Infra e Controle

Contratação integrada e limitação de responsabilidade por erro no anteprojeto de engenharia

Autores

  • Giuseppe Giamundo Neto

    é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) advogado e sócio do Giamundo Neto Advogados professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) em Brasília e secretário-adjunto da Comissão Nacional de Direito da Infraestrutura da OAB.

  • Fernanda Leoni

    é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC) especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

17 de abril de 2024, 9h17

Surgida no contexto do regime diferenciado de contratações, previsto na Lei Federal nº 12.462/2011, e incorporada à nova Lei de Licitações (Lei Federal nº 14.133/2021), a contratação integrada é um formato de execução indireta de obras e serviços de engenharia com potencial de fornecer consideráveis ganhos aos contraentes, seja pela facilidade da Administração Pública em receber um projeto pronto e acabado, seja pela oportunidade do contratado privado inovar em soluções e gestão de recursos.

Spacca

Apesar de empregada com certa frequência, principalmente em âmbito federal, um aspecto que pouco evoluiu ao longo dos anos foi a compreensão acerca do adequado compartilhamento de riscos e responsabilidades entre os contratantes, elemento essencial tanto à definição quanto à possibilidade ou não de celebração de aditivos contratuais nessa espécie de ajuste, quanto às situações em que se pode discutir o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato [1].

Nesta oportunidade, explora-se a questão sobre a divisão ou compartilhamento de responsabilidades e riscos decorrentes desse modelo de contratação, especialmente a partir da figura do anteprojeto de engenharia, com foco nas implicações que eventuais erros ou omissões, por parte da Administração contratante, nesse documento, podem ocasionar à precificação da proposta e à própria execução do empreendimento.

O anteprojeto de engenharia, conforme delineado pela legislação [2], é uma peça informativa de caráter inicial, destinada a orientar a formulação da proposta e não a execução da atividade em si, considerando que o seu detalhamento será parte essencial dos trabalhos do contratado privado. No entanto, é imperativo que as informações contidas no anteprojeto sejam precisas e corretas, a fim de garantir uma compreensão adequada das bases para a precificação da proposta e, consequentemente, para o desenvolvimento do projeto futuro.

Nesse sentido, embora seja esperada certa superficialidade no anteprojeto de engenharia, dada a natureza do processo de contratação e a delegação de responsabilidades ao contratado para o desenvolvimento do projeto, é essencial que as informações fornecidas sejam condizentes com a realidade e não contenham erros, omissões ou imprecisões que possam afetar significativamente a execução do contrato.

Spacca

Responsabilidade

A responsabilidade do contratado está diretamente relacionada às informações fornecidas no anteprojeto, conforme estabelecido no edital e seus documentos anexos. Assim, o contratado assume riscos com base nessas informações e não pode ser responsabilizado por erros ou omissões que não estavam evidentes no momento da elaboração da proposta, mas que afetem posteriormente a execução do contrato de forma relevante. Obviamente que também não pode se valer de uma premissa geral de que o anteprojeto é raso para suprir lacunas que deveriam ter sido preenchidas durante a elaboração dos projetos.

Apesar dessa lógica parecer coerente com a própria natureza da contratação integrada, sobretudo se pensarmos no curto lapso de avaliação disponível em um certame para uma avaliação mais aprofundada do anteprojeto e de possíveis falhas nele existentes, nem sempre essa é a visão dominante sobre o tema. O Tribunal de Contas da União, por exemplo, possui diversos precedentes no sentido de que falhas ou omissões no anteprojeto não autorizam a celebração de aditivos visando à sua correção [3].

Somente em alguns poucos casos os órgãos de controle reconhecem que o anteprojeto, apesar de simples, precisa ter um nível mínimo de exigência, afastando que sua superficialidade seja usada como pretexto para o afastamento de aditivos que visem corrigir erros derivados do momento inicial de planejamento da contratação [4].

Não obstante a legítima controvérsia, parece que a própria legislação houve por bem delinear uma forma de mitigação de riscos de anteprojeto deficiente, a partir da elaboração de matriz de riscos que inclusive considerasse a possibilidade de inserção, no preço da proposta, de taxa compatível com os riscos assumidos pelo contratado. Nesse contexto, conforme definição estabelecida em edital, poder-se-ia mitigar ou mesmo elidir o risco de falhas nesse documento mediante pagamento compatível com o custo de assunção desse risco [5].

No caso de ausência de instituição dessa taxa ou para as situações em que a matriz de riscos é incompleta ou inexistente, a solução fica por conta de uma análise razoável do contexto. Se a deficiência do anteprojeto é causa evidente da alteração posterior do projeto; se as falhas não eram facilmente identificadas no momento e ao tempo da licitação; e se essa deficiência não for decorrente de erro ou omissão do contratado, parece claro que a alteração do contrato é possível e que seus custos não serão assumidos pelo contratado. A responsabilidade do contratado não é abstrata ou ilimitada; está vinculada às informações fornecidas pela Administração contratante.

Portanto, a distinção entre simples ampliação ou detalhamento do anteprojeto e erro técnico da Administração contratante é crucial. O contratado não pode ser responsabilizado por erros graves ou omissões no anteprojeto, que afetem diretamente a delimitação do projeto e não foram precificados na proposta, mas também não pode valer-se da simplicidade desse documento técnico para atribuir ao contratante o custeio de melhorias no projeto que seriam presumíveis ou previsíveis diante de uma análise técnica mais rigorosa, exigível em uma contratação dessa natureza.

Em suma, a legislação não detalhou a competência para a assunção dos ônus decorrentes de erros do anteprojeto, de modo que eles não podem ser imediatamente transferidos ao contratado, mas objeto de detalhado e equitativo compartilhamento de riscos, que leve em consideração uma alocação eficiente de responsabilidades, assegurando a própria eficácia desse modelo de contratação.

__________________

[1] Essas foram, inclusive, as hipóteses definidas pela legislação como aptas a ensejar a alteração do contrato submetido ao regime de contratação integrada, como se extrai do revogado artigo 9º, §4º, da Lei nº 12.462/2011:

“Nas hipóteses em que for adotada a contratação integrada, é vedada a celebração de termos aditivos aos contratos firmados, exceto nos seguintes casos: I – para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro decorrente de caso fortuito ou força maior; e, II – por necessidade de alteração do projeto ou das especificações para melhor adequação técnica aos objetivos da contratação, a pedido da administração pública, desde que não decorrentes de erros ou omissões por parte do contratado, observados os limites previstos no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.”

[2] Constava da redação do revogado artigo 9º, §2º, da Lei nº 12.462/2011: “No caso de contratação integrada: I – o instrumento convocatório deverá conter anteprojeto de engenharia que contemple os documentos técnicos destinados a possibilitar a caracterização da obra ou serviço, incluindo: a) a demonstração e a justificativa do programa de necessidades, a visão global dos investimentos e as definições quanto ao nível de serviço desejado; b) as condições de solidez, segurança, durabilidade e prazo de entrega, observado o disposto no caput e no § 1º do art. 6º desta Lei; c) a estética do projeto arquitetônico; e d) os parâmetros de adequação ao interesse público, à economia na utilização, à facilidade na execução, aos impactos ambientais e à acessibilidade; (…)”. Redação hoje reproduzida no artigo 6º, inciso XXIV, da Lei Federal nº 14.133/2021.

[3] Nesse sentido: “Na contratação integrada regida pela Lei 12.462/2011 (RDC), o risco inerente ao desenvolvimento do projeto básico é inteiramente alocado ao particular, não havendo permissão legal para assinatura de aditivos por conta de eventuais imprecisões ou omissões do anteprojeto” (TCU. Acórdão nº 831/2023-Plenário. Relator Benjamin Zymler. Sessão de 03/05/2023).

[4] Cf.: “De fato, existe um aparente paradoxo, na celebração de aditivo lastreado nas omissões do anteprojeto, pois é muito mais provável se incorrer em erro ou omissão em um anteprojeto pouco desenvolvido que em um projeto básico e/ou executivo. (…) A adoção do regime de contratação integrada baseado em um anteprojeto que se constituía em mero levantamento de serviços remanescente sem a previsão contratual das condições de desempenho suficientes a garantir a qualidade final da obra e a compatibilidade dessa ao valor estimado elimina os benefícios da adoção da contratação integrada. Além disso, repisa-se aqui o já consignado neste relatório, que a confusão entre os regimes de execução, contratação integrada e preço unitário, acabou por beneficiar o consórcio contratado. Diante de tal quadro, partindo do pressuposto que o aditivo foi válido, resta patente que o anteprojeto era deficiente, inclusive pela não previsão das condições de desempenho, em descordo com §2º do art. 9 da Lei nº 12.462/2011” (CGU. Relatório nº 201700820. Auditoria de Acompanhamento da Gestão da VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A.).

[5] Era o que estabelecia o artigo 9º, §5º, da Lei nº 12.462/2011: “Se o anteprojeto contemplar matriz de alocação de riscos entre a administração pública e o contratado, o valor estimado da contratação poderá considerar taxa de risco compatível com o objeto da licitação e as contingências atribuídas ao contratado, de acordo com metodologia predefinida pela entidade contratante”. Essa redação foi incorporada ao artigo 23, §5º, da Lei nº 14.133/2021.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito do Estado pela USP e sócio do escritório Giamundo Neto Advogados.

  • é doutoranda e mestre em Políticas Públicas pela UFABC (Universidade Federal do ABC), especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura, bacharel em Direito pela PUC-SP e advogada do Giamundo Neto Advogados.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!