Opinião

Juízo de Conformação e Lei de Improbidade Administrativa após julgamento do Tema 1.199/RG

Autores

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

  • Frederico Augusto Leopoldino Koehler

    é doutorando pela USP mestre e bacharel em Direito pela UFPE ex-juiz federal instrutor no STJ atualmente juiz federal do TRF-5ª Região professor adjunto da UFPE professor do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) formador e conteudista da Enfam membro e secretário-geral adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e membro e secretário-geral da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

30 de abril de 2024, 13h22

O Juízo de Conformação é um instrumento essencial para a consolidação da sistemática de precedentes no direito brasileiro. Sua aplicação permite a uniformização dos atos decisórios, a consolidação das teses e a autoridade das decisões tomadas em caráter vinculante pelos tribunais brasileiros. É, precipuamente, uma garantia da segurança jurídica em nosso ordenamento.

Essa sistemática foi prevista no artigo 1.039 do CPC para os recursos especiais e extraordinários repetitivos, mas também se aplica ao julgamento dos casos com reconhecimento de repercussão geral. Basicamente, isso significa que, diante da decisão dos recursos que foram afetados, o órgão jurisdicional onde os processos ou recursos estão suspensos ou sobrestados deve aplicar a tese fixada aos casos pendentes.

A ideia é excelente e, em um primeiro olhar, seria um procedimento singelo. Contudo, nem sempre é assim que ocorre. Muitas vezes, uma tese jurídica é fixada, mas o caso suspenso ou sobrestado não se adequa perfeitamente à redação da tese e ao quanto decidido no julgado paradigma.

Talvez um dos melhores exemplos da dificuldade de realização do Juízo de Conformação ocorra com o julgamento do Tema 1.199/RG sobre as alterações da Lei nº 14.230/2021 em relação à improbidade administrativa.

Quando da afetação, a controvérsia foi estabelecida de uma maneira não muito precisa [1]:

“Tema 1.199 – Definição de eventual (IR)RETROATIVIDADE das disposições da Lei 14.230/2021, em especial, em relação:

(I) A necessidade da presença do elemento subjetivo – dolo – para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no artigo 10 da LIA; e

(II) A aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente.”

Pela análise da controvérsia, percebe-se que dois temas necessariamente seriam abordados: a necessidade da presença do dolo para todas as condutas de improbidade; 2) o regime jurídico de prescrição.

Contudo, o uso da expressão “em especial” na definição da controvérsia gerou dúvidas se o tema abrangeria toda a discussão sobre a eventual retroatividade benéfica das alterações da lei de improbidade ou se seria aplicável somente aos dois temas expressamente previstos.

Essa dúvida foi ampliada com a decisão de suspensão relativa ao mesmo tema:

DECRETO a SUSPENSÃO do processamento dos Recursos Especiais nos quais suscitada, ainda que por simples petição, a aplicação retroativa da Lei 14.230/2021. Comunique-se com urgência o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

A decisão determinou a suspensão do processamento de todos os recursos especiais, extensão que foi aplicada também aos agravos em recurso especial pendentes de julgamento no Superior Tribunal de Justiça nos quais se requeria a aplicação imediata dos dispositivos da Lei nº 14.230/2021.

O Superior Tribunal de Justiça compreendeu a decisão como não restritiva aos temas ‘dolo’ e ‘prescrição’. Isso levou à suspensão de milhares de recursos com ordem de retorno aos tribunais a quo e ao sobrestamento de outras centenas no âmbito do STJ, para que, tanto no caso de retorno à origem quanto no próprio STJ, fosse realizado o juízo de conformação após o julgamento do Tema 1.199/RG.

Com o julgamento do tema e a fixação das teses, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a tese era restrita ao “dolo” e ao “regime de prescrição”.

1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO;

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 — revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa —, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

O ‘regime de prescrição’, embora constitucional, teria eficácia prospectiva. A exigência do ‘dolo’ para todas as condutas de improbidade foi considerada constitucional, e a revogação da modalidade culposa foi confirmada como ‘irretroativa’. Contudo, essa ‘irretroatividade’ deve ser interpretada com muitas ressalvas.

Spacca

A ‘irretroatividade’ foi prevista para os processos já transitados em julgado ao início da vigência da Lei nº 14.230/2021. Assim, para os processos em que o trânsito em julgado ainda não havia se operacionalizado, a lei deveria ser aplicada imediatamente.

Após a publicação do acórdão, o Supremo Tribunal Federal tem ampliado gradativamente a aplicação do Tema 1.199/RG para outras situações além da revogação das condutas culposas. Um exemplo dessa ampliação ocorre nas condenações por improbidade com base no artigo 11, I, da Lei 8.429/1992, em virtude da revogação da conduta pela Lei nº 14.230/2021.

Dado o panorama, resta verificar como se daria o Juízo de Conformação, tanto nos tribunais de origem quanto no Superior Tribunal de Justiça.

O Juízo de Conformação deve ser necessariamente restrito ao tema de repercussão geral, sob pena de não se atingir a finalidade de sua previsão no CPC.

Embora seja possível ampliar a consolidação de uma tese com sua ampliação, os demais e principais objetivos serão prejudicados.

Isso porque não é possível garantir a autoridade de algo que não foi decidido. Além disso, a falta de uma interpretação restritiva e uma ampliação sem critério podem gerar entendimentos antagônicos, o que se destaca especialmente com o Tema 1.199/RG. Imagine-se, por exemplo, que um tribunal de justiça entenda que um dispositivo específico da nova Lei de Improbidade Administrativa (LIA) é mais benéfico, enquanto outro tribunal entende o contrário [2]. Tais entendimentos discrepantes sobre o mesmo tema geram insegurança jurídica.

Da mesma forma que não se pode esperar um juízo de conformação do que não foi decidido, não é possível utilizar o instrumento da reclamação para ampliar a aplicação de teses em repetitivo e repercussão geral. Isso porque apenas o julgamento na sistemática de repercussão geral ou de recurso repetitivo empresta ao precedente o efeito de funcionar como filtro para barrar a subida de recursos extraordinários e especiais a Brasília (artigo 1.030 do CPC) e como base para o Juízo de Conformação (artigo 1.039 do CPC).

Em relação ao Tema 1.199/RG, o STF já decidiu de maneira colegiada, mas apenas por seus órgãos turmários [3][4][5], a ampliação do tema para se afastar a condenação com base no artigo 11, I, da LIA devido à sua revogação pela Lei nº 14.230/2021. Contudo, como o tema não integra as teses iniciais julgadas na sistemática de repercussão geral, não há que se falar em vinculação, pelo menos por ora.

Em relação aos demais casos de retroatividade benéfica ou de aplicação das alterações da Lei nº 14.230/2021 aos processos em curso relacionados a fatos anteriores a vigência da legislação atual, não há sequer entendimento pacificado nas turmas.

Assim, não se pode exigir a aplicação dos entendimentos tomados após a decisão do Tema 1.199/RG como Juízo de Conformação pelos tribunais em que os recursos se encontram suspensos ou sobrestados, não sendo, ainda, cabível a utilização de reclamação para aplicação desses entendimentos pelo STF.

 


[1] Já chamávamos a atenção para tal fato no artigo publicado no Conjur em 18 de abril de 2022: KOEHLER, Frederico Leopoldino; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Diferenças da afetação por repercussão geral e por recursos repetitivos. Acesso online por https://www.conjur.com.br/2022-abr-18/koehlere-flumignan-afetacao-repercussao-geral/

[2] Quando se analisa o regime de aplicação das sanções, os exemplos se multiplicam. Vamos enumerar apenas três, relacionados ao regime das sanções por enriquecimento ilícito e por lesão ao erário:

  1. Em relação à multa civil, na redação anterior à Lei n. 14.230/2021, a sanção seria de até três vezes o enriquecimento ilícito e de até duas vezes a lesão ao erário, mas não era incomum a fixação de multa em patamar inferior ao valor do enriquecimento ou da lesão, com base na proporcionalidade. Na legislação atual, a multa será no valor equivalente ao acréscimo patrimonial e à lesão ao erário.
  2. No que se refere à suspensão dos direitos políticos, a sanção na redação anterior seria de 8 a 10 anos para o enriquecimento ilícito e de 5 a 8 anos para lesão ao erário. No texto atual, é de até 14 anos para enriquecimento ilícito e de até 12 anos para lesão ao erário. O espectro atual da referida sanção, portanto, pode ir além ou aquém da faixa prevista na legislação anterior, a depender do caso concreto.
  3. No tocante à proibição de contratar com o Poder Público, a legislação anterior utilizava o patamar fixo de 10 anos para enriquecimento ilícito e de 5 anos para lesão ao erário. A sistemática atual prevê uma sanção de até 14 anos para enriquecimento e de até 12 anos para lesão ao erário, mas nada impede que seja inferior aos montantes previstos na legislação revogada, a depender do caso concreto.

Como se vê, estabelecer o que é mais benéfico nesses casos não é simples.

[3] Nesse sentido, da Primeira Turma do STF, colhe-se: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI N. 14.231/2021: ALTERAÇÃO DO ART. 11 DA LEI N. 8.429/1992. APLICAÇÃO AOS PROCESSOS EM CURSO. TEMA 1.199 DA REPERCUSSÃO GERAL. AGRAVO IMPROVIDO. I – No julgamento do ARE 843.989/PR (Tema 1.199 da Repercussão Geral), da relatoria do Ministro Alexandre de Moraes), o Supremo Tribunal Federal assentou a irretroatividade das alterações promovidas pela Lei n. 14.231/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 8.429/1992), mas permitiu a aplicação das modificações implementadas pela lei mais recente aos atos de improbidade praticados na vigência do texto anterior nos casos sem condenação com trânsito em julgado. II – O entendimento firmado no Tema 1.199 da Repercussão Geral aplica-se ao caso de ato de improbidade administrativa fundado no revogado art. 11, I, da Lei n. 8.429/1992, desde que não haja condenação com trânsito em julgado. III – Agravo improvido. (AgR no RE 1.452.533/SC, rel. Min. CRISTIANO ZANIN, Primeira Turma, julgamento unânime em 08/11/2023) (grifou-se).

[4] Da Segunda Turma do STF, colaciona-se: SEGUNDO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RESPONSABILIDADE POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ADVENTO DA LEI 14.231/2021. INTELIGÊNCIA DO ARE 843.989 (TEMA 1.199). INCIDÊNCIA IMEDIATA DA NOVA REDAÇÃO DO ART. 11 DA LEI 8.429/1992 AOS PROCESSOS EM CURSO. 1. A Lei 14.231/2021 alterou profundamente o regime jurídico dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os princípios da administração pública (Lei 8.249/1992, art. 11), promovendo, dentre outros, a abolição da hipótese de responsabilização por violação genérica aos princípios discriminados no caput do art. 11 da Lei 8.249/1992 e passando a prever a tipificação taxativa dos atos de improbidade administrativa por ofensa aos princípios da administração pública, discriminada exaustivamente nos incisos do referido dispositivo legal. 2. No julgamento do ARE 843.989 (tema 1.199), o Supremo Tribunal Federal assentou a irretroatividade das alterações introduzidas pela Lei 14.231/2021, para fins de incidência em face da coisa julgada ou durante o processo de execução das penas e seus incidentes, mas ressalvou exceção de retroatividade relativa para casos como o presente, em que ainda não houve o trânsito em julgado da condenação por ato de improbidade. 3. As alterações promovidas pela Lei 14.231/2021 ao art. 11 da Lei 8.249/1992 aplicam-se aos atos de improbidade administrativa praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado. 4. Tendo em vista que (i) a imputação promovida pelo autor da demanda, a exemplo da capitulação promovida pelo Tribunal de origem, restringiu-se a subsumir a conduta imputada aos réus exclusivamente

ao disposto no caput do art. 11 da Lei 8.429/1992 e que (ii) as condutas praticadas pelos réus, nos estritos termos em que descritas no arresto impugnado, não guardam correspondência com qualquer das hipóteses previstas na atual redação dos incisos do art. 11 da Lei 8.429/1992, imperiosa a reforma do acórdão recorrido para julgar improcedente a pretensão autoral. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Agravo regimental desprovido. (ARE 1346594/SP, rel. Min. GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 24/10/2023, Segunda Turma, Data de Publicação: DJe  DIVULG 30-10-2023 PUBLIC 31-10-2023) (grifou-se).

[5] A propósito, no artigo publicado no Conjur em 03 de setembro de 2023, analisamos o julgamento, pelo Plenário do STF, dos embargos de declaração nos embargos de divergência no segundo agravo regimental no recurso extraordinário com agravo nº 803.568. Demonstramos, na oportunidade, que “Devido à dispersão de fundamentos, não houve votos suficientes para formar a maioria no que tange à ratio decidendi. Inexistindo fundamento predominante, fica impossibilitada a construção de uma norma precedental a partir do julgamento”.

Autores

  • é procurador do estado de Pernambuco, coordenador do CEJ da PGE-PE, ex-assessor de ministro do STJ, doutor e mestre pela USP, professor adjunto da UPE e da Asces/Unita, membro da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

  • é juiz federal, ex-juiz federal instrutor no STJ, doutorando pela USP, mestre pela UFPE, professor da UFPE e do mestrado da Enfam e membro e Diretor do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

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