Opinião

Ministério Público deve prever pagamento da pena de multa nos ANPPs

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

12 de dezembro de 2023, 7h02

O acordo de não persecução penal, conhecido pela sigla ANPP,  é um negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessariamente homologado pelo juízo competente, celebrado entre o Ministério Público e o agente que tenha praticado o fato criminoso (devidamente assistido por seu advogado ou defensor), na fase de investigação de um ilícito penal, em que o investigado confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, aceitando voluntariamente cumprir determinadas condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso com o Parquet de promover o arquivamento do feito, caso o acordo seja totalmente cumprido.

O instituto do ANPP foi concebido para açambarcar crimes de médio potencial ofensivo que, pelo quantum da pena aplicada, e pelas particularidades do crime cometido e condições pessoais do autor, não redundariam na imposição de pena privativa de liberdade.

De tal sorte, o ANPP objetiva evitar o demorado e dispendioso trâmite do processo criminal, com todos os seus reflexos negativos para as partes envolvidas, em casos que, ao final, apenas penas não restritivas de liberdade seriam impostas em uma factível condenação.

Demonstrando a veracidade de tal assertiva, constata-se, a propósito, uma enorme similitude entre as previsões do artigo 44 do Código Penal, com as do artigo 28-A do Código de Processo Penal.

Destaque-se que na substituição prevista no artigo 44 do Código Penal a sanção pecuniária tem aplicação destacada como alternativa à pena privativa de liberdade, estando previsto no parágrafo segundo que: “Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos”.

Logo, verifica-se completa adequação da aplicação da pena de multa nas previsões do nosso ordenamento jurídico que buscam alternativas à imposição da pena privativa de liberdade.

Destaque-se que a finalidade da pena de multa não é meramente arrecadatória; possui, além do caráter retributivo, o de prevenção, seja para reafirmar a vigência da norma (prevenção geral positiva), seja para evitar o cometimento de crimes (prevenção geral negativa). Enfim, a finalidade primordial da pena de multa é a repressão do crime, não apenas em resposta à necessidade social de conter delitos que comprometem a harmoniosa convivência entre as pessoas, como também punindo o delinquente a fim de incentivá-lo a uma mudança de comportamento.

Como sabido, os tipos penais incriminadores são compostos de dois preceitos.

Ao preceito primário incumbe a descrição da conduta que se busca proibir ou impor.  A título de exemplo, citamos o artigo 155, caput, do Código Penal: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”.

Já o preceito secundário encarrega-se da cominação abstrata e individualizada da respectiva sanção penal decorrente da conduta descrita no preceito primário. No geral, o preceito secundário prevê a imposição de penas restritivas de liberdade e multa, que podem ser aplicadas de forma isolada, alternativa ou cumulativa, conforme cada previsão específica.

No caso do artigo 155, caput, do Código Penal, por exemplo, que trata do crime de furto,  ele é o seguinte: “Pena — reclusão, de um a quatro anos, e multa”.

Quando há previsão  da pena de multa de forma cumulativa com a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, a sua aplicação é de caráter cogente, sob pena de malferimento ao princípio da legalidade.

A propósito, no âmbito da jurisprudência, colhe-se:

Não procede a pretensão de exclusão da pena de multa, posto que a sanção consiste em preceito secundário da norma (art. 33 da Lei nº 11.343/06) e possui suporte no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal de 1988, sendo vedado ao Poder Judiciário afastá-la de plano, sob pena de violação da competência constitucionalmente atribuída ao Poder Legislativo e, ainda, ao Princípio da Legalidade. (TJMG; APCR 0007594-52.2020.8.13.0026; Primeira Câmara Criminal; Rel. Des. Edison Feital Leite; Julg. 29/11/2022; DJEMG 07/12/2022).

Entendemos que o ANPP deve prever, com as adequações estipuladas no artigo 28-A do CPP, todas as imposições que exsurgiriam de uma eventual sentença penal condenatória, a exemplo da obrigatoriedade de reparação do dano à vítima (artigo 387, IV, do CPP e 91, I do CPB), a perda dos instrumentos, produtos e proveitos do crime (artigo 91, II, do CPB) e as penas restritivas de direitos aplicadas, que são a prestação de serviços à comunidade (com diminuição de um a dois terços) e/ou o pagamento de prestação pecuniária.

Não se discute que, expressamente, o artigo 28-A do CPP não faz menção ao pagamento da pena de multa quando prevista de forma cumulativa com a pena privativa de liberdade.

Entretanto, isso não significa que ela não deva ser prevista como condição no ajuste despenalizador, pois a hermenêutica jurídica não se contenta com a simples literalidade ou com o silêncio dos textos normativos, não raras vezes vazados de forma incompleta ou imprecisa, reclamando a devida interpretação por parte dos operadores do Direito.

Com efeito, uma leitura sistêmica do ordenamento jurídico nos impõe a conclusão de  que, quando prevista no preceito secundário de tipos penais incriminadores, a imposição da multa é medida obrigatória, sob pena de malferimento aos princípios da legalidade, da obrigatoriedade e da indisponibilidade, como acima demonstramos.

Em tal contexto, temos  entendimento no sentido de que, sempre que prevista no preceito secundário de crime que for objeto de ANPP, a previsão do pagamento da pena de multa como condição do ajuste é de natureza obrigatória e encontra conformação na previsão do artigo 28-A, V, do CPP, que diz respeito ao cumprimento de “outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada”.

Ora, ao Ministério Público, como titular da ação penal e da prerrogativa legal de oferecimento do ANPP, não é dado dispor de sanções previstas no ordenamento jurídico positivado, como a pena de multa, que, a propósito,  guarda absoluta compatibilidade com os mecanismos de justiça penal negocial.

Logo, deixar de prever o pagamento da pena de multa nos casos em que ela estiver expressamente cominada,  implicaria verdadeiro “perdão ministerial”, autorizando o magistrado a não homologar o acordo pela insuficiência das medidas pactuadas e não atendimento dos requisitos legais exigidos  (artigo 28-A, § 5º e 7º do CPP).

Enfim, a pena de multa, prevista expressamente em nosso texto constitucional, necessita de maior atenção e estudos por parte dos operadores do direito enquanto sanção alternativa às modalidades tradicionais de repressão ao crime.

A sua devida cobrança,  para além de atender ao princípio da legalidade, aduz benefícios em favor do nosso combalido sistema prisional,  considerando que o seu valor é revertido ao Fundo Penitenciário, destinado à construção, reforma, ampliação e aprimoramento de estabelecimentos penais.

A pena de multa ocupa papel de destaque no quadro dos institutos que buscam alternativas à imposição da pena privativa de liberdade e a sua previsão nos ANPPs que versem sobre crimes em que ela estiver estipulada no preceito secundário, longe de ser faculdade, é obrigação do Ministério Público, sob pena de malferimento aos princípios da legalidade, obrigatoriedade e indisponibilidade.

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