Opinião

Compras públicas com perspectiva de gênero na Lei nº 14.133/2021

Autor

  • Miriele Vidotti

    é advogada especializada em Direito Médico e da Saúde pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela PUC-PR e pesquisadora em Bioética.

9 de abril de 2024, 19h44

A Constituição de 1988 não deixa dúvidas quanto à importância da igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, ratificando tratados e documentos internacionais para a redução das assimetrias de gênero dos quais o Brasil é signatário, como por exemplo, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw, 1979), promulgada pelo Decreto nº 89.460, de 20/3/1984.

O texto constitucional, neste sentido, é um marco histórico importante para a conquista dos direitos das mulheres no Brasil, na medida em que é a primeira Constituição da República que estabelece a igualdade jurídica entre homens e mulheres no país, sendo a carta política norteadora para políticas públicas com vistas à implementação material da igualdade de gênero e eliminação das diversas formas de discriminação de gênero no cenário nacional.

No âmbito dos direitos das mulheres, a Constituição trouxe contribuições que serviram como base para a elaboração de legislação infraconstitucional protetiva, como por exemplo a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2003), que reconheceu, enquanto responsabilidade do Estado, a repressão à violência doméstica.

Mulheres no mercado de trabalho

Em que pesem alguns importantes avanços, ao longo dos mais de 30 anos de vigência da atual Constituição, a disparidade de gênero ainda é um problema social expressivo no contexto brasileiro, em especial no que tange às desigualdades relacionadas ao mercado de trabalho, às diferenças salariais, às menores oportunidades de mobilidade e promoção das mulheres dentro das estruturas institucionais empregadoras e menores índices de contratação para cargos de liderança.

Destaca-se, neste contexto que, historicamente, a progressiva inserção das mulheres no mercado de trabalho foi bastante marcada pela precarização dos postos de trabalhos, na medida em que mulheres eram — e continuam sendo — mais contratadas em regimes temporários, para trabalhos informais, sem registro em carteira de trabalho, em jornadas parciais, com salários mais baixos, frequentemente combinado com a responsabilidade de uma segunda ou terceira jornada, ocorrendo a integração da força de trabalho feminina de forma precária e insegura (Araújo, 2002).

Spacca

Consequentemente, a natureza excludente da absorção das mulheres no mercado de trabalho refletiu, necessariamente, na concentração das mulheres em ocupações de menor prestígio social, bem como na instabilidade laboral, nas escassas oportunidades de mobilidade dentro das estruturas empregadoras, na desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres, bem como na disparidade salarial entre os gêneros. (Araújo, 2002)

Além disso, a força de trabalho feminina ainda é muito marcada pela denominada divisão sexual do trabalho, na medida em que a história, especialmente o século 19 e primeira metade do século 20 revelam uma clara divisão entre o espaço público e privado.

O primeiro, notadamente ocupado e desempenhado por homens, encarregados do papel de provedores de seus lares, enquanto o segundo empenhado e ocupado pelas mulheres, tendo como principal atividade o cuidado do lar, configurando uma estrutura de homens provedores e mulheres cuidadoras (Souza e Guedes, 2016).

Muito embora grandes mudanças sociopolíticas tenham ocorrido ao longo das últimas décadas, especialmente por força de movimentos feministas no século 20, diluindo em grande medida a rígida dicotomia entre as esferas pública e privada, bem como o tradicional modelo de homem provedor e mulher cuidadora, ainda assim, as disparidades de gênero continuam se fazendo expressivamente presentes no mercado de trabalho.

Tem-se, exemplificativamente, as desigualdades que ainda resistem no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, na medida em que embora mulheres têm ocupado de forma crescente cargos como de magistrada que, segundo o Conselho Nacional de Justiça, subiu de 24% em 1998 para 38% em 2019, verifica-se que continuam enfrentando, no entanto, barreiras invisíveis na ascensão na carreira aos tribunais superiores, sendo os cargos de desembargadores ocupados majoritariamente por homens.

Cita-se, ainda, a composição do Supremo Tribunal Federal que ao longo dos seus 132 anos de história, foi ocupado por um total de 171 ministros, destes, apenas três mulheres. Somente depois de 109 anos de sua instituição, a mais alta corte do país teve em sua composição uma cadeira ocupada por mulher, de modo que ao longo de todo o século 20, o tribunal foi constituído de forma unânime por homens.

Não menos importante são as disparidades relacionadas ao desnível salarial. Segundo dados do IBGE a desigualdade salarial entre homens e mulheres no Brasil voltou a crescer, atingindo uma diferença de 22% no ano de 2022. Significa dizer que, atualmente, brasileiras recebem em média 78% do que ganha um homem para o mesmo cargo e função.

No âmbito das compras públicas no contexto brasileiro, não se tem, até o momento, dados acerca da contratação de empresas com quadro societário formado majoritariamente por mulheres. No entanto, de forma reflexa, é necessário levantarmos o debate acerca da menor participação das mulheres em altos cargos nas estruturas internas de grandes empresas, como os de diretoria executiva.

De acordo com levantamento da empresa de consultoria Oliver Wyman, que analisou grandes empresas do setor financeiro em 32 países, constatou-se que apenas 10% dos cargos de diretoria executiva das empresas brasileiras são ocupados por mulheres.

Efeitos da violência doméstica

De outro lado, a violência contra as mulheres também se mostra como uma das faces — certamente a mais perversa — da desigualdade de gênero, se mostrando não somente produto e reprodução das relações de poder, mas também causando profundos impactos no desenvolvimento econômico dos países.

Neste contexto, a violência perpetrada contra mulheres em ambiente familiar é caracterizada como violência doméstica e se revela como não somente um problema de saúde pública, mas também uma grave violação de direitos humanos.

Uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo revelou que uma em cada cinco mulheres já sofreu alguma forma de violência perpetrada por homens, conhecidos ou desconhecidos, sendo que o parceiro (marido ou namorado) é apontado como o autor em mais de 80% dos casos relatados.

Ademais, a violência doméstica é expressivamente marcada por variáveis econômicas, de modo que mulheres jovens, pobres e negras são as mais atingidas por esta grave violação, segundo dados de pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Instituto Datafolha.

De outro lado, conforme estudo elaborado pela Gerência de Economia e Finanças Empresariais da Fiemg, realizado em 2021, revelou-se que, ao longo de uma década, a violência contra as mulheres gerou um impacto negativo de R$ 214,42 bilhões no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.

Além disso, o estudo aponta que a violência de gênero ocasiona o encerramento de 1,96 milhão de postos de trabalho no Brasil, culminando em uma perda média de R$ 91,44 bilhões de salários e de arrecadação de R$ 16,44 bilhões em tributos para o período.

Mulheres e a Lei de Licitações

Objetivando, enquanto mais um dos mecanismos para dar efetividade aos direitos das mulheres e à redução das disparidades de gênero, a nova lei geral de licitações e contratos públicos (Lei Federal nº 14.133/2021) trouxe contribuição importante no que tange à busca pela equidade de gênero ao dispor, enquanto critério de desempate nos certames licitatórios, a avaliação de desenvolvimento pelo licitante de ações de igualdade de gênero no ambiente de trabalho.

Continuamente, a fim de regulamentar o mencionado dispositivo, o Decreto federal nº 11.430/2023 trouxe considerações acerca das mencionadas ações de equidade, estabelecendo, enquanto critério de desempate nos certame, a realização de medidas como inserção, participação e ascensão profissional igualitária entre mulheres e homens, incluída a proporção de mulheres em cargos de direção do licitante, igualdade de remuneração e paridade salarial entre mulheres e homens, programas voltados à equidade de gênero e raça, práticas de prevenção e de enfrentamento do assédio moral e sexual, entre outras.

A Lei Geral de Licitações e Contratos também estabeleceu a possibilidade de o edital licitatório exigir que percentual mínimo da mão de obra responsável pela execução do objeto da contratação seja constituído por mulheres vítimas de violência doméstica.

Sobre este aspecto, o Decreto 11.430/2023 igualmente cuidou de regulamentar a matéria, estabelecendo um percentual mínimo de oito por cento das vagas, aplicado a empresas com quantitativos mínimos de vinte e cinco colaboradores, bem como acerca do fornecimento da relação de dados de mulheres vítimas de violência doméstica que tenham autorizado expressamente a disponibilização de seus dados para fins de obtenção de trabalho, pelos Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e Ministério das Mulheres, bem como do sigilo da informação.

Trata-se, portanto, de importantes inovações no esforço em busca da efetivação da igualdade de gênero e, consequentemente, na redução das desigualdades presentes no contexto brasileiro.

De acordo com relatório elaborado pelo Banco Mundial (2012), a equidade de gênero é imprescindível para o desenvolvimento econômico, tendo em vista que as mulheres representam 43% da força de trabalho global e mais da metade dos estudantes universitários. Portanto, a precarização das condições de trabalho ou a alocação inadequada das mulheres nos postos de trabalho, ante discriminações no mercado e nas próprias instituições, resulta em prejuízos econômicos para toda a sociedade.

Os contratos públicos são uma oportunidade expressiva para a promoção de uma economia mais inclusiva, além de fomentar a igualdade de gênero ao aumentar a presença de empresas pertencentes e lideradas por mulheres nas contratações públicas.

Nas palavras da socióloga Elizabeth Lobo, a classe operária tem dois sexos, sendo necessária a superação das assimetrias no mundo do trabalho e uma atuação assertiva da Administração Pública na criação de políticas públicas para geração de emprego que favoreçam a participação das mulheres no mercado de trabalho e tenham, enquanto estratégia, o acesso à recursos financeiros enquanto ferramenta com expressivo potencial de redução das desigualdades e diminuição das diversas formas de violência de gênero.

Espera-se, neste sentido, que as inovações da atual Lei Geral de Licitações e Contratos contribuam efetivamente para uma atuação atenta e sensível da Administração Pública às questões de gênero, gerando impactos sociais importantes e urgentes no contexto social brasileiro.

 

 


Referências:

Araújo, A. M. C. Gênero no trabalho. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 17-18, p. 131–138, 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644557. Acesso em: 3 abr. 2024.

Araujo, M. F. Gênero e violência contra a mulher: o perigoso jogo de poder e dominação. Rev. Psicol. Am. Lat.  n.14 México out. 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2008000300012. Acesso em 28 mar. 2024.

Souza, L. P.; Guedes, D. R. A desigual divisão sexual do trabalho: um olhar sobre a última década. Mercado de trabalho, Estud. av. 30 (87), May-Aug 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142016.30870008. Acesso em: 1 abr. 2024.

Souza-Lobo, E. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. 3a. Ed. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2021. [cap.1, pp. 29-82] Federici, S.

Venturi, G.; Godinho, T. (Org.). Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. 1. ed. São Paulo: FPA; Sesc SP, 2013. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2017/05/pesquisaintegra_0.pdf. Acesso em 27 mar. 2024.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2022. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/22827-censo-demografico-2022.html. Acesso em 20 mar. 2024.

Empowering women through public procurement and enabling inclusive growth. Disponível em: https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2021/11/empowering-women-through-public-procurement-and-enabling-inclusive-growth. Acesso em 25 mar. 2024.

Mulheres ainda enfrentam obstáculos invisíveis na ascensão em carreiras do Sistema de Justiça. Portal CNJ. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/mulheres-ainda-enfrentam-obstaculos-invisiveis-na-ascensao-em-carreiras-do-sistema-de-justica/. Acesso em 20 mar. 2024.

Mulheres estão em apenas 37% dos cargos de chefia nas empresas. Revista Pequenas empresas grandes negócios. Disponível em: https://revistapegn.globo.com/Mulheres-empreendedoras/noticia/2017/03/mulheres-estao-em-apenas-37-dos-cargos-de-chefia-nas-empresas.html. Acesso em 20 mar. 2024.

Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 4ª Ed., 2023. Realização: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Instituto de Pesquisas Datafolha. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/03/visiveleinvisivel-2023-sumario-executivo.pdf. Acesso em 30 mar. 2024.

Autores

  • é advogada especialista em Direito Administrativo (com atuação principal nas áreas de licitações, contratos administrativos e Direito Administrativo Sancionador) e mestranda pela Universidade de São Paulo.

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