Observatório constitucional

STF admite hipóteses extralegais de cabimento da reclamação constitucional

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26 de junho de 2021, 8h00

A Constituição brasileira de 1988 foi a primeira a prever expressamente a figura da reclamação constitucional. Os artigos 102, I, "l"; 105, I, "f"; e 111-A, §3º, dispõem que cabe reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões perante o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho, respectivamente. Com a instituição das súmulas vinculantes no Brasil pela Emenda Constitucional 45/2004, o artigo 103-A, §3°, passou a prever igualmente o cabimento de reclamação ao STF contra ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar.

Essa disciplina constitucional é regulamentada por normas complementares, definidas no Código de Processo Civil (CPC) de 2015 (Lei 13.105/2015), nos regimentos internos dos tribunais ou até em Constituição estadual, que pode prever, em razão do princípio da simetria, o cabimento de reclamação perante os tribunais de Justiça de seus territórios.

Nessa conjuntura, a reclamação pode, atualmente, ser ajuizada perante diversos órgãos jurisdicionais e possui várias hipóteses de cabimento. Mas o presente texto apresenta reflexões especialmente em relação à reclamação dirigida ao STF como instrumento de garantia da autoridade de suas decisões, para evidenciar a extensão que a corte tem atribuído a essa hipótese de cabimento.

Da leitura dos mencionados artigos 102, I, "l"; e 103-A, §3°, da Constituição, depreende-se que a reclamação constitucional ao STF é expressamente cabível apenas para preservação de sua competência e para a garantia de autoridade de suas decisões, ainda que se possa compreender o termo "decisões" em sentido lato, para nele incluir os julgados proferidos em processos subjetivos; as decisões proferidas em processos objetivos [ação direta de inconstitucionalidade (ADI), ação declaratória de constitucionalidade (ADC), ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) e arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF)], com eficácia erga omnes e vinculante; e os atos jurisdicionais de natureza normativa (súmulas vinculantes) [1].

Ocorre que, historicamente, a reclamação constitucional no âmbito do STF tem sido desenvolvida pela jurisprudência da própria corte, que, inicialmente, visualizava esse instituto processual como corolário do direito de petição e justificava o seu cabimento na teoria dos poderes implícitos [2]. Em outros termos, o cabimento da reclamação precede a sua previsão em lei.

A propósito, a doutrina indica que o estudo sobre a reclamação constitucional no STF pode ser feito em quatro fases: 1) a primeira seria a criação pelo tribunal; 2) a segunda coincide com a inserção da reclamação no regimento interno da corte; 3) a terceira diz respeito à competência do STF, conferida pela Constituição de 1967, para estabelecer a disciplina processual, com força de lei federal e por meio do regimento interno, nos feitos sob sua competência; e 4) a quarta está relacionada à promulgação da Constituição de 1988, que elevou a reclamação ao status constitucional [3].

Com a entrada em vigor do CPC de 2015, o instituto da reclamação constitucional passou a prever, no procedimento, a necessidade de citação do beneficiário do ato reclamado (artigo 989, III), de modo que estabeleceu verdadeiro contraditório em sede reclamatória, algo até então inexistente. Nesse contexto, considera-se que o CPC instituiu nova fase do instituto da reclamação constitucional, consolidando a sua natureza jurídica de ação constitucional autônoma [4].

Fato é que, na gênese, a reclamação constitucional foi desenvolvida pela jurisprudência do STF com fundamento na teoria dos implied powers do constitucionalismo estadunidense [5]. Ao julgar a Reclamação 1411°, a corte advertiu que "vão seria o poder outorgado ao Supremo Tribunal Federal de julgar em recurso extraordinário as causas decididas por outros tribunais, se lhe não fora possível fazer prevalecer os seus próprios pronunciamentos". Portanto, "a criação dum remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel de suas sentenças está na vocação do Supremo Tribunal Federal e na amplitude constitucional e natural de seus poderes" [6].

Essa digressão é relevante para justificar como o STF tem admitido o manejo de reclamação constitucional em algumas hipóteses em que não há previsão legal expressa de cabimento dessa ação. Há, ao menos, dois exemplos curiosos na jurisprudência recente da corte: 1) as reclamações a que o STF tem atribuído efeito integrativo do conteúdo de sua decisão paradigmática; e 2) a utilização da reclamação como instrumento de superação de precedente judicial.

É oportuno relembrar que a reclamação constitucional é ação que, nos termos da jurisprudência do STF, exige a existência de correlação entre o ato reclamado e a decisão judicial indicada como violada (decisão-paradigma). É por isso que a corte tem negado seguimento a feitos quando não vislumbra aderência estrita do objeto do ato reclamado ao conteúdo do ato paradigma [7]. Não obstante essa orientação sedimentada, a corte tem admitido, excepcionalmente, algumas reclamações para esclarecer a extensão do conteúdo da decisão paradigma, hipóteses em que instrumento reclamatório exerce função integrativa [8].

Cita-se como exemplo a decisão proferida no julgamento da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.395, em que o STF consignou a incompetência da Justiça do Trabalho para processar e julgar causas em que são partes Estado e servidores vinculados ao poder público por relação jurídico-estatutária [9]. Após essa decisão, a corte foi instada a se manifestar sobre a sua extensão relativamente aos servidores ocupantes de cargos em comissão e aos contratados temporariamente, tendo decidido, em sede de reclamação, que a referida decisão é aplicável aos servidores ocupantes desses cargos, uma vez que é irrelevante o argumento da precariedade da investidura [10].

Nesse cenário, percebe-se viés integrativo atribuído pelo Supremo Tribunal Federal à reclamação, de modo que ela passa a também servir à interpretação e conformação da jurisprudência da corte.

Outro exemplo de utilização da reclamação constitucional em hipótese extralegal, isto é, em caso não previsto expressamente nem pela Constituição, nem por normas infraconstitucionais, refere-se à utilização da reclamação constitucional como instrumento de superação de precedente judicial. Sobre esse tema, o caso Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) é bastante notório.

Ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232, o STF reconheceu, inicialmente, a constitucionalidade do critério de pobreza fixado na Lei 8.742/1993 para fins de concessão do benefício assistencial de prestação continuada [11]. Ocorre que, em reclamação posteriormente ajuizada para garantir a autoridade desse julgado, o tribunal reconheceu a inconstitucionalização da referida norma, superando seu entendimento originário [12].

Em consequência, o STF conferiu à reclamação, excepcionalmente, a função de revisar julgados do controle concentrado, incumbência bastante distinta das clássicas atribuições do instrumento reclamatório como garantidor da autoridade das decisões do STF e preservador de sua competência.

Essas decisões são tributárias de que a reclamação é instrumento do processo constitucional, o qual está em constante transformação, impulsionado pela jurisprudência, que lida com novos problemas no contencioso constitucional contemporâneo. Assim, as hipóteses legalmente previstas de cabimento da reclamação constitucional no âmbito do STF estão sendo ampliadas por orientação da corte, com base na teoria dos poderes implícitos que justifica origem do próprio instituto da reclamação.

Percebe-se, portanto, que a reclamação constitucional vem, paulatinamente, se consolidando como relevante instrumento de prestação jurisdicional tempestiva, efetiva e adequada, na medida em que visa à garantia da autoridade das decisões judiciais. Trata-se, tradicionalmente, de instituto que fortalece a jurisdição, uma vez que possibilita ao órgão prolator de decisão judicial que determine a fiel observância de seus julgados, em caso de recalcitrância.

Mas a reclamação também tem sido utilizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como instrumento excepcional de esclarecimento/aperfeiçoamento e até de superação do conteúdo de suas decisões judiciais, a despeito de previsão legal expressa do cabimento da reclamação nessas hipóteses.

 


[1] SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São Paulo: Saraiva, 2005.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. A reclamação Constitucional no Supremo Tribunal Federal: Algumas Notas. Revista Oficial do Programa de Mestrado em Direito Constitucional da Escola de Direito de Brasília – Instituto Brasiliense de Direito Público, Porto Alegre, n. 12, abr./jun. 2006. p. 1.

[3] PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e Outras Ações Constitucionais Típicas. 2. ed. revisada e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 423-424.

[4] Não existe consenso na doutrina e na jurisprudência a respeito da natureza jurídica da reclamação. De qualquer sorte, a posição dominante, especialmente após a promulgação do CPC 2015, parece ser aquela que atribui à reclamação natureza de ação constitucional propriamente dita, embora existam doutrinadores que enxerguem a reclamação como remédio processual, incidente processual ou recurso. Nesse sentido: ARCHANJO, M. A. O; e CARVALHO FILHO, J. S. Reclamação como Ferramenta de Superação de Precedente Formado em Controle Concentrado de Constitucionalidade. In: Revista da Advocacia Pública Federal, Vol. 3, p. 321.

[5] UNITED STATES. Supreme Court. McCulloch v. Maryland, 17 U.S. 316 (1819).

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 141 Primeira, Rel. Min. Décio Miranda, DJ 17/4/1952.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl-AgR 17.696, Rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, DJe 23/11/2020.

[8] ARCHANJO, M. A. O; e CARVALHO FILHO, J. S. Reclamação como Ferramenta de Superação de Precedente Formado em Controle Concentrado de Constitucionalidade. In: Revista da Advocacia Pública Federal, Vol. 3, p. 323.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI-MC 3.395, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, DJ 10/11/2006.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl-AgR 5.989, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, DJe 17/5/2011.

[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.232, Rel. Min. Ilmar Galvão, Rel. p/ Acórdão Min. Nelson Jobim, Tribunal Pleno, DJ 1º/6/2001.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 4.374, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 3.9.2013.

Autores

  • é professor de Direito Constitucional do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal, pós-doutorado em Direitos Sociais pela Universidade de Salamanca (Espanha), doutor em Direito Público pela Aix-Marseille Université (França) e mestre e especialista em Direito Constitucional pelo IDP.

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