Opinião

Inconstitucionalidade das denominadas leis excepcionais e temporárias no âmbito criminal

Autor

  • Thales Sousa da Silva

    é assessor judiciário no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (matéria cível) servidor efetivo do TJ-DF especialista em Direito Penal e Processual Penal autor no Canal de Ciências Criminais e no Internacional Center for Criminal Studies (ICC) colaborador no Empório do Direito e membro do Clube Metajurídico.

21 de abril de 2024, 17h17

Diz o artigo 3º do Código Penal: “A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”.

Como será demonstrado, o conteúdo normativo em destaque tende a ferir o texto da Constituição.

Os dez axiomas do sistema garantista

O sistema garantista prega a racionalização do poder de punir atribuído ao estado por sua carta política fundamental. Embora não os tenha instituído, o jurista italiano Luigi Ferrajoli sistematizou os dez axiomas do garantismo penal [1].

Em livre tradução, são eles: não há pena sem crime; não há crime sem lei; não há lei sem necessidade; não há necessidade sem lesão; não há lesão sem ação; não há ação sem culpa; não há culpa sem julgamento; não há julgamento sem acusação; não há acusação sem prova; e não há prova sem defesa.

A Constituição é nitidamente garantista, bastando nesse sentido conferir o teor de seu artigo 5º, inciso XXXIV (princípio da legalidade estrita/taxatividade); inciso LIV (princípio do devido processo legal); inciso LV (princípios da ampla defesa e do contraditório); inciso LVI (princípio da legalidade da prova; inciso LVII (princípio da presunção de inocência); inciso XXXVII (proibição ao juízo ou tribunal de exceção); inciso XLV (princípio da intranscendência da sanção penal), inciso XLVI (princípio da individualização da pena); inciso XLVII (vedação às penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, banimento ou penas cruéis); inciso XL (irretroatividade da lei penal benéfica) e outros.

Aplicar uma norma penal incriminatória ou gravosa em período temporal alheio à sua vigência caracterizaria direta ofensa ao preceito garantista, segundo o qual, não há crime sem lei (nullum crimen sine lege) reproduzido pela Constituição em seu artigo 5º, incisos XXXIX e XL, veja-se: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Hipótese de antinomia: artigo 2º do Código Penal

Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. Essa é a previsão expressa do artigo 2º do Código Penal.

O artigo 3º, ao instituir a figura das leis penais e temporárias, pretende relativizar a aplicação dessa regra em casos especificíssimos. A relativização não tem amparo no texto constitucional, no entanto, quando voltada para a aplicação de norma incriminadora ou gravosa, situação que implicaria não apenas um contexto de antinomia, mas também hipótese de inconstitucionalidade material.

Ultratividade da norma penal

 A doutrina costuma afirmar que as leis excepcionais e temporárias referem um caso de ultratividade da lei penal incriminadora, confira-se:

“A doutrina costuma afirmar que as leis excepcionais e temporárias são leis ultrativas, ou seja, que produzem efeitos mesmo após o término de sua vigência” [2].

“Essa qualidade da lei, pela qual tem eficácia mesmo despois de cessada a sua vigência, recebe o nome de ultratividade” [3].

“A ultratividade significa a possibilidade de uma lei se aplicar a um fato cometido durante a sua vigência mesmo após a sua revogação” [4].

“Portanto, essas leis (temporárias ou excepcionais) são sempre ultrativas, ou seja, continuam a produzir efeitos aos fatos praticados durante a sua vigência” [5].

“As leis temporárias e excepcionais, nos termos do art. 3º do CP, têm utratividade” [6].

“Por serem ultra-ativas alcançam fatos praticados durante a sua vigência, ainda que as circunstâncias de prazo e de emergência tenham se esvaído [7]“.

Com as devidas vênias, sem razão a doutrina majoritária.

Os fatos subsumíveis à norma são regulados pelas regras vigentes à época de sua prática (tempus regit actum), a teor do artigo 4º do Código Penal.

Spacca

Essa regra é excepcionada em virtude da adoção de preceitos garantistas e critérios de política criminal para permitir que a lei posterior benéfica seja aplicada a fatos ocorridos anteriormente à sua vigência (artigo 2º do Código Penal). A retroatividade penal benéfica tem estatura constitucional por estar inserida no artigo 5º, inciso XL, da Constituição, convém insistir.

A aplicação das normas nominadas de temporárias ou excepcionais, após o término de sua vigência, a fatos praticados enquanto ainda vigoravam, nada mais é do que a observância da regra geral (tempus regit actum), não se podendo falar, por essa razão, em ultratividade.

Com mais veemência, esse fenômeno não é de ultratividade (princípio da extratividade), mas sim de aplicação norma prevista no artigo 4º do Código Penal (princípio da atividade, portanto).

Não há problemas quando se trata de aplicar uma norma temporária ou excepcional benéfica. O problema exsurge quando a norma é incriminadora ou gravosa. Nesses casos, para incidir a norma excepcional ou temporária, seria necessário aplicar a regra geral prevista no artigo 4º do CP, afastando-se, necessariamente, o preceito da retroatividade benéfica das normas, e por isso afrontando o texto da Constituição.

Aliás, esse procedimento não é juridicamente viável, em razão da natureza da norma constitucional envolvida.

O artigo 5º, inciso XL, da Constituição trata de norma de eficácia plena, que produz seus efeitos de imediato e não admite, ao menos em regra, qualquer contenção por lei. Não pode ter nesses casos a sua aplicação restringida por uma regra prevista no Código Penal.

Insiste-se, assim, que o artigo 3º do CP, ao relativizar a aplicação do texto constitucional expresso, incorre em hipótese de inconstitucionalidade.

É semelhante a posição adotada pelo ilustre jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni, senão vejamos [8]:

“O artigo 3º do CP estabelece que, nos casos de leis temporárias e excepcionais, não vigora a retroatividade da lei posterior mais benigna estabelecida no art. 2º. Trata-se de uma limitação à regra do art. 2º, que foi consagrada no Código Penal de 1940 e que se mantém no texto vigente. Seu fundamento seria a perda de eficácia intimidatória preventiva destas leis, se não fosse estabelecida a exceção. Esta disposição legal é de duvidosa constitucionalidade, posto que constitui exceção à irretroatividade legal que consagra a Constituição Federal (salvo para beneficiar o réu), e não admite exceções, ou seja, possui caráter absoluto (art. 5º, inc. XL)”.

Como é possível também excisar do registro doutrinário acima transcrito, os argumentos que suportam a validade da norma prevista no artigo 3º do Código Penal são meramente utilitaristas. Note-se, nesse sentido, o que aduz o doutrinador Miguel Reale Júnior [9]:

Quanto às leis excepcionais e temporárias o art. 3º do Código Penal estatui que (…). E não poderia ser diferente, sob pena de se esvaziar de conteúdo a norma excepcional ou temporária, que protegem valores a serem protegidos naquele período, e que deixariam de sê-lo se o agente viesse a contar com a retroação da lei penal comum (…)

Considerações a respeito da eficácia intimidatória preventiva da lei remetem ao campo da política criminal, que precisa estar pautadas, por óbvio, nas decisões políticas fundamentais externadas por meio da Constituição.

Conclusão

Diante dessas palavras, entende-se indevido o afastamento do preceito da irretroatividade benigna por meio de norma infraconstitucional, caracterizada por essa razão a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 3º do CP.

 


[1] FERRAJIOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

[2] ESTEFAM, André. Direito Penal: parte geral. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

[3] JESUS, Damásio de. Direito Penal. 37 ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 19 ed. Rio de Janeiro:  Forense, 2023.

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 29 ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

[7] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral. 8 ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.

[8] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 14 ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.

[9] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2012.

Autores

  • é integrante do espectro do autismo, tecnólogo em Secretariado Jurídico, bacharel em Direito, especialista em Direito Penal e Processual Penal, pós-graduando em Gestão de Segurança Pública, assessor de um dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, membro do Clube Metajuridídico, autor no Canal de Ciências Criminais, no Empório do Direito, no Internacional Center for Criminal Studies (ICCS) e autor de artigos jurídicos.

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