa, o presente artigo versará apenas sobre o earn-out enquanto parcela diferida do preço.

[8] A mais valia corresponde à diferença entre o valor justo dos ativos líquidos da investida, na proporção da porcentagem da participação societária adquirida e seus respectivos valores patrimoniais.

[9] DE PAULA, José Arnaldo Godoy Costa. O Earn Out na compra de participações societárias e seus efeitos tributários sobre o custo de aquisição de investimentos. Revista Direito Tributário Atual, n. 43, ano 37, p. 222-251, São Paulo, jul.-dez./2019, p. 224.

[10] O goodwill (ágio por rentabilidade futura) é determinado pela diferença positiva entre i) o valor justo da contraprestação transferida em troca do controle da adquirida; e ii) o valor justo líquido dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos (GELBCKE, Ernesto Rubens; SANTOS, Ariovaldo dos; IUDÍCIBUS, Sérgio de; e MARTINS, Eliseu. Manual de contabilidade societária aplicável a todas as sociedades: de acordo com as normas internacionais e do CPC. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 1.415). Caso a diferença seja negativa, o adquirente deve reconhecer um ganho por compra vantajosa em seu resultado contábil (DE PAULA, José Arnaldo Godoy Costa. O Earn Out na compra de participações societárias e seus efeitos tributários sobre o custo de aquisição de investimentos. Revista Direito Tributário Atual, n. 43, ano 37, p. 222-251, São Paulo, jul.-dez./2019, p. 232).

[11] DE PAULA, José Arnaldo Godoy Costa. O Earn Out na compra de participações societárias e seus efeitos tributários sobre o custo de aquisição de investimentos. Revista Direito Tributário Atual, n. 43, ano 37, p. 222-251, São Paulo, jul.-dez./2019, p. 240.

[12]     Art. 117. Para os efeitos do inciso II do artigo anterior e salvo disposição de lei em contrário, os atos ou negócios jurídicos condicionais reputam-se perfeitos e acabados: I – sendo suspensiva a condição, desde o momento de seu implemento.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Jorge Ponsoni Anorozo & Advogados Associados, bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestrando em Direito das Relações Sociais na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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