Posição dos tribunais na caracterização da Covid-19 como doença ocupacional
14 de outubro de 2021, 8h00
Recentemente, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, em duas ocasiões, emitiu um juízo de valor quanto a possibilidade da Covid-19 ser reconhecida ou não como doença ocupacional.
Primeiramente, impende frisar que, após a promulgação da Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020[1], que, aliás, já teve o seu prazo de vigência encerrado, foram ajuizadas algumas ações diretas de inconstitucionalidade[2].
Isto porque o artigo 29 da referida Medida Provisória preceituava que "os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados, exceto mediante comprovação do nexo causal".
Nesse sentido, a Suprema Corte, ao considerar a inconstitucionalidade desse referido artigo, não quis dizer que foi reconhecido, automaticamente, o direito à indenização e à estabilidade provisória no emprego, mas apenas afastou o ônus do trabalhador de comprovar que a infecção por Covid-19 teria cunho ocupacional, de modo que cada caso seria analisado de forma pontual.
Em seu voto, o Ministro Edson Fachin destacou[3]: "Assim, o ônus de comprovar que a doença não foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e, não, do empregado, como estabelece a norma impugnada. O artigo 29 da Medida Provisória n. 927/2020 afronta o que dispõe o artigo 7º, XXII, da CRFB: 'redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança', invertendo o ônus probatório no caso específico da infecção por coronavírus".
Indubitavelmente, ao exigir que o trabalhador comprovasse o nexo de causalidade estaríamos diante de uma prova diabólica, que é aquela prova extremamente difícil de ser produzida, ou, ainda, impossível.
A respeito de tal temática, o professor Sebastião Geraldo de Oliveira nos ensina[4]:
"Uma vez suspensa a eficácia jurídica do artigo 29 mencionado, foi afastada a presunção legal no sentido de que a doença não tem natureza ocupacional. Então, o enquadramento como doença relacionada ou não ao trabalho será verificado considerando o caso concreto, as previsões contidas na Lei nº 8.213/1991 e os ajustes hermenêuticos decorrentes das singularidades dessa nova pandemia. Como indicado no julgamento da Corte Suprema, o grau de risco da exposição ao novo coronavírus, pela natureza da atividade do empregador, cria a presunção da etiologia ocupacional da Covid-19 em favor da vítima.
Vale enfatizar, para fins de orientação interpretativa, o destaque registrado no julgamento do STF ao direito do empregado à "redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” como previsto expressamente no inciso XXII do artigo 7º da Constituição da República de 1988. E não se trata de julgamento isolado porque, em diversos acórdãos proferidos nos últimos anos, a proteção jurídica à saúde do trabalhador vem adquirindo maior acolhimento no âmbito do Supremo Tribunal Federal."
Destarte, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho publicou a Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME[5], que teve por objeto esclarecer sobre a caracterização da Covid-19 como doença ocupacional, haja vista a Medida Provisória 927 ter perdido vigência sem a sua conversão em lei.
A referida Nota Técnica esclarece que, a depender da situação, a Covid-19 pode ser reconhecida como doença ocupacional, todavia, deverá restar determinado, de forma técnica, o nexo de causalidade, sem a prevalência em favor do trabalhador[6].
Dito isso, a 9ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região[7] não acolheu o pedido do trabalhador que pretendia o reconhecimento da Covid-19 no ambiente de trabalho, assim como uma indenização por dano moral e material.
Ao analisar o caso concreto, o desembargador relator entendeu que, diante da negativa da empresa e do conjunto probatório, o trabalhador não conseguiu demonstrar as suas alegações, eis que não foram anexados os exames médicos atestando que a doença teria sido contraída por culpa da empresa. Além disso, o desembargador relator concluiu que depoimento pessoal do trabalhador não foi compatível com os relatos da petição inicial.
Da mesma forma, a 5ª Turma do Tribunal Paulista[8], ao julgar um caso de um trabalhador que veio as falecer de Covid-19, considerou que os elementos dos autos não foram suficientes para a comprovação de que a doença foi adquirida no ambiente laboral.
A magistrada relatora, Patrícia Cokeli Seller, concluiu que a empresa adotou todas as medidas necessárias para a preservação da saúde dos trabalhadores, inclusive permitindo o trabalho remoto, ou oferecendo táxi ou Uber àqueles que necessitassem de deslocar para a empresa. Portanto, diante da análise das provas, a Relatora entendeu não restar caracterizado o nexo de causalidade, mantendo a decisão do juízo de origem.
Além do mais, a decisão de primeiro grau, com base na certidão de óbito, consignou que a morte do trabalhador sobreveio de diversos fatores, tais como: choque séptico; endocardite bacteriana; Covid-19; obesidade e tabagismo, de modo que não seria possível afirmar, com toda propriedade, que falecimento se deu em virtude da Covid-19.
Lado outro, a decisão de primeiro grau da Justiça do Trabalho de São Paulo, ao julgar um processo de um trabalhador que pretendia o reconhecimento da Covid-19 como acidente de trabalho, e, por conseguinte, a estabilidade provisória, teve seu pedido julgado improcedente. O processo se encontra pendente de julgamento pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, já sendo distribuído para a instância superior e designado relator[9].
De outro norte, o Justiça do Trabalho de Minas Gerais, ao julgar um caso envolvendo um motorista de uma transportadora, que faleceu em decorrência da Covid-19, reconheceu a doença como acidente de trabalho[10]. Neste processo, o magistrado entendeu ser cabível a adoção da teoria responsabilização subjetiva, haja vista que o trabalhador permaneceu vulnerável à contaminação, em locais como instalações sanitárias precárias, pátios de carregamento, nas sedes ou filiais da empresa.
É certo que até o presente momento o Tribunal Superior do Trabalho não emitiu um juízo de valor sobre o assunto. Entretanto, há um recurso a ser analisado pela Corte de Vértice Trabalhista, que já se encontra na conclusão para o voto do Ministro José Roberto Freire Pimenta[11].
Em arremate, é incontroverso que a pandemia trouxe inúmeras mudanças na sistemática jurídica, de modo a fomentar muitas dúvidas e incertezas. Até que ocorra a uniformização da jurisprudência, é provável que existam entendimentos distintos dos operadores do Direito.
[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv927.htm . Acesso em 11.10.2021.
[2] ADI 6342, ADI 6344, ADI 6346, ADI 6352 e ADI 6354.
[3] Disponível em https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/stf-fachin-adis-referendo-mp-927.pdf . Acesso em 11.10.2021.
[4]Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/180710/2020_oliveira_sebastiao_repercussoes_enquadramento.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em 11.10.2021.
[5] Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/notas-tecnicas/2020/sei_me-12415081-nota-tecnica-covid-ocupacional.pdf . Acesso em 11.10.2021.
[6] Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/previdencia/dezembro/nota-tecnica-esclarece-sobre-caracterizacao-da-covid-19-como-doenca-ocupacional. Acesso em 11.10.2021.
[7] Processo 1000396-57.2021.5.02.0061, 9ª Turma. Desembargador Relator, Mauro Vignotto. Acórdão publicado em 05.10.2021.
[8] Processo 1001350-68.2020.5.02.0084. 5ª Turma. Desembargadora Relatora, Patricia Cokeli Seller. Acórdão publicado em 07.10.2021.
[9] Processo 1000960-48.2020.5.02.0036. 3ª Turma. Desembargadora Relatora Jucirema Maria Godinho Gonçalves.
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