Opinião

Crime de violência política de gênero e definição de competência

Autores

  • Ana Claudia Santano

    é coordenadora geral da Transparência Eleitoral Brasil; membro fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep); observadora Eleitoral Nacional e Internacional em diversas missões na América Latina; doutora e mestra em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidade de Salamanca Espanha; com período pos-doutoral em direito público econômico na PUCPR e em direito constitucional na Univ. Externado Colômbia; professora e pesquisadora em direito constitucional direito eleitoral e direitos humanos.

  • Luiz Carlos dos Santos Gonçalves

    é procurador regional da República e ex-procurador regional eleitoral de São Paulo.

7 de maio de 2024, 17h17

A definição da competência dos juízes e tribunais para o processo e julgamento de crimes assume, no Brasil, contornos de grande significação e até de drama. Não é diferente com os crimes eleitorais. Em artigo recente, José Jairo Gomes [1] suscitou debate sobre a competência para o crime de “violência política de gênero” [2].

O tipo penal do artigo 326-B do Código Eleitoral coligiu condutas criminosas já existentes no Código Penal, como assédio, constrangimento, perseguição e ameaça, [3] e as reuniu quando a conduta for praticada em face de mulher candidata ou detentora de mandato eletivo por discriminação de gênero e para dificultar seu desempenho em tais situações.

O autor filiou-se a um critério de competência baseado no que seria o bem jurídico tutelado pelos crimes eleitorais, “a proteção de bens eleitorais ou inerentes ao processo eleitoral”, a ser reconhecido se a conduta for contra candidata, mas não se a mulher já detém um mandato. Para tanto, ele cita o precedente do STJ, Conflito de Competência 127101/RS, segundo o qual: “[…] 1. A simples existência, no Código Eleitoral, de descrição formal de conduta típica não se traduz, incontinenti, em crime eleitoral, sendo necessário, também, que se configure o conteúdo material de tal crime. […]”.

Por tal construção, crimes do Código Penal, como o artigo 359-N, interrupção do processo eleitoral, podem ser de competência da Justiça Eleitoral, ao passo que outras figuras, a despeito de previstas na legislação eleitoral, não o seriam. Exemplifica: “crimes contra a honra (CE, artigos 324 a 325), crime de denunciação caluniosa (CE, artigo 326-A), crimes de falso (CE, artigos 348 a 350), crime do artigo 326-B do CE, quando a vítima estiver no exercício de mandato”.

Com isso, o autor argumenta que haveria inconstitucionalidade no reconhecimento da competência eleitoral no artigo 326-B, que não foi inserido no Código Eleitoral via lei complementar, de acordo com o artigo 121 da Constituição, uma vez que a Lei nº 14.192/2021 é ordinária.

Este artigo se destina a oferecer uma visão diferente.

Critério da decisão legislativa para o reconhecimento da competência

As opções feitas pelo legislador, exceto se maculadas de inconstitucionalidade, devem ser prestigiadas. Temos que sua decisão de incluir um tipo na codificação genérica ou na especial é essencial para a definição da competência.

Diz Rodrigo López Zílio: “[…] não são julgados pela Justiça Eleitoral determinados crimes, ainda que cometidos em ambiente eleitoral, quando não houver uma tipificação expressamente definida na esfera especializada” [4].

Spacca

Crimes praticados durante o mandato, ao contrário do que pareceu sugerir o eminente articulista, serão de competência eleitoral, desde que tenham “finalidade eleitoral” ou se referirem a “propaganda eleitoral”. É o caso dos crimes eleitorais contra a honra (artigo 324 a 326, CE) e contra a fé pública (artigos 348 a 354) e da denunciação caluniosa, artigo 326-A, CE.

Por sua vez, o crime do artigo 359-N do Código Penal — a interrupção do processo eleitoral —, a despeito de sua descrição [5], não é de competência da Justiça Eleitoral. Está no Código Penal, no capítulo dos crimes contra o Estado democrático de direito, e demanda potencial lesivo de expor a risco a democracia, por isso os elevados limites de pena. É crime político, de competência da Justiça Federal [6].

O critério formal (da decisão legislativa) provê maior segurança jurídica, tornando induvidosa a atribuição do ramo judiciário que irá conhecer e julgar o crime respectivo [7]. Evita que, para cada crime da legislação eleitoral, se instaure controvérsia sobre se, naquele caso concreto, houve ou não afetação de bens eleitorais ou inerentes ao processo eleitoral.

Inconstitucionalidade formal da Lei 14.192/2021?

Argumenta-se também que a competência da Justiça Eleitoral somente pode ser estabelecida por lei complementar, segundo o artigo 121 da Constituição, o que, à evidência, concordamos. Contudo, alega-se a inconstitucionalidade formal da Lei n° 14.192/2021, que introduziu o crime de violência política de gênero por meio de lei ordinária.

Respeitosamente, não entendemos que, a cada novo tipo penal insculpido no Código Eleitoral, siga-se lei complementar indicando de quem é a competência, ou que só lei complementar possa estabelecer tipos eleitorais.

O Código Eleitoral, ao prever no artigo 35, II, que compete aos juízes eleitorais julgar os crimes eleitorais (e os conexos), já cumpre bem esse papel, como bem explica Torquato Jardim: “O Código Eleitoral, pelo fenômeno da recepção, é agora, lei complementar no que pertine à organização e à competência da Justiça Eleitoral (Constituição, artigo 121). As demais matérias nele versadas continuam a ser objeto de lei ordinária”. [8]

Se houvesse tal inconstitucionalidade, o crime do artigo 326-B do Código Eleitoral nunca seria de competência eleitoral.

Competência da Justiça Eleitoral e critério material: o exercício de direitos políticos pelas mandatárias

Ainda que adotado um critério material, basta que se lhe dê diapasão mais generoso e menos cronológico e a competência eleitoral será reconhecida, pela especial conexão desta com os direitos políticos [9].

Eles são prerrogativas e deveres inerentes à cidadania, envolvendo o direito de participar direta ou indiretamente do governo, de sua organização, bem como do funcionamento do Estado. [10] São direitos exercidos na democracia, sendo um parte do outro. Adotamos a ideia de Jorge Amaya, de que os direitos políticos se dirigem a todos os indivíduos para possibilitar sua participação na expressão da soberania popular. [11]

Partindo da classificação de direitos, segundo a relação do indivíduo com o Estado (teoria do “status” de Georg Jellinek), tem-se que os direitos políticos se situam na quarta situação, de um “status” ativo que consiste no conjunto de faculdades e prerrogativas que o cidadão tem para participar da formação da vontade do Estado, tendo, para isso, os direitos políticos e o de acessar cargos em órgãos públicos. [12].

Häberle propugnou a transformação desse “status” não somente em “activus“, mas também em “processualis”, reconhecendo ao indivíduo o direito de participação nas decisões do poder público, incluídos os trabalhos de tribunais constitucionais. [13]

As duas faces desses direitos, uma ativa e outra passiva, referindo-se à possibilidade de decidir os rumos da democracia seja pelo voto ou outra manifestação que leve à tomada da decisão (procedimento), seja como representante, influenciador ou agente (materialmente) fazem deles componentes dos direitos humanos. Daí o desacerto de limitá-los a partir de um critério meramente temporal. O exercício dos direitos políticos inclui o pleno gozo das funções de mandatos eletivos. Não há como dissociar o exercício do mandato da política em si.

O artigo 326-B em questão fala em “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar” a mulher detentora de cargo eletivo que tenha como finalidade “impedir ou de dificultar” o seu desempenho no mandato. É um especial fim de agir que se conecta com a própria noção de direitos políticos insculpida na Ley Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar y Erradicar la Violencia contra las Mujeres en la Vida Política, da Comissão Interamericana de Mulheres da Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual o Brasil faz parte. [14]

Não há como dissociar o exercício de um mandato eletivo dos direitos políticos da mulher que o detém, pois tais direitos não deixam de ser políticos somente pelo fato de que as eleições acabaram. A violência política contra as mulheres mandatárias é fator de inibição para que, desde antes, se lancem candidatas e influenciem no processo eleitoral, que se quer inclusivo e representativo. Assim, configura-se a conexão com o eleitoral de condutas penais que afetem as mulheres eleitas, atraindo, com isso, a competência da Justiça Eleitoral para tais casos, não somente o de candidatas.

Violência política de gênero e extrapolação do embate político

As vulnerabilidades, as questões de reconhecimento e a precarização de vidas são produtos de relações de poder e de limitações impostas, também, pela linguagem e pelas ações violentas. [15]

A relação entre violência e política representa um paradoxo dos valores estruturantes das democracias. A utilização da força ilegítima como forma de alcançar objetivos políticos remonta às tensões das sociedades modernas, as quais buscaram estruturar um conjunto de instituições e de limitações ao poder com o intuito de canalizar as tensões político-sociais e fornecer mecanismos de disputas e resoluções de conflitos pautados na lei, e não no uso da força ou no arbítrio. [16]

A violência sistêmica reverbera nas disputas político-eleitorais, as quais passam a funcionar, em grande medida, como meios de manutenção de formas de opressão. Ao utilizar o gênero (aqui assumido como construção social) em momentos ríspidos de embate, seja verbal, simbólico, moral, econômico ou físico, o que se tem é uma clara discriminação contra as mulheres, que busca mostrar que elas não pertencem àquele espaço.

O embate político entre homens não usa características de gênero como forma de ação, como ocorre com “ladrão”; “corrupto”; “burro”; “incompetente”; “traidor”, etc. Quando há mulheres, empregam-se estereótipos relativos à sua estabilidade mental (louca, desequilibrada, emotiva, chorona, fraca); à sua imagem (gorda; feia); à sua sexualidade (depravada; prostituta; não merece ser estuprada), atentando-se ao paradigma da mulher “frágil” que não “aguenta” o mundo político tal como ele se apresenta. Mulheres “são atacadas pelo que supostamente são (atributos físicos, intelectuais, etc.), enquanto homens são ofendidos por trabalhos ou posicionamentos” [17].

É por tal peculiaridade que a Justiça Eleitoral, acertadamente, foi posta como competente para este tipo penal, pois é de sua alçada garantir o pleno gozo dos direitos políticos das mulheres e a legitimidade do processo eleitoral, afetados por desdobramentos na constância do mandato que alcançarem.

Conclusão

Sem desdouro da contribuição de José Jairo Gomes, ousamos participar deste debate sobre o crime do artigo 326-B do Código Eleitoral, optando pela competência da Justiça Eleitoral, seja por um critério formal, relacionado à inclusão do tipo no Código Eleitoral, seja por um critério material, que diz respeito às peculiaridades do pleno exercício dos direitos políticos pelas mulheres.

 


[1] Renomado autor e Procurador Regional Eleitoral de Minas Gerais.

[2] GOMES, José Jairo. Crime de Violência Política de Gênero e Competência Criminal. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/postagens/artigos/crime-de-violencia-politica-de-genero-e-competencia-criminal/. Acesso em: 12 de abril de 2024.

[3] Previstas no Código Penal nos artigos 146, constrangimento ilegal, art. 147, ameaça, art. 147-A, perseguição e 147-B, violência psicológica contra a mulher.

[4] ZÍLIO, Rodrigo López. Crimes Eleitorais. 4ª. Ed., Juspodivm, Salvador/São Paulo, 2020, p. 44.

[5] Art. 359-N. Impedir ou perturbar a eleição ou a aferição de seu resultado, mediante violação indevida de mecanismos de segurança do sistema eletrônico de votação estabelecido pela Justiça Eleitoral: Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.

[6] Nesse sentido, Raquel Scalcon: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-incompetencia-da-justica-eleitoral-para-crimes-contra-o-estado-de-direito-12042022.

[7] Há precedente do TSE no HC 0600244-42, Rel. Min. Tarcísio Vieira de Carvalho, j. 1.7.2020, exigindo do crime, para definição da competência eleitoral “aptidão para violar as garantias inerentes ao direito ao sufrágio, à regularidade do processo eleitoral e à autoridade da administração pública deste ramo da justiça”. Ver artigo crítico em “A Cachaça Eleitoral”: https://www.acachacaeleitoral.com/blog/o-crime-de-desobedi%C3%AAncia-eleitoral-e-a-compet%C3%AAncia-para-process%C3%A1-lo-e-julg%C3%A1-lo

[8] JARDIM, Torquato. Direito Eleitoral positivo. 2. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1998. p. 61.

[9] Esta é a razão pela qual, por exemplo, a ação para perda do mandato por infidelidade partidária é de competência da Justiça Eleitoral.

[10]GOMES, José Jairo. Privação de direitos políticos. In: BARRETO, Ricardo de Oliveira Paes; AGRA, Walber de Moura (coord.). Prismas do direito eleitoral: 80 anos do Tribunal Eleitoral de Pernambuco. Belo Horizonte: Fórum, 2012. p. 65.

[11]AMAYA, Jorge Alejandro. Los derechos políticos en la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em: https://uba.academia.edu/JorgeAlejandroAmaya. Acesso em: 09 fev. 2024.

[12]JELLINEK, Georg. System der Subjektiven Öffentlichen Rechte. Freiburg: Mohr, 1892. p. 129-140.

[13]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta de intérpretes da Constituição – contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1997. p. 19-23.

[14] Reconhece-se que tal documento não é cogente devido à sua natureza, porém, trata-se de uma diretriz importante que, do ponto de vista das relações internacionais e do conteúdo dos tratados internacionais de direitos humanos que o Brasil aderiu, deve ser observado pelos Estados membros da OEA.

[15] OBSERVATÓRIO DE VIOLÊNCIA POLÍTICA CONTRA A MULHER. Relatório 2020-2021 de violência política contra a mulher. Organização de FERREIRA, Desiree Cavalcanti; RODRIGUES, Carla de Oliveira; CUNHA, Silvia Maria da Silva. Brasília: Transparência Eleitoral Brasil, 2021. p. 30.

[16] Idem.

[17] REVISTA AZMINA. Violência política de gênero: as diferenças entre os ataques recebidos por mulheres e seus oponentes. Disponível em: https://azmina.com.br/reportagens/violencia-politica-de-genero-as-diferencas-entre-os-ataques-recebidos-por-mulheres-e-seus-oponentes/. Acesso em: 12 de abril de 2024.

Autores

  • é professora, doutora e mestre pela Universidad de Salamanca (ESP). Membro fundadora da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e coordenadora-geral da Transparência Eleitoral Brasil.

  • é procurador regional da República, procurador auxiliar da Procuradoria-Geral Eleitoral e doutor e mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!