Liberdade de Expressão

Reclamação no Supremo é um instrumento útil na luta contra a censura

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

8 de julho de 2015, 8h00

Spacca
No último dia 2 de julho, a ConJur, em excelente trabalho, publicou entrevista com o ministro Luis Roberto Barroso — clique aqui e aqui para ler. Ao final da primeira parte da entrevista, o ministro demonstra preocupação com o aumento das súmulas vinculantes, posto que acaba por gerar novos processos de competência originária do Supremo Tribunal Federal. O ministro Barroso se inquieta com a possibilidade de um aumento do número de reclamações ajuizadas perante a corte por conta de decisões, nas instâncias inferiores, que violem súmulas e outras decisões de natureza vinculativa produzidas pelo Supremo Tribunal Federal.

A preocupação é efetivamente pertinente, tal como o é a que transfere o juízo de admissibilidade dos recursos especial e extraordinário para a Corte Suprema, na proposta do novo Código de Processo Civil, que entrará em vigência a partir de março de 2016.

Originada mediante construção jurisprudencial, tendo como inspiração a “teoria dos poderes implícitos” do Direito americano, a ideia do instituto da Reclamação surgiu por ocasião do julgamento McCulloch vs. Maryland, cujo debate era se uma lei federal poderia instituir um banco contrariando norma estadual. A corte, então presidida por John Marshal (1819), reconheceu que poderia utilizar-se de todos os meios legítimos para concretizar os fins constitucionais[1].

No Brasil, segundo ensina Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, o primeiro enfrentamento da matéria, aplicando a teoria dos poderes implícitos, coube ao ministro Rocha Lagoa, em 1952, na Reclamação 141-SP.[2]

No entanto, a Reclamação como instituto efetivo no ordenamento jurídico brasileiro deu-se com a promulgação da Constituição Federal de 1988, trazendo expressamente em seus artigos 102, I, “l” e 105, I, “f”, o instituto da Reclamação, instrumento destinado à preservação da competência e da autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Com a Emenda Constitucional 45, de 2004, o referido instituto começa a ser possível quando decisões violarem Súmula Vinculante.

No campo dos assuntos relacionados à liberdade de expressão, lembro-me de que a primeira Reclamação ajuizada perante o STF foi a de número 9.362, de autoria da editora Abril em face de decisão que impunha a publicação de sentença em um de seus periódicos, logo após o Supremo ter reconhecido a não validade da Lei de Imprensa frente à Constituição Federal, no conhecido julgamento da ADPF 130.

Já ouvi muitas críticas a respeito da utilização do instrumento processual da Reclamação, que atribuem um per saltum de instâncias, violando-se, assim, o princípio do duplo grau de jurisdição. Não há dúvida de que a reclamação constitucional não pode ser utilizada como um atalho processual, submetendo à Corte Suprema litígios ainda não enfrentados pelas instâncias inferiores.

No entanto, no que tange às questões da liberdade de expressão, tem sido, para muitos casos, o único remédio processual a garantir a autoridade das decisões da Corte Suprema.

A partir do julgamento da ADPF 130, momento em que o Supremo Tribunal Federal criou norma concreta de impedimento de qualquer espécie de censura, bem como de que, numa eventual antinomia de princípios, estabeleceu a sobreposição do princípio da liberdade de expressão frente a outros, o instituto da Reclamação tem sido bastante utilizado pelos advogados que militam nessa área.

E a utilização se dá especialmente pelo fato de as decisões das instâncias inferiores continuarem, a despeito dos inúmeros julgado do Supremo Tribunal Federal a respeito do assunto, impor, objetivamente, censura às veiculações de material jornalístico, determinando que o conteúdo jornalístico seja alterado, retirando-se ou incluindo-se palavras e frases, editando, efetivamente, o texto.

Recentemente, o próprio site Consultor Jurídico teve a determinação de que sua notícia a respeito da herança de Marcio Thomaz Bastos fosse retirada do ar, tal como em outro ano ficou momentaneamente impedido de publicar notícia a respeito de um imbróglio envolvendo a peça de teatro intitulada Edifício London, uma ficção que tomava emprestada a história do crime envolvendo a família Nardoni. 

Sobre isso, vale lembrar que o advento da internet e a mudança de plataforma dos veículos de comunicação para o ambiente cibernético não alteram os valores fundamentais constitucionais, assegurados pela decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130, tampouco modifica o texto constitucional, todos a impedir qualquer espécie de censura. De modo que, retirar, impor ou modificar conteúdo jornalístico, mesmo que de um sítio eletrônico, constitui embaraço à atividade jornalística e, portanto, censura.

Outras tantas decisões, com a mesma natureza da que foi vítima recentemente a ConJur, ficam à espera da apreciação de uma suspensão da eficácia da decisão alegada em agravo de instrumento, o que impõe ao veículo de comunicação submeter-se, imediatamente, a uma decisão absolutamente contrária às decisões do Supremo Tribunal Federal.

Não só o conteúdo da internet tem sido objeto de decisões contrárias à autoridade do que já decidiu o Supremo Tribunal Federal no âmbito da liberdade de expressão. Decisões contra tradicionais formas de jornalismo, como a mídia impressa, ainda têm sido frequentes no Brasil, como, por exemplo, a determinação de que a revista IstoÉ fosse recolhida por noticiar o suposto envolvimento do então Governador do Ceará, Cid Gomes, na operação “lava jato” da Polícia Federal.

Daí porque o instituto da Reclamação, especialmente para os assuntos da liberdade de expressão, tem sido, de forma recorrente, o instrumento processual mais adequado para fazer cumprir a autoridade das decisões da Corte Suprema, sobretudo quanto às questões objetivas de censura.

Evidentemente que entendemos a preocupação do ministro Luis Roberto Barroso quanto ao volume de processos que acabam sendo dirigidos ao Supremo. Penso, contudo, que a fala do ministro soa mais como uma crítica, especialmente direcionada aos juízos de instâncias inferiores que têm se afastado cada vez mais da orientação hermenêutica dada à Constituição pelo Supremo Tribunal Federal, impondo ao jurisdicionado a defesa de seus direitos legítimos e constitucionalmente assegurados.

A tendência do sistema jurisdicional brasileiro é uma maior valorização dos precedentes judiciais — a expressão aqui utilizada é em sentido amplo. De modo que, além das súmulas vinculantes, das decisões de eficácia vinculativa produzidas pelas cortes brasileiras, o legislador está optando, cada vez mais, por abraçar a ideia de uma tutela jurisdicional mais previsível, de modo a orientar um comportamento social esperado pelo Estado, sem que, para hipóteses iguais, existam tutelas jurisdicionais diferentes.

No caso da liberdade de expressão, o caminho utilizado pelos veículos para resguardar o valor constitucional desse direito tem sido, como disse, mediante a utilização do instrumento processual da reclamação, que, além de garantir os valores democráticos discutidos nas ações desse tipo, acaba por, de alguma forma, orientar juízos de instâncias inferiores a atenderem decisões vinculativas da corte constitucional brasileira.  

 


[1] Durante toda a primeira metade deste século, embora combatida por alguns, foi admitida por construção jurisprudencial, baseada, principalmente, na teoria dos poderes implícitos e sob a marcante influência do que se passou na Suprema Corte dos Estados Unidos após o célebre caso ‘Mac Culloch x Maryland’. (PACHECO, José da Silva. O mandado de segurança e outras ações constitucionais típicas. 4ª ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002, p. 603)

[2] RIBEIIRO DANTAS, Marcelo Navarro. Reclamação constitucional no direito brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. P. 182

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  • Brave

    é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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