Opinião

Avaliação introdutória do status quo da imunidade tributária para entidades beneficentes

Autor

25 de abril de 2024, 17h26

Após décadas de discussão no Supremo Tribunal Federal, a questão da imunidade tributária para as entidades beneficentes de assistência social, prevista no artigo 195, §7º da Constituição, foi definida de forma majoritariamente favorável aos contribuintes e, posteriormente, firmou-se a base necessária para a adequada solução legislativa com a edição da Lei Complementar nº 187/2021.

Contudo, a aplicação da referida lei complementar também é um momento que necessita a criteriosa avaliação das regras estabelecidas e a diferenciação para cada caso concreto.

Controvérsia jurídica sobre a regulamentação da imunidade

A imunidade prevista para as entidades beneficentes de assistência social está contida no artigo 195, 7º da Constituição de 1988:

Artigo 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

§ 7º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.

O ponto central da controvérsia é a indicação de qual categoria de lei pode realizar a fixação de critérios para disciplinar o benefício tributário, visto que somente lei complementar pode estabelecer normas gerais de direito tributário.

Assim, em uma série de processos de jurisdição de controle de constitucionalidade, o STF suspendeu, em novembro de 1999, a eficácia de dispositivos da Lei nº 9.732/98 que fixavam contraprestações para que as entidades beneficentes gozassem da imunidade constitucional.

Portanto, os únicos requisitos que deveriam ser seguidos pelas entidades eram aqueles previstos no artigo 14 do Código Tributário Nacional, recepcionado como lei complementar:

Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional).

Artigo 14. O disposto na alínea c do inciso IV do art. 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nêle referidas:

I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título;

II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;

III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

A solução, contudo, apesar de ser aparentemente simples, demorou duas décadas para ser definitivamente decidida pelo Supremo Tribunal Federal, com o fim do processo iniciado pela ADI nº 2.028, ajuizada pela Confederação Nacional de Saúde — Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNS).

Em breve síntese, as ADIs nº 2.028, 2.036, 2.621, 2.228 e o RE nº 566.622 (Tema nº 32 da Repercussão Geral) foram no sentido de que “a lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo artigo 195, 7º da CF, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas.

Ressalta-se que, posteriormente, já no julgamento da ADI nº 4.480, o STF reafirmou a sua jurisprudência e realizou a distinção entre as contraprestações a serem observadas pelas entidades, necessariamente fixadas em lei complementar, e os procedimentos de controle da administração pública, que podem ser disciplinados por meio de lei ordinária.

Novo quadro após os julgamentos do STF

Após o julgamento, foi sancionada a Lei Complementar nº 187/2021, fixando em seu artigo 3º os requisitos gerais para que as entidades beneficentes recebam a certificação ministerial e sejam beneficiadas com a imunidade constitucional.

Spacca

Assim, destaca-se que os artigos 7º a 17 da Lei Complementar nº 187/2021 dispõem os critérios a serem observados especificamente pelas entidades beneficentes que atuem na área da saúde (em anexo).

Ademais, indica-se também que o procedimento para a certificação, conhecida como “Cebas”, é feito junto ao Ministério temático conforme regulamentado pelo Decreto nº 11.791/2023, inclusive estabelecendo em seu artigo 13 o prazo de validade da certidão em três anos para entidades com receita bruta inferior a R$ 1 milhão e de cinco anos para aquelas com receita bruta anual igual ou superior a R$ 1 milhão.

O legislador, buscando dar uma solução geral mais adequada para a controvérsia que causou distinções entre os contribuintes que obtiveram sucesso no âmbito administrativo ou haviam um provimento judicial favorável, estabeleceu a previsão para a extinção de créditos tributários lançados em razão do descumprimento de obrigações fixadas em leis declaradas inconstitucionais no artigo 41 da Lei Complementar nº 187/2021.

Indica-se que o Carf já se posicionou sobre o tema, estabelecendo a divisão entre os créditos tributários lançados pelo descumprimento dos requisitos previstos artigo 14 do CTN e aqueles que foram baseados em leis declaradas inconstitucionais. Vejamos:

CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS Exercício: 2017, 2018 NULIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. ADI 4480 INEXISTÊNCIA DE NULIDADE. PRELIMINAR AFASTADA O Supremo Tribunal Federal não declarou a inconstitucionalidade do caput do artigo 32, Lei 12.101/2009, bem como do artigo 29 e incisos I, II, III, IV, V, VII e VIII, quando do julgamento da ADI 4480. Sendo considerados, na oportunidade, constitucionais por estabelecerem condições previstas expressamente pela legislação complementar, no caso, o art. 14 do Código Tributário Nacional. Assim, tais dispositivos podem embasar lançamentos tributários não havendo que se falar em inconstitucionalidade. ARTIGO 41 DA LEI COMPLEMENTAR Nº 187/2021. APLICAÇÃO. O art. n. 41 da Lei Complementar n. 187/2021 aplica-se apenas para créditos decorrentes de contribuições sociais lançados contra instituições sem fins lucrativos que atuam nas áreas de saúde, de educação ou de assistência social, expressamente motivados por decisões derivadas de processos administrativos ou judiciais com base em dispositivos da legislação ordinária declarados inconstitucionais. (Processo n° 15746.722252/2021-80; Segunda Turma Ordinária da Segunda Câmara da Segunda Seção; Julgado em 05/10/2023; Publicado em 13/11/2023. Decisão nº 2202-010.400. Relator: GLEISON PIMENTA SOUSA).

CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS Período de apuração: 01/01/1999 a 31/12/2002 REMISSÃO. LEI COMPLEMENTAR 187, ART. 41. MANUTENÇÃO DO ART. 14 DO CTN. Dado o cancelamento da isenção ter sido lastreado por normas ainda vigentes no ordenamento, ainda que construídas a partir de outros textos de lei – a saber, o Código Tributário Nacional – não se deve aplicar a remissão prevista na Lei Complementar 187/2021. DECADÊNCIA. AUSÊNCIA DE ANTECIPAÇÃO DE PAGAMENTO. ART. 173, I DO CTN. Não se aplica o prazo do art. 150, § 4°, do CTN, quando não houver antecipação, ainda que parcial, do pagamento. NOTIFICAÇÃO APÓS O PRAZO DO MPF. SÚMULA CARF N. 171. Irregularidade na emissão, alteração ou prorrogação do Mandado de Procedimento Fiscal, tal como a ciência da notificação do sujeito passivo após o prazo de validade do MPF, não acarreta a nulidade do lançamento. CEBAS. CANCELAMENTO DA ISENÇÃO. EFEITOS. A pendência de julgamento de recurso contra ato cancelatório de isenção em segunda instância não impede o lançamento de contribuições previdenciárias, efetuado após decisão administrativa definitiva em relação ao descumprimento do artigo 55, incisos IV e V, da Lei n° 8.212/1991. Os efeitos do cancelamento da isenção da pessoa jurídica de direito privado retroagem a partir da data em que esta deixou de atender os requisitos previstos em lei. CEBAS. ART. 14 DO CTN. VALIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO. Para o art. 14 do CTN, os únicos entraves ao gozo da imunidade são: (1) não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (2) aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais e (3) manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão. […] MULTA DE MORA. SÚMULA CARF N. 132. No caso de lançamento de ofício sobre débito objeto de depósito judicial em montante parcial, a incidência de multa de ofício e de juros de mora atinge apenas o montante da dívida não abrangida pelo depósito. (Processo n° 36266.007330/2006-56; Primeira Turma Ordinária da Segunda Câmara da Segunda Seção; Julgado em 05/10/2023; Publicado em 27/11/2023. Decisão nº 2201-011.301. Relator: FERNANDO GOMES FAVACHO).

Segundo o Carf, portanto, caso a fiscalização tributária e respectivo o auto de infração estejam fundamentados em violações ao artigo 14 do CTN, o lançamento é válido e os créditos tributários não foram extintos com o a publicação da Lei Complementar nº 187/2021.

Contudo, afirma-se também a existência de uma relação de prejudicialidade entre o processo administrativo fiscal e outros processos, administrativos ou judiciais, que discutam o cumprimento dos requisitos legais para obtenção do Cebas. Em suma, uma vez reconhecido o direito do contribuinte, não deve ser realizada nenhuma cobrança das contribuições do artigo 195 da Constituição.

Certificação ministerial

Por fim, indica-se que o processo de obtenção da certificação do cumprimento dos requisitos é realizado nos Ministérios do Executivo Federal, sendo o Ministério da Saúde o responsável pela certificação das entidades beneficentes que atuam no setor.

A concentração dos trabalhos no Ministério não afasta a possibilidade de controle judicial sobre a legalidade do processo administrativo. Destaca-se, portanto, a recente liminar de ministro do STJ, suspendendo a decisão da ministra da Saúde de cancelamento do CEBAS diante de indícios de motivação inadequada do ato administrativo, tendo em vista que a fundamentação legal foi baseada em norma declarada inconstitucional. Vejamos.

MANDADO DE SEGURANÇA Nº 29881 – DF (2023/0435719-0). DECISÃO Em análise, mandado de segurança repressivo impetrado por MONTE TABOR – CENTRO ÍTALO-BRASILEIRO DE PROMOÇÃO SANITÁRIA, contra suposto ato ilegal atribuído a Exma. Sra. MINISTRA DA SAÚDE, ao fundamento de violação aos artigos 150, VI, ‘c’, e 195, §7º, da Constituição da República e artigo 14 do Código Tributário Nacional. Argumenta o impetrante, associação civil sem fins lucrativos filantrópica, que atua na área de saúde, no Município de Salvador/BA, com prestação parcial de serviços ao Sistema Único de Saúde. Afirma que o Ministério da Saúde cancelou o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social – CEBAS, referente ao período de 13/03/2017 a 12/03/2020, […] No caso, está presente o indício de violação ao direito do impetrante, haja vista que o cancelamento do benefício se deu com amparo em diretrizes da lei ordinária. Noutro giro, o periculum in mora reside na iminência de cobrança de valores devidos a título de tributos pelo impetrante, em virtude do ato impugnado, o que pode causar prejuízos de difícil reparação. Assim, diante da dúvida sobre os requisitos a serem legitimamente exigidos para obtenção da certificação, bem como sobre os efeitos advindos de seu cancelamento, mostra-se necessário manter o benefício da parte impetrante, até a devida análise do mérito. Isso posto, DEFIRO O PEDIDO LIMINAR, para determinar à autoridade coatora que se abstenha de cancelar o Certificado de Beneficência de Assistência Social – CEBAS (período de 2017 a 2020), concedido ao impetrante, garantindo a imunidade tributária, caso a decisão de indeferimento ocorra com base em requisitos diversos daqueles previstos no artigo 14, do Código Tributário Nacional. Comunique-se a autoridade coatora, com urgência, do conteúdo da presente decisão, notificando-a para, querendo, prestar informações no prazo legal. Determino que seja dada ciência da decisão à Advocacia-Geral da União, nos termos do art. 7º, II, da Lei n. 12.016/2009. Findo o prazo para as informações, dê-se vista ao Ministério Público Federal, para parecer. Brasília, 05 de dezembro de 2023. Ministro Afrânio Vilela. Relator. (MS n. 29.881, Ministro Afrânio Vilela, DJe de 06/12/2023.) .

Assim, entendendo a relevância da imunidade para as entidades beneficentes, sendo que o custo tributário das diversas contribuições para a seguridade social dispostas no artigo 195 da Constituição poderia desestabilizar a própria assistência oferecida, torna-se essencial o acompanhamento do credenciamento ministerial, sendo inclusive recomendado o ingresso no Judiciário se for necessário assegurar os direitos do contribuinte.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!