Opinião

Teoria da perda de chance probatória e excesso de credibilidade atribuído à fala da vítima nos crimes sexuais

Autor

  • Thiago Hygino Knopp

    é especialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes advogado criminalista com foco em casos de consumo pessoal e tráfico de drogas. Editor do blog pergunteaocriminalista.com.br.

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6 de maio de 2024, 15h19

Na sistemática do Código de Processo Penal brasileiro, a figura da vítima não se confunde com a da testemunha, não estando o ofendido sujeito ao compromisso de dizer a verdade e, por conseguinte, ao contrário da testemunha, não pode ser sujeito ativo do crime de falso testemunho (artigo 342 do Código Penal).

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Apesar de não se negar relevância ao relato da vítima a fim de obter a captura psíquica do julgador, não se pode negligenciar que a versão do ofendido se harmonizará, pelas mais diversas razões, à hipótese acusatória imputada na denúncia, o que compromete a imparcialidade dos fatos narrados.

Daí a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, por um lado, reconhecer especial relevância ao que contado pela vítima de crimes sexuais, mas por outro, em homenagem ao princípio da presunção de inocência e considerando que “a aceitação isolada da palavra da vítima pode ser tão perigosa, em função da certeza exigida para a condenação, quanto uma confissão do réu” [1], exigir que demais provas corroborem o seu relato, vejamos: “em delitos sexuais, comumente praticados às ocultas, a palavra da vítima possui especial relevância, desde que esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos[2].

Ao Estado-Acusador, nesse sentido, recai a carga de provar, para além da versão narrada pela vítima, a culpa do acusado, requerendo a produção de todas as provas plausíveis para a construção da verdade à luz do devido processo penal, sob pena de se tornar inviável a condenação com fundamento nas provas remanescentes.

Não pode(ria) o Parquet, portanto, contentar-se em postular, tão somente, a oitiva do ofendido para buscar demonstrar a existência de materialidade e autoria do crime quando for possível a produção de outras provas, em alusão ao que Alexandre Morais da Rosa denomina de “Teoria da Perda de uma Chance Probatória”, tese referendada pelo STJ ao julgar, em 14/12/2021, o AREsp n. 1.940.381/AL, rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma. Confiram-se a ementa:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ATO INFRACIONAL ANÁLOGO A HOMICÍDIO TENTADO. TESE DE LEGÍTIMA DEFESA. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO IDÔNEA PARA SUA REJEIÇÃO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. TESTEMUNHO INDIRETO (HEARSAY TESTIMONY) QUE NÃO SERVE PARA FUNDAMENTAR A CONDENAÇÃO. OFENSA AO ART. 212 DO CPP. AUSÊNCIA DE IDENTIFICAÇÃO, PELA POLÍCIA, DAS TESTEMUNHAS OCULARES DO DELITO, IMPOSSIBILITANDO SUA OUVIDA EM JUÍZO. FALTA TAMBÉM DO EXAME DE CORPO DE DELITO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 6º, III E VII, E 158 DO CPP. DESISTÊNCIA, PELO PARQUET, DA OUVIDA DE DUAS TESTEMUNHAS IDENTIFICADAS E DA VÍTIMA. GRAVES OMISSÕES DA POLÍCIA E DO MINISTÉRIO PÚBLICO QUE RESULTARAM NA FALTA DE PRODUÇÃO DE PROVAS RELEVANTES. TEORIA DA PERDA DA CHANCE PROBATÓRIA. DESCONSIDERAÇÃO DO DEPOIMENTO DO REPRESENTADO. EVIDENTE INJUSTIÇA EPISTÊMICA. AGRAVO CONHECIDO PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL, A FIM DE ABSOLVER O RECORRENTE. 1. O representado foi condenado em primeira e segunda instâncias pela prática de ato infracional análogo a homicídio tentado. 2. Como relataram a sentença e o acórdão, a namorada grávida e um amigo do recorrente foram agredidos por J F DA S A após este ter consumido bebida alcoólica, ao que o representado reagiu, golpeando o agressor com um paralelepípedo. Segundo as instâncias ordinárias, constatou-se excesso na legítima defesa, com base nos depoimentos indiretos do bombeiro e da policial militar que atenderam a ocorrência quando a briga já havia acabado. Esses depoentes, por sua vez, relataram o que lhes foi informado por “populares”, testemunhas oculares da discussão que não chegaram a ser identificadas ou ouvidas formalmente pela polícia, tampouco em juízo. 3. O testemunho indireto (hearsay testimony) não se reveste da segurança necessária para demonstrar a ocorrência de nenhum elemento do crime, mormente porque retira das partes a prerrogativa legal de inquirir a testemunha ocular dos fatos (art. 212 do CPP). 4. A imprestabilidade do testemunho indireto no presente caso é reforçada pelo fato de que a polícia, em violação do art. 6º, III, do CPP, nem identificou as testemunhas oculares que lhes repassaram as informações posteriormente relatadas pela policial militar em juízo. Por outro lado, a vítima, a namorada do recorrente e seu amigo – todos conhecidos da polícia e do Parquet – não foram ouvidos em juízo, tendo o MP/AL desistido de sua inquirição. 5. Para além da falta de identificação e ouvida das testemunhas oculares, a vítima não foi submetida a exame de corpo de delito, por inércia da autoridade policial e sem a apresentação de justificativa válida para tanto (na forma do art. 167 do CPP), o que ofende os arts. 6º, VII, e 158 do CPP. Perda da chance probatória configurada. 6. “Nas hipóteses em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, o acusado perde a chance – com a não produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) –, de que a sua inocência seja afastada (ou não) de boa-fé. Ou seja, sua expectativa foi destruída” (ROSA, Alexandre Morais da; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, 2017, p. 462). 7. Mesmo sem a produção de nenhuma prova direta sobre os fatos por parte da acusação, a tese de legítima defesa apresentada pelo réu foi ignorada. Evidente injustiça epistêmica – cometida contra um jovem pobre, em situação de rua, sem educação formal e que se tornou pai na adolescência –, pela simples desconsideração da narrativa do representado. 8. Agravo conhecido para dar provimento ao recurso especial e absolver o recorrente, com a adoção das seguintes teses: 8.1: o testemunho indireto (também conhecido como testemunho de “ouvir dizer” ou hearsay testimony) não é apto para comprovar a ocorrência de nenhum elemento do crime e, por conseguinte, não serve para fundamentar a condenação do réu. Sua utilidade deve se restringir a apenas indicar ao juízo testemunhas referidas para posterior ouvida na instrução processual, na forma do art. 209, § 1º, do CPP. 8.2: quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes.

É necessária, portanto, a produção de todas as provas possíveis, sob pena de flexionar a presunção de inocência pressuposta em nome da facilidade da condenação, fazendo com que o acusado perca a chance de questionar a consistência e coerência de todas as provas […] Deve, portanto, exigir-se a justificativa plausível para que tenha se perdido a chance de se produzir prova material, além da testemunhal, pelos agentes estatais [3].

No dia a dia da práxis forense, no entanto, em muitos casos não se verifica fundadas razões que justifiquem a desídia das agências do sistema de justiça criminal na produção de todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, empregando-se a lei do menor esforço durante a confecção do laudo psicológico e/ou oitiva da vítima em juízo com a determinação da retirada do réu da sala de audiências, tornando regra, neste caso, a exceção contida no artigo 217 do CPP e negligenciado o dever constitucional de fundamentação quanto aos motivos de sua adoção, sendo possível cogitar problema no tocante às provas de fonte pessoal, cuja produção deve contar com a participação efetiva do acusado, a fim de que se respeite o paradigma do direito ao confronto [4].

Injustiça epistêmica testemunhal

Infere-se, nesse diapasão, espécie de injustiça epistêmica testemunhal (Jennifer Lackey) decorrente do excesso de credibilidade atribuída a fala da vítima ao se pactuar com condenações exclusivamente fundamentadas na palavra da ofendida — há muito rechaçado pelos tribunais superiores porque insuficiente para superar, além da dúvida razoável, o estado de inocência do acusado.

No que concerne as outras provas que deixam de ser postuladas e que poderiam demonstrar o acerto da hipótese acusatória, mas, de igual modo, a inocência do acusado, denota a (conveniente) omissão dos órgãos do Estado responsáveis pela persecução penal que delegam suas atribuições constitucionais ao sujeito que se considera vítima no caso penal trazido ao conhecimento das agências de criminalização secundária, como se a ele coubesse praticar qualquer ato de investigação preliminar.

Não se pretende, por elementar, demonizar a palavra do ofendido, especialmente diante de condutas penalmente relevantes que lesionem o bem jurídico liberdade sexual, mas delimitar os papéis constitucionais dos sujeitos envolvidos no Processo Penal (Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), instrumento de salvaguarda de direitos e garantias fundamentais.

Trivial, nesse sentido, que a polícia judiciária é quem tem atribuição de praticar atos de investigação preliminar, com vista a subsidiar o órgão acusador de elementos mínimos que indiquem a verossimilhança da materialidade e autoria delitivas.

Ao Parquet, por sua vez, recai a carga de provar, para além da versão contada pela vítima, a culpa do acusado, requerendo a produção de todas as provas possíveis para a construção da verdade à luz do devido processo penal, sob pena de se tornar inviável a condenação com fundamento nas provas remanescentes.

Para concluir, citando trecho do voto do ministro Ribeiro Dantas, “havendo possíveis meios de prova não explorados pela acusação, pode ela contentar-se com a produção de uma prova incompleta, deixando de perseguir as demais linhas probatórias e transferindo à defesa esse ônus?”.

A resposta, a propósito, pode ser conferida na tese fixada pelo STJ, in verbis: “quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes” (AREsp n. 1.940.381/AL, rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 14/12/2021).

 

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Referências bibliográficas

FIGUEIREDO, Daniel Diamantaras de; ROSA, Alexandre Morais da. O que significa o Paradigma do Direito ao Confronto no Processo Penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-15/o-que-significa-o-paradigma-do-direito-ao-confronto-no-processo-penal/. Acesso em: 19/4/2024.

HERDY, Raquel. O excesso de credibilidade atribuída a peritos é um tipo de injustiça epistêmica. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/nova-limite-penal/386016/o-excesso-de-credibilidade-atribuida-a-peritos-e-injustica-epistemica. Acesso em: 26/3/2024.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª. Edição. São Paulo: Saraiva, 2020.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. 3ª. Edição. Volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 124.

ROSA, Alexandre Morais da; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, 2017.

ROSA, Alexandre Morais da. Teoria da Perda de uma Chance probatória pode ser aplicada ao Processo Penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jun-20/teoria-perda-chance-probatoria-aplicada-processo-penal. Acesso em: 26/3/2024.

 

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal. 3ª. Edição. Volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 124.

[2] Jurisprudência em Teses. Edição n. 111: Provas no Processo Penal II.

[3] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-jun-20/teoria-perda-chance-probatoria-aplicada-processo-penal. Acesso em: 29/2/2024.

[4] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-15/o-que-significa-o-paradigma-do-direito-ao-confronto-no-processo-penal/. Acesso em: 19/4/2024.

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