Opinião

Por um 'direito ao erro' na Administração Pública brasileira

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27 de abril de 2024, 6h01

É amplamente conhecido o chamado “princípio da inescusabilidade da ignorância da lei”, segundo o qual, nos termos do artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro, “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

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Embora tal princípio seja um pressuposto de funcionamento do próprio Direito, impõe-se reconhecer que sua proclamação soa como uma zombaria ante um ordenamento jurídico hipertrofiado, incoerente e sujeito a alterações constantes como o brasileiro [1].

Para traduzir em números: estudo recente revelou que, desde a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, até o dia 30 de setembro de 2023, foram editadas mais de 7 milhões de normas jurídicas, é dizer, 586 normas produzidas todos os dias [2].

Ora, se os especialistas enfrentam enormes dificuldades para interpretar e aplicar esse cipoal normativo, o que dizer da generalidade das pessoas, sobretudo em setores altamente complexos como a administração tributária?

Essa hipernomia produz uma incerteza jurídica massacrante e expõe as pessoas e as empresas a condutas arbitrárias da Administração Pública, para a qual resulta facílimo encontrar, de inopino, infrações administrativas, uma vez que é rigorosamente impossível cumprir todas as normas em vigor.

Contra esse tétrico estado de coisas, em 10 de agosto de 2018 editou-se na França a “lei para um Estado a serviço de uma sociedade de confiança”, por meio da qual se pretendeu conduzir a Administração Pública francesa à visão de uma administração “de aconselhamento e de serviços”, de uma administração “que apoia”, “que se engaja” e “que dialoga”, no lugar de uma Administração Pública estritamente repressiva.

Entre os dispositivos introduzidos por essa lei se destaca o chamado “direito ao erro” perante a Administração Pública.

O que isso significa?

Seja-nos permitido reproduzir, em tradução livre, o texto legal francês:

“Uma pessoa que tenha, pela primeira vez, desrespeitado uma regra aplicável à sua situação ou que tenha cometido um erro material ao fornecer informações sobre sua situação não poderá ser sujeita, pela administração, a uma penalidade, seja pecuniária ou consistente na privação de todo ou parte de um benefício devido, se tiver regularizado sua situação por iniciativa própria ou após ter sido convidada a fazê-lo pela Administração dentro do prazo indicado por esta última” [3].

Extrai-se, pois, que o “direito ao erro” — que, em rigor, é o direito de regularizar uma infração — se traduz em alguns deveres das autoridades administrativas, quais sejam: verificar se é a primeira vez que a pessoa comete a infração; aferir se há má-fé ou fraude, se não houver, convidar a pessoa a regularizar a situação. Uma vez regularizada, nenhuma penalidade será imposta .

Jacques Chavellier sublinha, acertadamente, a transcendência dessa inovação: “Em primeiro lugar, há uma mudança na forma como o administrado é percebido: aceita-se que ele possa cometer erros (uma possibilidade que era amplamente ignorada no Direito Público) e uma presunção de boa-fé é estabelecida em seu favor (mesmo que ele tenha cometido erros); esse é o fim da relação tradicional de desconfiança, em que o administrado era visto a priori como suspeito” [4].

A incorporação do “direito ao erro” no Direito brasileiro constituiria uma revolução copernicana na relação que a Administração Pública entretém com os particulares. Por um lado, reforçaria a vocação garantista do Direito Administrativo, oferecendo às pessoas e às empresas um escudo poderoso contra o arbítrio do Estado; por outro lado, deslocaria os esforços e a preocupação da Administração Pública para o que realmente importa: os fraudadores e os infratores contumazes.

 

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[1] VALIM, Rafael. O princípio da segurança jurídica no Direito Administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010, 93.

[2] O estudo foi produzido pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário – IBPT: https://ibpt.com.br/estudo-quantidade-de-normas-35-anos-cf-2023/

[3] Texto original: “Une personne ayant méconnu pour la première fois une règle applicable à sa situation ou ayant commis une erreur matérielle lors du renseignement de sa situation ne peut faire l’objet, de la part de l’administration, d’une sanction, pécuniaire ou consistant en la privation de tout ou partie d’une prestation due, si elle a régularisé sa situation de sa propre initiative ou après avoir été invitée à le faire par l’administration dans le délai que celle-ci lui a indique” (Acessível em: https://www.legifrance.gouv.fr/codes/id/LEGISCTA000037312374).

[4] CHEVALLIER, Jacques. Confiance et droit à l’erreur. Action publique. Recherche et pratiques, 2020/1 (N° 6), p. 2.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. É professor visitante na Universidade de Manchester (Inglaterra), na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha) e na Université Le Havre Normandie (França). É também professor da Maestría Anticorrupción da Universidad Panamericana (México), da Maestría en Contratación Estatal da Universidad La Sabana (Colômbia) e do curso de Especialização em Direito Administrativo da Universidad de Comahue (Argentina). Lidera a área de Direito Público do escritório Warde Advogados.

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