Opinião

A Portaria 12/2012 do Ministério da Fazenda e a suspensão do pagamento de tributos

Autores

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

  • Paulo Roberto Coimbra Silva

    é sócio do Coimbra Chaves & Batista Advogados professor associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG e pós-graduado pela Harvard Law School.

30 de março de 2020, 13h02

Como já afirmamos em outro artigo, o caos na saúde é iminente e as dificuldades que advirão para a economia serão tsunâmicas. As consequências para a economia serão enormes, e o Brasil, que já vinha tropicando, pode cair. Também deve ser dito que, em momentos de absoluta crise, os ateus costumam rezar para Deus e, em crises avassaladoras, os neoliberais tendem a compreender os keynesianos.

Mas como fica, em meio a esse caos, a cobrança de tributos federais de empresas que estão em severas dificuldades?

Como ressabido, compete à União, nos termos do artigo 21, XVIII, da Constituição, “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”. Para enfrentar situações mais graves, nos termos do artigo 136, pode o presidente decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social atingidas por calamidades de grandes proporções. Nessas situações graves, de calamidade pública, pode a União, por exemplo, nos termos do artigo 136, parágrafo 1º, II, ocupar e usar temporariamente bens e serviços públicos, respondendo pelos danos e custos decorrentes. Esse é o mecanismo excepcional previsto na Constituição para o enfrentamento de situações como a que se abate por sobre o país.

Diante de um quadro de pandemia que coloca em risco milhares de vidas humanas, o presidente encaminhou a Mensagem 93/2020, solicitando a confirmação do decreto de calamidade pública pelo Senado Federal, o que ocorreu no dia 20/2020 (Decreto Legislativo 6/2020).

O DL 6/2020 reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública em âmbito nacional, até 31 de dezembro de 2020. Em outras palavras, o DL firmou que todo o país está em estado de calamidade pública: todos os estados-membros; todos os municípios.

Lastreado na decretação federal e, sobretudo, na Lei 13.979/2020, o governador de Minas Gerais decretou no dia 20 de março de 2020 estado de calamidade pública, em função da pandemia de coronavírus. Da mesma forma, em São Paulo, o Decreto 64.897/2020 reconheceu o estado de calamidade pública em todo o estado. Com a publicação do decreto, em SP, ficaram suspensas oficialmente até o dia 30 de abril, atividades não essenciais no âmbito estadual, como abertura e funcionamento de parques, cursos de qualificação profissional, atendimento presencial no Poupatempo e na Jucesp, além do funcionamento de locais de culto. Vale recordar que já havia sido publicado um decreto que declarou situação de emergência no município de São Paulo. Nessa mesma toada, diversos estados também decretaram calamidade pública.

Tomando o Decreto mineiro 47.891/2020, como exemplo, verifica-se que a norma reconhece o estado de calamidade pública decorrente da pandemia em todo o estado de MG e foi exarado considerando o disposto na Lei federal 13.979. Nos termos do seu artigo 1º, o estado de calamidade pública no âmbito de todo o território do estado, com efeitos até o dia 31 de dezembro de 2020, se deve aos impactos socioeconômicos e financeiros decorrentes da pandemia. Em sintonia com a política de enfrentamento da crise, foi proibido o funcionamento do comércio em todas as cidades mineiras, salvo os estabelecimentos que vendem produtos ou prestam serviços essenciais, como padarias, supermercados e farmácias. Quanto ao transporte, os ônibus intermunicipais só poderão rodar com metade da capacidade. O decreto foi aprovado pela Assembleia Legislativa no dia 26 de março de 2020.

Os decretos estaduais colocam todos os municípios dos estados em estado de calamidade pública, o que vem em sintonia com aquilo que é necessário para o combate da pandemia. Dúvidas não restam, assim, de que todos os municípios dos estados que assim procederam estão sujeitos ao firmado estado de calamidade pública, seja em razão do decreto federal, seja em razão dos abrangentes decretos estaduais.

No que diz respeito ao recolhimento de tributos, é patente e notório que diversos contribuintes sofrem, nos dias de isolamento social, com a medida e com a vedação ou diminuição da atividade econômica, razão pela qual passam a encontrar dificuldades no recolhimento de tributos.

Se a atividade econômica está estagnada ou fortemente impactada, como é conhecimento público, diversas empresas deixam de operar normalmente, na medida em que os cidadãos estão em isolamento social. É por isso que os governos estaduais vem anunciando pacotes de medidas para o enfrentamento da pandemia no intuito não só de suavizar os efeitos sobre a saúde da população, mas também para atenuar as perdas da economia, sobretudo, no que diz respeito ao “produto, renda e emprego no curto prazo e facilitar o processo de retomada”.

As empresas paralisadas e engessadas em sua capacidade produtiva não podem contribuir com tributos. É consabido que diversos empregados estarão em quarentena ou afastados, em razão da contaminação pela maléfica doença. Como poderão as empresas pagarem os salários por dois ou três meses, com a redução abrupta e significativa da atividade econômica e com seus negócios afetados drasticamente, e mesmo assim serem obrigada a recolher seus tributos, mesmo ausente qualquer capacidade econômica in concreto?

Não se admite o recolhimento de tributos em situação absolutamente anômala de calamidade pública, sob pena de se estar ofendendo ao princípio basilar da capacidade econômica e praticando verdadeiro confisco pela via tributária. Sem operar e sem gerar recursos normalmente, a empresa não é tributada em razão de sua atividade econômica, mas confiscada em seu patrimônio. Em outras palavras, tributar a empresa em um estado de calamidade pública é ofensa cabal ao princípio da capacidade contributiva e ao princípio da proteção contra o confisco.

Não é por outro razão que, em Portugal, o governo editou uma portaria contemplando um pacote de medidas para auxiliar as empresas afetadas pela grave crise, que tiveram seu faturamento reduzido em pelo menos 40% (Portaria 71-A/2020). Se a norma brasileira de crise (Lei 13.979) é por demais singela, a legislação tributária, porém, não sonega mecanismos mais eficazes.

O artigo 66 da Lei 7.450/1985, atribui a competência ao Ministro da Economia para fixar prazos de pagamento de receitas federais compulsórias. Por outro giro, o artigo 67 da Lei 9.784/1999 determina que “salvo motivo de força maior devidamente comprovado, os prazos processuais não se suspendem”.

Como consabido, o estado de calamidade pública retrata uma situação de força maior, que reclama providências excepcionais do Estado. Para atender a essas situações extraordinárias é que foi editada a Portaria 12/2012 do Ministério da Fazenda, que “prorroga o prazo para pagamento de tributos federais, inclusive quando objeto de parcelamento, e suspende o prazo para a prática de atos processuais no âmbito da Secretaria da Receita Federal do Brasil e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.”

Nos termos do artigo 1º da Portaria 12/2012, em vigor, as datas de vencimento de tributos federais de sujeitos passivos domiciliados em municípios atingidos por calamidade pública devidamente decretada fica prorrogado até o último dia útil do terceiro mês subsequente. Claramente, o artigo 1º da portaria determina que os prazos ficam prorrogados em razão de quadro de calamidade pública, exatamente para que os contribuintes afetados possam se recuperar e possam efetuar os recolhimentos devidos dos tributos. Claro fica que a capacidade contributiva dos contribuintes afetados por uma calamidade fica minimizada e exigir tributos em uma situação grave dessas seria medida desarrazoada do Fisco, bem como confiscatória.

O artigo 3º da Portaria 12/2012 estabelece que a RFB e a PGFN expedirão, nos limites de suas competências, os atos necessários para a implementação do disposto nesta Portaria, inclusive a definição dos municípios a que se refere o artigo 1º. Obviamente, não compete à RFB e à PGFN autorizar moratória e nem definir municípios atingidos (o que é feito pelo decreto estadual). Portanto, claramente, cabe à RFB e à PGFN tão somente expedir atos formais necessários à implementação da portaria, sobretudo porque a competência para fixar os prazos é privativa do Ministro da Economia. A norma é autoaplicável e depende tão somente da decretação de estado de calamidade pública.

Tendo em vista que os decretos estaduais, formalmente, declaram todos os municípios em estado de calamidade pública, dúvidas parecem não restar no sentido de que os prazos para recolhimento dos tributos federais foram prorrogados para contribuintes afetados. Na realidade, todos os municípios brasileiros foram declarados em estado de calamidade pública por ato do governo federal, razão pela qual é a própria União que reconhece formalmente a situação para todos os estados e municípios da federação.

Como consabido, a política de enfrentamento da pandemia exige, inarredavelmente, o isolamento social. Apenas assim é possível evitar que o vírus se propague em uma velocidade que permita o atendimento da população afetada. Sem isso, o sistema de saúde pode entrar em colapso.

Para tanto, os governos passaram a proibir o funcionamento do comércio nas cidades mineiras (salvo os estabelecimentos que vendem produtos ou prestam serviços essenciais, como padarias, supermercados e farmácias) e determinaram que as pessoas ficassem em casa. Trabalhadores passaram a ficar confinados em suas residências. Mesmo no que diz respeito ao transporte coletivo, é sabido que as pessoas encontram dificuldades enormes para trafegar.

As empresas, nesse compasso, perdem sua capacidade produtiva porque são obrigadas a reduzir sua capacidade operacional, além de se assistir uma retração no consumo, até porque as pessoas não saem de casa. A atividade econômica, querendo ou não, está refreada, estancada e as empresas perdem sua capacidade de obter receitas. Algumas são mesmo obrigadas a paralisar suas linhas de montagem ou de produção; outras fecham suas portas e são obrigadas a dar férias coletivas a seus empregados. O governo reconhece tudo isso, tanto que a todo momento está a soltar medidas trabalhistas para atenuar a crise, como a MP 927/2020.

Entretanto, as empresas não apenas ficam sem liquidez para pagar seus tributos, como também ficam sem seus trabalhadores para cumprir obrigações acessórias necessárias.

A propósito, se os tributos podem ter seu pagamento postergado em razão de uma situação extraordinária e imprevisível de calamidade, não faz mesmo sentido algum exigir que as empresas cumpram formalidades e deveres instrumentais durante o período.

Fere a razoabilidade a exigência de cumprimento de obrigações acessórias pelas empresas que foram obrigadas a manter seus funcionários em casa. Não se trata de afirmar que a obrigação acessória deva existir sem a principal, mas de reconhecer a situação de calamidade e, à luz da razoabilidade, entender que, se a postergação do pagamento dos tributos é necessária, mas fundamental ainda deve ser o adiamento do cumprimento de deveres instrumentais. Exigir o cumprimento de obrigações acessórias durante o estado de calamidade pública significa uma verdadeira ofensa ao princípio da razoabilidade.

Seria como exigir o preenchimento de uma nota fiscal por parte de um contribuinte que está submerso nas águas de uma enchente. Exigir o cumprimento de obrigações acessórias durante o estado de calamidade pública, quando os trabalhadores estão confinados, em isolamento social, é teratológico. A aplicação subsequente de multas seria algo mais abusivo ainda, sobretudo porque retrataria monstruoso confisco.

O governo comanda as ações que podem impactar o funcionamento regular da empresa. Nesse sentido, quem dá causa a eventual descumprimento da obrigação acessória, em última análise, é o próprio governo federal que decretou o estado de calamidade pública. É para cumprir o mandamento do governo e para atender ao melhor interesse público que as empresas estão paralisadas, portanto, não faz sentido a exigência do cumprimento de obrigações acessórias.

A obrigação acessória é fundada no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos (artigo 113, parágrafo 2º, do CTN). Não faz sentido uma norma que determina a suspensão de prazo para o cumprimento da obrigação principal não o fazer para outro tipo de dever do contribuinte se a razão de ser da suspensão é a mesma, ou seja, a calamidade pública que impede o contribuinte de cumprir uma e outra. É essa ideia que ilumina a Instrução Normativa RFB 1.243/2012 que prorroga os prazos para cumprimento de obrigações acessórias.

Nos exatos termos do artigo 1º da Portaria 12/2012, as datas de vencimento de tributos federais de sujeitos passivos afetados e domiciliados em municípios atingidos por calamidade pública ficam prorrogadas até o último dia útil do terceiro mês subsequente. Entretanto, o Decreto Legislativo 6/2020 reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública em âmbito nacional, até o dia 31 de dezembro de 2020.

Do dia 20 de março de 2020 até o dia 31 de dezembro de 2020, o Brasil e todos os seus municípios estão em estado de calamidade pública. O estado de calamidade, portanto, se renova dia a dia, infelizmente. O evento ocorre mês a mês, até a cessação da circulação do vírus.

Durante todo o período em que perdura o estado de calamidade pública, as empresas sofrem com os gravames trazidos pela pandemia. Nesse sentido, enquanto perdurar o estado de calamidade pública estará suspenso o pagamento de tributos federais e o cumprimento de obrigações acessórias.

Obviamente não faz o menor sentido exigir o pagamento de todos os tributos durante a situação de calamidade. Seria o mesmo que tirar água de um barco que se afunda atirando o balde para dentro do próprio barco. Da mesma forma, em uma situação de calamidade, não faz sentido exigir tributos federais e cumprimento de deveres instrumentais de um estabelecimento que ainda se encontra submerso nas águas de uma enchente.

Em um evento pontual e passageiro, o prazo pode ser computado da data do evento. Mas em uma tragédia que se perpetua no tempo apenas quando cessada a situação de calamidade é que os prazos de suspensão podem começar a fluir.

O prazo de suspensão é sobretudo para que o contribuinte possa se reerguer. Passado o evento (pontual), a Portaria 12 dá o prazo de três meses para a empresa se recompor. Quando o evento se protrai no tempo, como lamentavelmente acontece com a pandemia, o prazo se conta do fim do estado de calamidade pública. Essa é a única interpretação lógica que se pode fazer do ato normativo.

Que os profissionais de saúde e suas recomendações nos ajude a salvar nossas vidas! Que a União ajude a salvar a economia!

Autores

  • é sócio Consultor do Coimbra & Chaves Advogados, professor associado de Direito Público da graduação e pós-graduação da UFMG, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela UFMG e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

  • é sócio fundador do Coimbra & Chaves Advogados, professor associado de Direito Tributário e Financeiro da UFMG, doutor e mestre em Direito Tributário pela UFMG e pós-graduado pela Harvard Law School.

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