Opinião

Decretos municipais não deixam a falecida Lei nº 8.666/93 descansar em paz

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Jordão Violin

    é advogado professor doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e LL.M. pela Syracuse University em Nova York.

  • Pedro Henrique Braz de Vita

    é advogado professor doutorando mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation).

20 de abril de 2024, 6h31

Em 29 de março de 2023, os autores deste texto denunciaram os esforços feitos por gestores públicos de todo país para manter a desacreditada Lei nº 8.666/93 respirando por aparelhos. [1] Mais de um ano depois, eles fazem novo uso desse espaço para noticiar que esse movimento persiste mesmo após a revogação oficial da Lei.

Conforme alertado por Aldem Johnston Barbosa Araújo em artigo publicado em 25 de março de 2024, nesta mesma Conjur,[2] diversos municípios brasileiros têm se articulado em torno da tentativa de ressuscitar a Lei nº 8.666/93. A estratégia consiste em editar decretos municipais que autorizam a publicação, em 2024, de editais de licitação ainda regidos pela Lei nº 8.666/93, pela Lei nº 10.520/02 ou pela Lei nº 12.462/11 — todas revogadas no final de 2023, conforme Lei Complementar nº 198/23.

Segundo a pesquisa feita pelo articulista, ao menos dez municípios (de nove estados diferentes) já fizeram uso do expediente, e os prazos limites para que a publicação dos instrumentos convocatórios ocorra variam de 1º de março de 2024 a 31 de dezembro de 2024. As datas são tão díspares entre si que, tudo indica, cada ente escolheu um dia aleatório, a seu bel prazer, e o fixou como marco no decreto, sem qualquer amparo em lei ou qualquer outra espécie de fundamento jurídico.

Seria isso possível? A nosso ver, não! E isso por diversos motivos.

O primeiro deles tem grande peso institucional: o plenário Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 507/23, decidiu que somente seguiriam regidas pelas legislações pretéritas aquelas licitações cujos editais ou avisos de contratação direta fossem publicados até 31 de dezembro de 2023. Ou seja, as prorrogações trazidas pelos decretos municipais foram censuradas pelo TCU, que fixou o final de 2023 como a data limite de publicação do edital para que a licitação seja regida por uma das leis revogadas.

Spacca

A esse desalinhamento em face da orientação do TCU se somam duas ilegalidades formais.

A primeira delas reside no fato de que decretos não podem inovar a disciplina da Lei que lhes confere fundamento. Eles não são aptos a, por exemplo, ampliar as hipóteses de cabimento da norma hierarquicamente superior ou de estender os efeitos desta última para além de prazo fixado nela própria. E é preciso registrar que em momento algum a Lei nº 14.133/21 abre espaço para a prorrogação pretendida pelos decretos.

Além disso, é preciso lembrar que a definição do conteúdo e dos efeitos de leis gerais sobre licitações e contratos é tema sujeito à reserva de lei federal, conforme inciso XXVII do artigo 22 da Constituição[3] e, portanto, não pode ser disciplinado pelos municípios. Logo, ainda que fosse possível a prorrogação da data limite, isso não poderia ser feito nem por decreto, nem pelos municípios.

Seja como for, esse cenário precisa levar a uma reflexão mais profunda sobre como são conduzidas reformas estruturais no âmbito da administração pública brasileira. Longe de se movimentarem para implementar de uma vez por todas a Lei nº 14.133/21, o que temos visto são entes federativos atuando para garantir a sobrevida da legislação antiga, adotando medidas de caráter protelatório para evitar dar concretude ao novo regime de licitações e contratos administrativos desenhado pelo legislador.

A ainda baixa adesão à nova lei pelas administrações públicas era uma realidade em 2023[4] e, ao que tudo indica, a revogação definitiva da Lei nº 8.666/93 não será suficiente para alterar esse cenário. Claro está que, se depender da vontade e da criatividade dos gestores brasileiros, a Lei nº 8.666/93 não terá sossego em seu leito de morte e seguirá sendo invocada do além-vida por muitos anos.

Vejamos o que dirão os tribunais quando provocados. Enquanto nada é feito, a potencialidade da nova Lei de Licitações de alterar para melhor o cenário brasileiro de contratações públicas seguirá refém do inexplicável saudosismo que setores da administração nutrem pelas leis revogadas.


[1] Ver aqui: https://www.conjur.com.br/2023-mar-29/opiniao-lei-n866693-uti/

[2] Ver aqui: https://www.conjur.com.br/2024-mar-25/e-possivel-prorrogar-a-vigencia-da-lei-no-8-666-1993-por-meio-de-decretos/

[3] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: […] XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III.

[4] Conforme relatório divulgado pelo TCU, num total de 196.136 licitações realizadas de agosto de 2021 a julho de 2023, somente 6.127 tiveram por base a Lei n. 14.133/21, o que dá aproximadamente 3,1% (Acórdão 2.154/23, Plenário).

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), árbitro e advogado.

  • é advogado, professor, doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e LL.M. pela Syracuse University em Nova York.

  • é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation) e advogado.

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