Longo caminho

Explosão de reclamações ao STF é sintoma do desrespeito à cultura de precedentes

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4 de dezembro de 2022, 8h48

Rosinei Coutinho/SCO/STF
Lindora Araújo (subprocuradora federal), Maria Thereza de Assis Moura (presidente do STJ), Rosa Weber (presidente do STF), Alexandre de Moraes (presidente do TSE) e Lélio Bentes Corrêa (presidente do TST) em evento em que se discutiu precedentes
Rosinei Coutinho/SCO/STF

O estabelecimento de uma cultura de precedentes inaugurada pela reforma do Judiciário de 2004, e imposta pelo Código de Processo Civil de 2015, ainda é um dever não cumprido pelos tribunais e magistrados brasileiros. E há um fenômeno concreto que comprova isso: a explosão de ajuizamentos de reclamações constitucionais, com a ampliação de seu cabimento.

A reclamação é o instrumento que permite ao Supremo Tribunal Federal preservar sua competência e garantir a autoridade de suas decisões, sempre que a corte for informada pelas partes de algum desrespeito ou descumprimento.

Entretanto, para um sistema que tem como norte a busca da segurança jurídica e da celeridade processual pela uniformização das decisões, o diagnóstico quanto ao uso da reclamação é desanimador. Trata-se da terceira classe processual mais numerosa aguardando julgamento no Supremo: exatamente 10% dos 21,9 mil casos no acervo.

Reclamações no STF
Ano Recebidas
2006 848
2007 894
2008 1.684
2009 2.262
2010 1.301
2011 1.856
2012 1.895
2013 1.894
2014 2.375
2015 3.273
2016 3.283
2017 3.326
2018 3.467
2019 5.789
2020 6.576
2021 5.882
2022 5.899 (até 2/12)

Nos 334 dias somados em 2022 até sexta-feira (2/12), o Supremo recebeu 5.899 reclamações. A média diária é de 17,6 processos. Até hoje, apenas 2020 — o ano do início da epidemia da Covid-19 — foi mais movimentado. E esse volume processual todo é uma espécie de efeito colateral das transformações implementadas no Judiciário.

O primeiro boom de reclamações, não à toa, ocorreu no ano seguinte ao da implementação da sistemática da repercussão geral, filtro recursal criado pela Emenda Constitucional 45/2004. De 2007 para 2008, o número de reclamações praticamente dobrou. E, em 2009, subiu outros 35%.

"Já houve uma grande efetividade das alterações (da EC 45/2004), mas nesses 18 anos não andamos como deveríamos ter andado em relação a efetividade, celeridade e respeito aos precedentes. Há necessidade de reforço de mentalidade. Infelizmente, isso é constatado pelo alto número de reclamações recebidas", disse o ministro Alexandre de Moraes, do STF.

A declaração foi dada na última quarta-feira (30/11), no evento anual sobre precedentes qualificados organizado em conjunto por STF e Superior Tribunal de Justiça. "Infelizmente, ainda há inúmeras decisões que simplesmente ignoram precedentes, como se não existissem. Temos de trocar a vaidade pela efetividade das decisões", disse ministro, também presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

No mesmo evento, o ministro Luís Roberto Barroso, também do STF, classificou a possibilidade de propositura ampla de reclamações contra decisões que contrariam pronunciamentos dos tribunais como a consequência prática mais importante da ascensão dos precedentes.

"Na medida em que se criam precedentes vinculantes, a grande vantagem é que, se a decisão não for respeitada, você pode, per saltum (pulando etapas), chegar ao STF para fazer valer a jurisprudência. Hoje já conseguimos reduzir o acervo de recursos. Mas agora estamos nos debatendo com a proliferação das reclamações."

Muitas vezes, a reclamação é o único caminho, como ressaltou o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin, ao destacar que mesmo as decisões da instância máxima do Poder Judiciário são desafiadas por juízes e tribunais.

"Há um dever não inteiramente cumprido pelos tribunais superiores na configuração do Judiciário estabelecida pela Constituição. Esse dever diz respeito à uniformização da prestação jurisdicional em âmbito nacional e à produção de confiança na Justiça", afirmou Fachin.

Carlos Moura/SCO/STF
Para Barroso, aumento das reclamações é consequência da ascensão dos precedentes
Carlos Moura/SCO/STF

Implied powers
A reclamação é um instituto criado pelo próprio Supremo com base na doutrina dos poderes implícitos (implied powers), delineada na Suprema Corte dos Estados Unidos. Ela só veio a constar no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição Federal de 1988 (artigo 102, inciso I, alínea "l"). Desde então, teve papel importante, por exemplo, na luta contra a censura.

Inicialmente, sua função era ajudar o tribunal a preservar sua competência e garantir a autoridade de suas decisões, mas a EC/2004 ampliou seu cabimento para ato administrativo ou decisão judicial que contrarie a súmula aplicável, ou que a aplique indevidamente. E outros ajustes foram feitos por meio do CPC de 2015 e dos regimentos internos das cortes brasileiras.

No espírito dessa discricionariedade que levou à criação da reclamação constitucional, o STF delineou seu uso ao longo dos anos. Ela não substitui o recurso, nem serve como instrumento para viabilizar o reexame de uma ação. Ela só pode ser admitida depois de esgotadas as instâncias ordinárias. E não cabe contra ato de ministro da corte.

Entre os ajustes mais relevantes estão aceitar a reclamação quando for necessário adequar decisão de corte à orientação firmada pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade e também discutir a observância do regime da repercussão geral.

E, em caráter excepcional, o STF tem usado a reclamação para esclarecer a extensão do conteúdo da decisão paradigma, no que se chama de "função integrativa", e ainda como instrumento de superação de precedente judicial ou para exercer um novo juízo sobre casos já julgados.

Essa ampliação de uso é, novamente, uma particularidade do Supremo. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já refutou o cabimento da reclamação para discutir a aplicação indevida de teses firmadas em recursos repetitivos. Há integrantes, como a ministra Assusete Magalhães, que inclusive defendem que essa posição seja alterada "a bem da aplicação e da gestão de precedentes".

Carlos Moura/SCO/STF
"Tem gente que não vem com reclamação. Vem desabafar", brincou Cármen Lúcia
Carlos Moura/SCO/STF

Descumprimento vedado
Não é preciso ir muito longe para compreender a importância da reclamação constitucional no Brasil. Foi por meio dela que o STF garantiu, em dezenas de casos, o cumprimento da ordem de fazer audiência de custódia em todas as prisões do país. E preservou, em tantos outros, a competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes conexos, um precedente que vinha sendo sistematicamente violado pelos juízos criminais brasileiros.

Para a classe política, inclusive, a reclamação é um instrumento bastante útil. Foi com ela que o governador de Alagoas, Paulo Dantas, voltou ao cargo dias antes de ser reeleito. Ele havia sido afastado pelo STJ, no âmbito de um inquérito criminal. O STF, porém, entendeu que o afastamento violou precedente sobre foro por prerrogativa de função.

A reclamação foi muito importante também para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Foi por meio da Rcl 47.000 que sua defesa teve acesso ao acordo de leniência da Odebrecht que o implicou criminalmente e, depois, obteve os diálogos da "vaza jato" que escancararam os desmandos da finada "lava jato" em seu projeto de lawfare.

Acervo do STF (até 2/12)
Classe Quantidade
ARE 9.105
RE 3.557
Rcl 2.903
HC 2.184
ADI 1.173
RHC 763
MS 461
Outros 2.023

Um novo olhar
Para a ministra Rosa Weber, presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça, o cabimento da reclamação constitucional foi um dos pontos que impuseram um novo olhar sobre o tema dos precedentes vinculantes no Brasil.

Já a ministra Cármen Lúcia definiu esse instituto como "uma formulação engenhosa para fazer com que o precedente tenha a força de que precisa". Em tom bem-humorado, ironizou a tal crise da reclamação. "Seria bom criar, talvez por alteração regimental, o desabafo. Aqui, tem gente que não vem com reclamação, vem desabafar, vem dizer que não concorda, que o precedente não é bom de jeito nenhum", disse ela, aos risos.

Segundo o advogado e professor da UFPE Leonardo Carneiro da Cunha, a reclamação constitucional é instrumento de aperfeiçoamento e interpretação de precedente, mas também de controle. "Não é possível que um tribunal tenha poder de firmar o precedente, mas não de impor que seja seguido", disse ele no evento.

Na opinião do ministro Alexandre de Moraes, a proliferação das reclamações é uma questão que vai se resolver conforme o Judiciário brasileiro finalmente encampe totalmente a cultura de precedentes recém-criada.

"Os precedentes vieram para ficar. O importante é que possamos fazer um ajuste fino ao debatermos, para que os precedentes possam ser cada vez mais objetivos e específicos, para que não gerem dúvida. E reforçar nos tribunais essa mentalidade, para evitar que haja recurso atrás de recurso, reclamação atrás de reclamação, tirando a credibilidade do Judiciário", disse Alexandre.

Problema mais profundo
Para o constitucionalista Lenio Streck, o problema tem profundidade maior. "O grande número de reclamações e a falta de cultura de precedentes têm origem na falta de contornos precisos dos precedentes. Isso tumultua a jurisprudência e provoca medidas defensivas da parte dos tribunais, o que afunila o sistema. E o problema principal não é enfrentado. Fica-se na superficialidade. A desobediência aos precedentes não é causa. É consequência", argumenta ele.

"O que os tribunais fazem são 'teses', que não são precedentes. Precedentes nunca são feitos para o futuro. Só o Brasil é que tem essa noção equivocada. Pensam que podem fixar interpretações para o futuro. Ora, tribunais julgam o passado. O Legislativo é que cuida do futuro. No Brasil o erro é os tribunais quererem cuidar do futuro", completa Streck.

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