Licitações e Contratos

'Salvo melhor juízo' elimina responsabilidade?

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

29 de março de 2024, 8h00

A responsabilidade do parecerista é tema que incomoda doutrina e jurisprudência, sobretudo porque não existe uma regra clara e definida quanto à amplitude da responsabilização. Além disso, a jurisprudência é vacilante quanto à matéria, inexistindo uma padronização de julgados que caminhem por um ou outro sentido.

Conforme já mencionado, a Lei nº 8.666/1993 destinou ao parecerista jurídico um plexo de atribuições menores do que o previsto na Lei nº 14.133/2021. Tal evidência, contudo, não minimizou as mais diversas ações de responsabilização — cível, administrativa e, até mesmo, criminal — contra quem ofertou parecer.

Houve, de certo modo, uma acentuada instabilidade nos julgamentos tomados nas mais variadas cortes do país, ora direcionando a responsabilidade ao emissor do parecer jurídico, ora desviando a responsabilização tão apenas para o gestor ou aos demais agentes envolvidos no processo de contratação pública.

Sucede que, sob a conjuntura da Lei nº 8.666/1993, as atribuições deferidas ao jurídico (não havia a nomenclatura utilizada pela Lei nº 14.133/2021 — “órgão de assessoramento jurídico”) eram mais estritas, sem conteúdo opinativo mais incisivo, por vezes limitando-se à análise do instrumento convocatório.

Consequentemente, avançar quanto a critérios discricionários era mais ousadia do que atribuição administrativa, razão pela qual o parecer, por mais que fosse obrigatório, não era necessariamente vinculante.

Tarefa

Analisar minuta de edital não é tarefa completamente jurídica, sobretudo se não abarca incursão sobre a juridicidade do ato, quando muito sobre a legalidade em sentido estrito. Por conseguinte, sem o mesmo nível de atribuições deferidas pela atual Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ao órgão de assessoramento jurídico tenderiam a recair, por evidência, menores responsabilidades.

Sem mais nem menos, é manifesto que há, segundo nosso entendimento, uma propensão para maiores responsabilizações, tanto quanto mais funções (e poderes) são deferidas ao órgão de assessoramento jurídico sob a égide da Lei nº 14.133/2021.

Spacca

Em que pese o exame – distraído de concludente conteúdo analítico — acima referendado, sobre a atual legislação ainda não há, sequer, uma jurisprudência inaugural que possa conceber alguma segurança quanto ao tema, de modo que, no nosso sentir, existirá uma propensão para um alargamento do nível de responsabilidade daquele agente administrativo que emite opinião jurídica.

Nada obstante, é frequentemente comum por parte dos pareceristas aporem, ao fim das opiniões emitidas nos processos de contratação pública, a expressão “salvo melhor juízo (S.M.J.)”, cujo propósito é demonstrar, para o gestor público — especialmente para quem o parecer é destinado —, que a opinião emitida, mesmo que totalmente adotada, não proporciona adstrição punitiva, à míngua de qualquer filiação entre a tese inserta no parecer e aquele que a subscreve.

Salvo pontuais exceções, trata-se de um comportamento administrativo completamente desprovido de qualquer logicidade e, em certa medida, até mesmo pueril, tendo em conta que as atribuições funcionais que são dispensadas ao órgão de assessoramento jurídico não se limitam a uma atividade de digitação lastreada em simplórias conotações normativas e estritamente legalistas. O proforma tem mais lastro em incomplexa análise de minutas do que em emissão de opinião.

Emissão de opinião

Ao órgão de assessoramento jurídico, sobretudo se estruturado em carreira, não há dispensa de emissão de opinião sobre a qual o gestor tem dúvidas ou se sente inseguro. Logo, a submissão de uma consulta àquele agente administrativo que emite o parecer passa ao largo de uma simples aderência a que a lei, por obrigatoriedade decorrente do desejo normativo, faz referência.

Claramente, existem graus de complexidade em relação às mais variadas matérias que são levadas ao conhecimento do jurídico, não sendo qualquer excentricidade averiguar que, em um ou outro caso, o parecer pode padecer de uma maior complexidade quanto à elaboração. Porém, não é por esse caminho que trilha a responsabilidade daquele que emite a opinião.

Isso porque a obrigatoriedade, por si só, decorre de mandatório normativo, sobre o qual não pode haver qualquer desvio de finalidade, especialmente por se tratar de norma geral de licitação. A compulsoriedade, segundo já argumentado, não é sinônimo de vinculação, tampouco esta significa necessária responsabilização.

À vista disso, o “S.M.J” nada mais expressa que uma cortesia deferida ao gestor, especialmente àquele que solicita as apreciações do órgão que detém a atribuição para o exercício de tal função administrativa, possibilitando ao tomador da decisão concordar, parcial ou integralmente, e, inclusive, discordar, ocasião em que poderá: i) emitir outro parecer, desfazendo o anterior; ii) requerer ao emissor da manifestação jurídica que esclareça fatos sobre os quais pairam questionamentos.

Bem se veja, portanto, que a faculdade de o consulente não concordar com o conselho jurídico inserto no parecer jurídico não abstrai a responsabilidade do emissor, argumento este que se prova pelo simples fato de também ser franqueado ao tomador da decisão acatar, na íntegra e sem ressalvas, a totalidade do parecer, inclusive utilizando-o como motivação expressa para decisão, a qual passará a ser parte integrante do ato.

Grau de responsabilidade

Sem mais nem menos, é atributo do consulente definir o grau de responsabilidade do emissor do parecer, não havendo margem para que o agente público integrante do órgão de assessoramento jurídico possa eliminar o predicado concedido àquele que motiva o ato. Portanto, o S.M.J. não é um completo salvo-conduto, importando em responsabilidade do opinante especialmente quando seus argumentos passam a integrar o ato administrativo que motiva, por definitivo, a tomada de decisão.

Havendo dúvidas em relação a algum procedimento, é dever daquele a quem foi dirigida a consulta elucidar tais imprecisões, esclarecendo, em questionamento fundamentado, com outro agente administrativo que detenha a expertise, o ponto sobre o qual, por não ser de seu conhecimento técnico, pairam indagações, tudo em obediência ao princípio da segregação de funções, previsto no artigo 5º, da Lei nº 14.133/2021.

Inquestionavelmente, o “S.M.J” não é passaporte para anistia. Em casos de insegurança, que haja devidos perquirições sobre os pontos não esclarecidos.

Autores

  • é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e políticas públicas, ex-procurador do estado do Amapá, bacharel em administração e sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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