Atitude inconstitucional

Bolsonaro, e não pacto federativo, é responsável por conflitos no combate ao vírus

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25 de abril de 2020, 7h36

O combate à epidemia de Covid-19 no Brasil tem gerado diversos conflitos entre União, estados e municípios — vários deles levados ao Judiciário. Mas a culpa desses conflitos não está no pacto federativo estabelecido pela Constituição Federal de 1988, e, sim, no discurso contrário a direitos fundamentais do presidente Jair Bolsonaro. Portanto, não é hora de mudar drasticamente a forma de funcionamento da federação brasileira.

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Bolsonaro ignorou isolamento social e foi a manifestação em 15 de março
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Na crise, Bolsonaro — ainda que nem sempre respaldado pelo Ministério da Saúde — tem defendido medidas menos rigorosas de contenção ao coronavírus, como o isolamento vertical (focado nos integrantes do grupo de risco da Covid-19) e a continuidade das atividades comerciais.

Por outro lado, a maioria dos governadores e de prefeitos de grandes cidades tem seguido as recomendações da Organização Mundial da Saúde e aplicado atos de isolamento horizontal (para todos), com restrições ao funcionamento de negócios e serviços.

A Constituição Federal, no Título III – Da organização do Estado –, lista as funções e competências da União, estados e municípios. É competência comum desses entes legislar sobre saúde (artigo 23, inciso II). Já União e estados podem legislar concorrentemente sobre defesa da saúde.

Com a epidemia no Brasil, entes da federação passaram a editar normas sobre as medidas de contenção do coronavírus. E conflitos começaram a surgir. Uma das controvérsias diz respeito à gestão de aparelhos hospitalares, como os respiradores artificiais, e tem sido constantemente levada ao Judiciário.

Para tentar dirimir disputas e centralizar poder, o governo federal, por meio da Medida Provisória 926/2020, estabeleceu que restrições de transporte só poderiam ser impostas após recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Porém, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu na quarta-feira (15/4) que as competências concedidas à Anvisa pela norma não afastam a competência concorrente de estados e municípios sobre saúde pública. Assim, as medidas que vêm sendo tomadas por governadores passam a ser, em tese, respaldadas pela corte.

Os conflitos entre União, estados e municípios têm levantado questionamentos sobre o pacto federativo. Alguns pensam que seria melhor atribui mais poder a estados e, possivelmente, municípios, como ocorre nos EUA. Outros defendem que uma maior centralização das atividades na União, como era no Brasil antes da Constituição de 1988, possibilitaria um combate à epidemia mais coordenado e eficaz.

Contudo, especialistas ouvidos pela ConJur afirmam que não é momento de se discutir uma reforma do pacto federativo. Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, aponta que o desenho institucional da federação feito pela Carta Magna de 1988 é eficiente para líder com crises como a da Covid-19. Ou seja: com a União estabelecendo normas gerais de saúde pública e planejamento, e estados e municípios executando-as e gerindo hospitais.

Governadores e prefeitos, em geral, têm cumprido suas missões constitucionais. Os conflitos, na visão de Serrano, decorrem do discurso contra a Constituição que vem sendo adotado por Jair Bolsonaro — por vezes oposto até a medidas tomadas pelo Ministério da Saúde. 

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Pedro Serrano diz que discurso de Bolsonaro é inconstitucional
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“A União tem o dever jurídico de adotar a alternativa que mais salve vidas e mais preserve a saúde pública, que é a de adotar o ponto de vista que tem mais apoio da ciência. Quando o presidente prega uma forma de isolamento mais flexibilizada, com base numa opinião científica amplamente minoritária, ele está adotando uma conduta inconstitucional. E é inconstitucional não por causa do pacto federativo, mas por causa de direitos fundamentais, como o direito à vida, o direito à saúde e até o direito a uma boa economia. Ao contrário do que diz o governo federal, não há um conflito entre isolamento e economia. Há uma política de acordo com a Constituição, exercida por estados e municípios, e uma contra, do governo federal, com seus discursos. E isso tem criado uma aparência de vulneração do pacto federativo que não é verdadeira.”

Se a União tomar medidas expressamente contrárias às orientações científicas e às práticas internacionalmente recomendadas, estados e municípios têm o direito de resistência federativa para garantir direitos fundamentais, como a dignidade humana, avalia o professor da Uerj Marco Aurélio Marrafon.

“Ou seja, na hipótese de um presidente que queira arrastar o país para a tragédia, os estados e municípios devem invocar o direito de resistência federativa para preservar suas políticas. Certamente a União não se esgota no chefe do Executivo, então o diálogo deve ser levado ao limite com órgãos técnicos e o Congresso Nacional. Não sendo possível, em ultima ratio, o Supremo Tribunal Federal é o árbitro maior para resolver esses conflitos e indicar as possibilidades do direito de resistência federativa”.

Mudanças pontuais
Mesmo que não seja hora de alterar o pacto federativo, algumas mudanças pontuais podem aumentar a eficiência da atuação estatal em momentos de crise. Em artigo, os advogados Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Lais Khaled Porto sugerem a estipulação de definições mais precisas sobre a atuação de cada ente.

Segundo os advogados, é necessário ter diretrizes sobre como conciliar competências legislativas privativas (como a sobre transportes) com a competência comum material sobre a saúde. Afinal, em um momento em que cada atividade de deslocamento pode ser entendida como de risco de infecção, a competência concorrente pode ser sempre compreendida como predominante.

Nesse cenário, é preciso estabelecer os limites normativos de cada ente, argumentam Mudrovitsch e Porto. Por exemplo, questões essenciais relativas à organização do espaço nacional (como funcionamento de rotas de transporte público interestadual e de aeroportos) à cargo da União; as matérias de cunho civil/organizacional não essenciais (como determinação de isolamento social) no âmbito estadual; e questões locais (como funcionamento de praças públicas) com os municípios.

Já Marrafon é favorável ao movimento descentralizador que vem ganhando força nos últimos anos. A seu ver, as reformas devem ser pautadas no equilíbrio entre as competências para promover políticas públicas e sua capacidade de financiamento.

“Apesar da experiência brasileira mostrar que, historicamente, as políticas públicas nacionais originadas da União alcançarem maior êxito devido aos compadrios e clientelismos locais, penso que o amadurecimento democrático necessita de maior abertura para que os cidadãos decidam sobre suas próprias vidas em âmbito local e regional, cabendo à União muito mais um papel de governança geral e estratégica”, opina.

Pedro Serrano não vê necessidade de se modificar a Constituição. Ele diz que a Carta Magna brasileira é bem equipada para lidar com crises na saúde pública. Um exemplo está na requisição administrativa, que permite que, “em caso de iminente perigo público”, a autoridade competente incorpore e use bens de particulares.

“É uma belíssima solução para ter uma maior centralidade do estado na gestão de unidades de terapia intensiva nesse momento. Países europeus, como a Espanha, tiveram que fazer estatização provisória de hospitais e empresas. Nós não precisamos estatizar, podemos apenas requisitar bens. Nosso ordenamento é muito bem equipado para enfrentar uma pandemia. O que precisa mudar é a mentalidade dos homens que têm o dever de aplicar a Constituição”.

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