Direitos Fundamentais

Declaração da ONU de 1948 e a Constituição de 1988: um casamento feliz?

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15 de dezembro de 2023, 9h17

Em matéria de direitos humanos e de direitos fundamentais, o ano de 2023 foi marcado pelas comemorações dos 75 anos de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Dudh) da ONU, de 1948, e dos 35 anos de vida da Constituição Federal de 1988 (CF). Muito embora se trate de períodos e contextos específicos, ressalta cada vez mais, a ligação e diálogo entre a Dudh e a CF, incluindo, nas décadas seguintes, as relações entre o sistema internacional de proteção dos direitos humanos como um todo, com as constituições e o constitucionalismo.

Dada a amplitude, diversidade e complexidade da matéria, desde logo adiantamos que o presente texto, dado o seu escopo e limitação espacial, somente poderá enfrentar, e mesmo assim em caráter sumário, alguns dos aspectos dessa relação.

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Um primeiro pondo que ousamos destacar, diz respeito à sempre em algum ponto controversa, mas jamais abandonada, concepção da existência de gerações ou dimensões (como é a nossa preferência) de direitos humanos e fundamentais.

Aqui, nunca é demais lembrar que, ao passo que o constitucionalismo moderno e as declarações constitucionais de direitos encontram origem no final do século 18, tendo sofrido um processo massivo, em termos quantitativos e qualitativos, de expansão já até a Segunda Guerra Mundial, o sistema internacional e universal de proteção dos direitos humanos, salvo uma ou outra tentativa, foi formado apenas com a Dudh, em 1948.

A partir de tal constatação, é possível afirmar, que em 1948 os catálogos constitucionais já haviam acolhido — embora com muito menos peso em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais (v.g. Constituições do México, Weimar e Brasil de 1934) — direitos das duas primeiras dimensões, a Dudh, teve a oportunidade de contemplar, já de início, direitos de ambas as dimensões e mesmo, de modo embrionário, da terceira dimensão (direitos de solidariedade/coletivos). De lá para cá, inexoravelmente os caminhos não deixaram de se cruzar, interagir, dialogar, mas também, infelizmente com uma frequência e intensidade impactantes, de se tencionar e mesmo colidir.

Na esfera internacional, não apenas o sistema universal da ONU, passou a se ampliar, mediante ao surgimento de um imenso número de tratados/convenções internacionais, versando sobre os mais diversos temas, a começar pelos instrumentos mais abrangentes, designadamente, os dois Pactos Internacionais de 1966, o primeiro sobre direitos civis e políticos, o segundo a respeito dos direitos sociais, econômicos e culturais. Além disso, praticamente no mesmo ritmo foram edificados os sistemas regionais de proteção, destacando-se aqui, em especial pelo nível de desenvolvimento normativo, organizatório e institucional, os sistemas europeu e interamericano, que, a despeito de não irrelevantes — e necessárias — diferenças, partem todos de uma base jurídica e ética comum, a começar pela Dudh.

No que diz com a relação entre os sistemas universal e regionais de proteção e a evolução do constitucionalismo no pós-guerra, a evolução foi lenta, errática, de tal sorte que mesmo o flerte demorou a vicejar, que dirá o namoro, o noivado e o casamento, que até hoje não une todos os estados e povos, havendo inclusive não raros casos de distanciamento e até de ruptura.

Todavia, a despeito disso, há mais do que comemorar do que a lamentar, visto que mesmo menores ou maiores déficits de eficácia social, a evolução foi e tem sido de uma consolidação da gramática e da cultura dos direitos humanos, tanto em nível internacional, quanto na esfera doméstica.

Um ponto a sublinhar, consiste no fato de que cada vez maior número de países incorporou parte menor ou maior dos direitos humanos previstos nos tratados por eles ratificados ao próprio catálogo constitucional de direitos, como, por exemplo, bem dá conta o caso da CF. Isso porque basta uma leitura transversal do texto constitucional e da Dudh e dos dois grandes pactos de 1966, para que se perceba de imediato que praticamente tudo que naqueles instrumentos está contido, também o está na nossa CF, isto — algo a sublinhar — antes de os dois pactos, mas também a Convenção Americana e o Protocolo de San Salvador terem sido ratificados e incorporados ao direito interno.

Isso também demonstra que, ao fim e ao cabo, alguma razão assiste aos que visualizam na consideração e respeito aos direitos humanos, um fenômeno de auto vinculação do, nessa perspectiva, não mais juridicamente ilimitado poder constituinte originário.

No que diz respeito à CF, também assume particular relevo que o Constituinte, pela primeira vez na história constitucional brasileira, inclui um item no âmbito do título dos princípios fundamentais, dedicado exclusivamente à atuação do Brasil na esfera das relações internacionais, enfatizando-se aqui o disposto no artigo 4º, II, que prevê como uma das diretrizes a prevalência dos direitos humanos.

Outro aspecto digno de nota, já referido em coluna anterior, diz respeito à igualmente original e inédita expansão da assim chamada abertura material do catálogo de direitos fundamentais, o que se deu mediante a inclusão no texto do artigo 5º, § 2º, CF, para além dos direitos decorrentes do regime e dos princípios da Constituição, os direitos humanos previstos nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.

Nada obstante a magnitude desses avanços, pouco mudou (e durante considerável tempo) no plano da dura realidade. Praticamente inexistia o que se pode chamar de uma cultura dos direitos humanos, incluindo até mesmo a parte dominante da acadêmica jurídica e praticamente todo o sistema de Justiça (juízes, advogados, etc.).  Mas, aos “trancos e barrancos”, as coisas evoluíram consideravelmente, a começar pela pregação incansável de setores da academia pela aplicação dos tratados e mesmo em prol de sua necessária hierarquia constitucional. O STF, mas também os demais atores da cena judiciária, seguiram resistindo, mas também nesse domínio, acabou havendo uma tomada de consciência em relação ao problema.

Mostra disso, é que o STF, após cerca de 18 anos insistindo (sempre por maioria, correto agregar) com a tese da paridade entre tratados de direitos humanos e as leis ordinárias, passou a mudar a sua orientação reconhecendo a supra legalidade de todos os tratados, à exceção daqueles aprovados na forma qualificada prevista no artigo 5º, § 3º, CF, incorporado ao texto constitucional por emenda em 2004, segundo o qual os tratados aprovados pelo Congresso como mesmo rito das emendas constitucionais, passariam a ter valor equivalente a elas.

Da mesma forma, especialmente de 2010 para cá, a “nova” orientação se difundiu em diversos setores da política e do sistema de justiça, crescendo cada vez mais o número de petições, pareceres e julgamentos invocando os tratados de direitos humanos como razões a sustentar pleitos, teses e decisões. Se tivéssemos ficado apenas nisso, já não seria nada mau, muito antes pelo contrário. Mas o progresso foi mais além, o que pode ser ilustrado com a inclusão cada vez mais rápida e massiva da agenda dos direitos humanos nos currículos universitários, cursos de preparação às carreiras jurídicas, sociedade civil organizada, poder público em geral, áreas de concentração, linhas de pesquisa e projetos de programas de pós-graduação, publicações, dentre tantos outros exemplos que aqui poderiam ser colacionados.

Como é impossível discorrer com pelo menos alguma profundidade sobre um dos tópicos aqui tematizados, o que nos importa é basicamente render uma singela homenagem a Dudh e de tudo que ela já fundou, orientou e proporcionou.

Isso evidentemente não quer dizer que tudo sejam louros, posto que, como adiantado, os problemas e desafios ainda são muitos e pesados, bastando aqui lançar um olhar sobre o número de conflitos armados em andamento, os persistentes níveis de racismo, xenofobia, discriminação de toda a sorte, exploração, níveis de pobreza, entre tantos outros.

Mas também isso que acabamos de objetar não pode levar a um estado de letargia, de conforto e mesmo de resignação, mas sim, tendo sempre presente que a mera positivação de direitos humanos e fundamentais não basta, os avanços alcançados foram transformadores e impulsionaram e seguem impulsionando o avanço civilizatório possível. Que a maior parte disso é tarefa de todos e cada um é mais do que sabido, mas nem por isso deixa de ser uma simples, mas sempre presente e desafiante verdade.

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