Opinião

Eficiência administrativa e ônus da prova

Autor

  • Vladimir da Rocha França

    é advogado mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor titular de Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

1 de maio de 2024, 11h19

O princípio constitucional da eficiência determina que a atividade administrativa deve ser eficaz, atualizada e econômica. Encontra-se indicado no artigo 37, caput, no artigo 70, caput, no artigo 74, II, e no artigo 144, § 7º, todos da Constituição. [1]

A atividade administrativa é eficaz quando ela satisfaz efetivamente o interesse público que a justifica no caso concreto. Ela é atualizada quando os equipamentos e protocolos empregados pela administração pública são compatíveis com o contexto técnico-científico. E, por fim, ela é econômica quando atende a melhor relação entre o custo patrimonial e o benefício social que se deve (ou pode) ser atingido por meio do Estado-administração.

Convém ainda lembrar que a insuficiência de desempenho de servidor público titular de cargo efetivo impede que ele adquira a garantia da estabilidade. E, uma vez estável, pode ensejar a sua demissão, consoante o artigo 41, § 1º, III, e § 4º, da Constituição.

De todo modo, a eficiência administrativa não constituiu argumento prestante para se justificar o afastamento da legalidade no caso concreto, salvo quando conjugado o princípio da razoabilidade. [2]  Afinal, a aplicação da lei sem se levar as circunstâncias práticas do caso concreto, [3] ou sem um Juízo de prognose quanto às consequências jurídicas e administrativas no controle de atos administrativos, [4] tende a levar à administração pública a lesionar o princípio da eficiência.

Há referências a esse princípio no plano da legislação federal: no artigo 16, parágrafo único, da Lei Federal nº 4.320/1964; [5] no artigo 26, III, no artigo 27, no artigo 30, § 2º, todos do Decreto-lei nº 200/1967; [6] no artigo 67, II, da Lei de Responsabilidade Fiscal;[7] no artigo 6º, § 2º, da Lei Federal nº 8.987/1995; [8] no artigo 8º e no artigo 15, ambos do Código de Processo Civil, [9] quando lidos em conjunto; no artigo 12, caput, da Lei Federal nº 13.460/2017; [10] no artigo 5º, no artigo 11, parágrafo único, no artigo 18, VIII, no artigo 22, § 1º, no artigo 22, §§ 2º e 6º, no artigo 169, § 1º, todos da Lei Federal nº 14.133/2021; [11] e, no artigo 32, I e III, e no artigo 49, § 1º, I, ambos da Lei Federal nº 14.600/2023. [12]

Eficácia na administração

Nem sempre a administração pública se mostra eficaz, atual e econômica na gestão das informações que ela tem o ônus de manter sobre os administrados, para que ela possa bem desempenhar suas competências constitucionais e legais à luz da eficiência administrativa.

Isso se mostra mais comum no plano estadual e no plano municipal. Nem mesmo é materialmente possível ler a lei ou ato normativo vigente que o administrado tem o dever de conhecer à luz do artigo 3º da Lindb (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), uma vez que a administração pública é ineficiente em garantir o efetivo acesso do público a esses atos jurídicos, mesmo no atual contexto técnico-científico das tecnologias da informação. Nesse aspecto, os gestores públicos estaduais e municipais deveriam seguir as boas práticas da administração pública da União nessa matéria.

Spacca

Não raras vezes, o administrado, no exercício de seu direito de petição, [13] requer prestações do Estado-administração, cujos requisitos somente podem ser comprovados com amparo em atos administrativos que foram realizados antes do pedido e cujo acesso é árduo até para a própria administração pública.

Esse problema persiste quando o administrado exerce seu direito de ação, [14] especialmente em defesa de direitos fundamentais sociais em face do Estado-administração, que exigem prova documental que somente a administração pública tem condições práticas de oferecer.

No processo administrativo federal, o administrado tem o ônus da prova quanto aos fatos que alegar, mas lhe é assegurado o direito processual de exigir que a administração pública providencie os documentos comprobatórios desses fatos, quando ela deve manter registros deles, consoante os artigos 36 e 37 da Lei Federal nº 9.784/1999. Recorde-se que as normas veiculadas por esse diploma legal incidem e devem ser aplicados por analogia no processo administrativo estadual ou municipal, quando a legislação do ente federativo em questão for omissa. [15]

No processo judicial em que o réu é o Estado-administração, o ônus da prova do fato constitutivo do direito pleiteado cabe ao autor, nos termos do artigo 373, I, do Código de Processo Civil. Contudo, observe-se que no § 1º do mesmo dispositivo legal, confere ao juiz o poder de inverter o ônus da prova em benefício do autor, diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o referido encargo ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário.

Contudo, a decisão judicial nesse sentido exige que ela seja fundamentada, bem como que não crie situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil, consoante o artigo 373, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Civil.

Ônus da prova

A inversão do ônus da prova em favor do administrado é imperativa quando há comprovada ineficiência administrativa na gestão de informações, tanto no processo administrativo como no processo judicial.  Especialmente quando se trata de direitos fundamentais sociais.

Evidentemente, o administrado não pode se fiar somente em provas documentais, devendo produzir todas as provas que jurídica e materialmente puder de seu direito, sem prejuízo da demonstração da ineficiência administrativa na gestão de informações pela administração pública. [16]

Alerte-se que a inversão do ônus da prova nessa situação deve ser rejeitada, se o administrado tem a obrigação legal de manter provas documentais pertinentes à relação jurídica que ele mantém com o Estado-administração. Mas tal hipótese tende a se restringir às pessoas jurídicas, e o Estado-administração deve assegurar acesso aos documentos ou cópias destes aos obrigados.

Logo, a inversão do ônus da prova em favor do administrado é direito subjetivo processual, quando há ineficiência administrativa na gestão de informações por parte da administração pública, e não há obrigação legal daquele em manter documentos em face o Estado-administração.

Pensar o contrário, com a devida vênia, é tornar a má gestão pública como atentado permitido aos direitos dos administrados no controle da atividade administrativa. A ineficiência administrativa é algo a ser prevenido ou reprimido, e não a ser incentivado pela desarrazoada aplicação da lei processual.

 


[1] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  Promulgada em 5 de outubro de 1988.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[2] Vide o art. 2º, caput, e parágrafo único, VI, da Lei Federal nº 9.784/1999 (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI Nº 9.784, DE 29 DE JANEIRO DE 1999.  Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.  https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm  Acesso em 24 de abril de 2024).

[3] Vide o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942.  Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm  Acesso em 24 de abril de 2024).

[4] Vide o art. 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

[5] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI Nº 4.320, DE 17 DE MARÇO DE 1964.  Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[6] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  DECRETO-LEI Nº 200, DE 25 DE FEVEREIRO DE 1967.  Dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0200.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[7] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI COMPLEMENTAR Nº 101, DE 4 DE MAIO DE 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[8] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI Nº 8.987, DE 13 DE FEVEREIRO DE 1995.  Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[9] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015.  Código de Processo Civil.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[10] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI Nº 13.460, DE 26 DE JUNHO DE 2017.  Dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13460.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[11] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI Nº 14.133, DE 1º DE ABRIL DE 2021.  Lei de Licitações e Contratos Administrativos.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[12] REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI Nº 14.600, 19 DE JUNHO DE 2023.  Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios; altera as Leis nºs 9.984, de 17 de julho de 2000, 9.433, de 8 de janeiro de 1997, 8.001, de 13 de março de 1990, 14.204, de 16 de setembro de 2021, 11.445, de 5 de janeiro de 2007, 13.334, de 13 de setembro de 2016, 12.897, de 18 de dezembro de 2013, 8.745, de 9 de dezembro de 1993, 9.069, de 29 de junho de 1995, e 10.668, de 14 de maio de 2003; e revoga dispositivos das Leis nºs 13.844, de 18 de junho de 2019, 13.901, de 11 de novembro de 2019, 14.261, de 16 de dezembro de 2021, e as Leis nºs 8.028, de 12 de abril de 1990, e 14.074, de 14 de outubro de 2020.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14600.htm  Acesso em 24 de abril de 2024.

[13] Vide o art. 5º, XXXIV, “a”, da Constituição da República.

[14] Vide o art. 6º e o art. 193, ambos da Constituição da República.

[15] Vide, por exemplo, a Súmula nº 633 do Superior Tribunal de Justiça (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.  SÚMULA Nº 633.  A Lei n. 9.784/1999, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria.  Publicada em 17 de junho de 2019.  Disponível em https://scon.stj.jus.br/docs_internet/VerbetesSTJ.pdf  Acesso em 24 de abril de 2024).

[16] Vide os arts. 212 a 232 do Código Civil (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.  UNIÃO.  LEI Nº 10.406, DE 10 DE JANEIRO DE 2002.  Institui o Código Civil.  Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm  Acesso em 24 de abril de 2024).

Autores

  • é advogado, mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor titular de Direito Administrativo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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