Opinião

Lavagem ou autolavagem: eis a questão

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20 de abril de 2024, 6h09

O artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) estabeleceu como núcleo da prática do crime de lavagem de capitais as condutas de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Ocultar seria a retirada de circulação ou o mascaramento de bens, direitos ou valores provenientes de ilícito penal; dissimular, por sua vez, abrange a ocultação mediante fraude desses bens, direitos ou valores, igualmente provenientes de infração penal.

Dessa forma, em tese, comete o crime de lavagem de capitais quem oculta ou dissimula bens e valores provenientes do crime ou infração antecedente com a intenção de reinseri-lo na economia formal com a aparência de licitude.

A semântica por trás dos verbos ocultar e dissimular mencionados no início do texto são de extrema importância para compreendermos o questionamento que pretendemos travar no presente artigo, qual seja: pratica o crime de lavagem de dinheiro o sujeito que faz uso aberto do produto do crime ou valor dele proveniente sem a intenção de mascará-lo?

Para a prática do delito de lavagem de capitais, é necessário que se execute os verbos nucleares do tipo penal insculpidos no artigo 1º da Lei nº 9.613/98, o agente deve ter a intenção de ocultar ou dissimular bens ou valores com o intuito de reinseri-lo no mercado com a aparência de licitude, como mencionado acima. Ainda que no momento da prática do crime de lavagem de capitais, o sujeito ativo não consiga necessariamente chegar à etapa final do ciclo da lavagem, que se daria com a efetiva reinserção dos valores (com a aparência de lícitos) no mercado, basta a realização das condutas de ocultação ou dissimulação para que se incorra no crime, não necessitando que se consiga dar aparência de lícito ao bem ou valor proveniente do ilícito.

Nesse sentido, o sujeito que utiliza o produto proveniente de crime, de forma aberta [1], pública, sem a intenção de mascará-lo ou de dar a este bem ou valor aparência lícita, não está a praticar a lavagem de dinheiro, por uma questão óbvia, faltam os requisitos nucleares do tipo penal, ou seja, carece das condutas de ocultar e dissimular bem ou valor proveniente do ilícito.

De fato, não há lavagem de capitais sem a presença dos elementos normativos ou do elemento subjetivo do tipo, qual seja, o dolo de ocultar ou dissimular o produto proveniente de infração penal. Sem as condutadas exigidas ao branqueamento de capitais, estamos diante de mero exaurimento de infração penal antecedente [2].

Por exemplo, não comete o crime de lavagem de dinheiro o sujeito que utiliza valores proveniente de crime antecedente de modo direto sem praticar ações aptas a mascarar a origem suja do dinheiro [2]. Pois, para a lavagem de capitais, é necessário a participação no processo de dissimulação do bem ou valor com a intenção de aparentá-lo lícito, do contrário estamos diante de mero exaurimento do crime anterior e não se pune a utilização do bem oriundo do crime antecedente. Desse modo, a conduta de desfrutar, utilizando o bem ou valor sem a intenção de escondê-los, não configura o delito de lavagem de dinheiro [4].

Vale dizer, o mero proveito econômico do produto do crime antecedente não caracteriza a lavagem de dinheiro. Ou seja, não pratica lavagem de capitais o sujeito que adquire dinheiro de um crime e compra um carro ou uma casa, já que não é lavagem de capitais o mero aproveitamento do crime antecedente [2].

Por outro lado, comete o crime de lavagem de dinheiro aquele que pratica o crime antecedente e com o bem ou valor deste crime, o sujeito realiza todo o procedimento da lavagem de dinheiro — ocultação ou dissimulação — para mascarar o produto do crime e reinseri-lo na economia com aparência de lícito. Neste caso, estamos diante da autolavagem que ocorre quando o autor do crime antecedente é também o autor da ocultação e dissimulação do produto do ilícito [3].

O agente que pratica um crime antecedente, por exemplo, uma sonegação de imposto, e, posteriormente, oculta e dissimula o valor com o desejo efetivo de limpar, dar aparência de licitude ao dinheiro proveniente da sonegação, com o intuito de reinserir o valor no mercado, sem restrição para o uso, este sujeito pratica lavagem de capitais.

Neste momento, pode surgir o seguinte questionamento: não estaríamos diante de um bis in idem (dupla punição) pois o sujeito que praticou a sonegação de imposto é o mesmo que estaria sendo punido pela prática do crime de lavagem de dinheiro? E a resposta é não, explica-se.

Autolavagem no Brasil

O crime de lavagem de dinheiro não protege o bem jurídico lesionado com a conduta antecedente. Em outras palavras, no exemplo dado, o crime de sonegação de imposto protege o bem jurídico ordem tributária, que foi lesionado com a sonegação do imposto pelo sujeito ativo que sonegou o imposto devido. Por sua vez, a lavagem de capitais não protege novamente a ordem tributária. O crime de lavagem de dinheiro protege o bem jurídico administração da justiça, [1] que foi lesionada neste segundo crime. Isso porque a administração da Justiça deixou de encontrar o produto do crime e de decretar seu perdimento [1]. Portanto, os bens jurídicos sendo diversos não há o que se falar em bis in idem, sendo que a distinção material possibilita a punição pelos dois crimes em concurso material: sonegação de imposto e lavagem de dinheiro.

Vale dizer que a autolavagem no Brasil decorre, portanto, do alcance estabelecidos pelos verbos ocultar e dissimular. O agente que praticou o crime antecedente intenta mascarar a origem do valor com a finalidade da inserção do capital ilícito no sistema econômico. Por outro lado, países como a Espanha e Portugal fazem menção expressa ao crime de autolavagem tipificando-o. No Brasil, seria um avanço no combate ao branqueamento de capitais, já que evitaríamos uma interpretação in malam partem e a violação do princípio da legalidade com essa segurança jurídica.

Diferentemente do Brasil, em que o ordenamento jurídico brasileiro não oferece o ferramental necessário para evitar divergências acerca da imputação do crime antecedente e da lavagem de dinheiro ao mesmo agente (autolavagem), em Portugal foi sancionada a Lei nº 11/14, que aditou o artigo 368-A do Código Penal, esclarecendo que a lavagem pode ser cometida também pelo autor ou partícipe do delito antecedente. Por sua vez, o legislador espanhol editou a Ley Orgánica 5/2010, prevendo tal delito no artigo 301, item 1, do Código Penal, que assim se inicia: “quem adquire, possui, usa, converte ou transmite bens, sabendo que estes têm a sua origem em atividade criminosa, cometida por si ou por qualquer outra pessoa (…)” [5].

No Brasil, devido à insuficiência legislativa, a interpretação do tipo penal insculpido na Lei de Lavagem de Capitais, fica a critério da interpretação jurisprudencial, que muitas vezes se divide entre defender a punibilidade da autolavagem ou negá-la diante da ausência de previsão expressa no tipo penal e das nuances do caso concreto, consequência, insegurança jurídica em determinados casos.

Assim, em face do exposto no parágrafo acima, o leitor pode-se fazer outra indagação de suma importância: e nos crimes em que o ato de ocultação e dissimulação integra o núcleo do tipo penal antecedente, como no exemplo da Ação Penal nº 1.015/DP no Supremo Tribunal Federal [4], em que o sujeito supostamente teria praticado o crime de corrupção passiva e recebeu a vantagem indevida de forma dissimulada por meio de interposta pessoa.

Neste caso, o STF entendeu que “o recebimento de propina de maneira camuflada, não pode gerar duas punições distintas, a saber, uma a título de corrupção passiva e outra a título de lavagem de dinheiro, sobretudo quando não demonstrados dolos distintos, sob pena de ferir-se de morte o princípio do ne bis in idem”.

No entanto, ainda é essencial, para a exata compreensão do delito de autolavagem, que as condutas de possuir ou utilizar recursos advindos de delito antecedente são suficientes para caracterizar lavagem/autolavagem, desde que haja a finalidade de ocultar ou encobrir a origem ilícita dos valores.

Mas, se o crime antecedente prever, no núcleo do tipo, uma ocultação ou dissimulação deve-se ter bastante cuidado na análise do caso concreto. Isso porque se a única ocultação ou dissimulação já foi utilizada para caracterizar o crime antecedente, não se pode utilizá-la novamente para caracterizar a lavagem de capitais.

Portanto, retomando, o sujeito que utiliza os valores proveniente do ilícito antecedentes e não pratica atos capazes de desviar ou impedir a identificação da origem espúria dos valores, não está a praticar o delito de lavagem de capitais. Por outro lado, pratica o crime de autolavagem o sujeito que oculta e dissimula a natureza do bem ou valor proveniente do crime ou infração penal antecedente, com a intenção de reinseri-lo na economia com a aparência de licitude.

Concluímos, assim, que a legislação brasileira deveria se inspirar naquelas supracitadas (portuguesa e espanhola) em relação à autolavagem de capitais, o que seria um avanço, de modo a evitar interpretação in malam partem ou violação do princípio da legalidade, estabelecendo segurança jurídica, tão almejada pela sociedade.

 


[1] BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais; comentários à Lei 9.613/1998 com as alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.67.

2 VILARDI, Celso Sanchez, A ciência da infração anterior e a utilização do objeto da lavagem, Boletim IBCCRIM – 237 – agosto /2012.

3 PERTILLE, Marcelo, Apontamentos acerca da autolavagem de dinheiro, II Congresso Sul Brasileiro de Direito, 2016, p. 213.

4 Lavagem de dinheiro: pareceres jurídicos: jurisprudência selecionada e comentada/coordenação Pierpaolo Cruz Bottini e Ademar Borges. –São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

5 VIDEIRA, Gil de Alcântara; Tendências contemporâneas na criminização da lavagem de dinheiro frente ao combate à corrupção no brasil: a autolavagem em foco; Dissertação apresentada à Banca do Programa de Mestrado Profissional em Direito do Instituto Brasiliense de Direito Público; 2022.

TAVARES, Juarez. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias/Juarez Tavares, Antonio Martins, -1. ed.-São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

Martins, Luiza Farias, Lavagem de dinheiro e dolo eventual: perspectivas probatórias e jurisprudencial/Luiza Farias Martins; Alexandre Wunderlich, Salo de Carvalho (Coord.); Prefácio Heloisa Estelita. – 1.ed.-São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.

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