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O Novo Processo Penal Onlife ou Híbrido: analógico e digital

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29 de março de 2024, 8h00

A questão que governa o título é: as Teorias de Processo e da Prova foram estabelecidas em momento histórico distinto, com suporte na Lógica Mecanicista [relação causa-efeito], alheias às atualizações teóricas e metodológicas (Aury Lopes Jr), especialmente em face do contexto tecnológico que invadiu os instrumentos de investigação e julgamento, associadas aos achados da Psicologia Cognitiva, Psicologia Social, Economia Comportamental, Neurociência, Economia, Física, Ciência de Dados, dentre outros domínios da ciência, em geral, ignorados e/ou não integrados adequadamente ao Processo Penal.

Os impactos da Era da Informação (Castells; Floridi), dos avanços tecnológicos (Internet, Web, computadores, processo digital, prova eletrônica-digital, Inteligência Artificial, Big Data, dentre outras entidades) e das contribuições dos domínios adjacentes simplesmente não existiam à época.

Em consequência, ao mesmo tempo que é inválido criticar os teóricos do Saber Convencional do Processo Penal pelos recursos então inexistentes e/ou indisponíveis, também é inválido continuar aplicando modelo desatualizado, obsoleto e inadequado à compreensão do contexto atual, situado em três domínios com fronteiras difusas: Mundo Analógico, Mundo Digital e Mundo Onlife (Híbrido).

Atualmente convivemos tanto com coordenadas analógicas, quanto digitais, sem que tenhamos, muitas vezes, a devida compreensão dos referenciais teórico-práticos de atuação.

Manifesto Onlife

No Manifesto Onlife, Luciano Floridi  discute o impacto das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) na auto concepção humana, da qualidade e quantidade de interações sociais, a própria concepção de realidade e o modo como interagirmos na determinação do mundo. Em consequência, questões aparentemente superadas retornam com imensa força, especialmente no tocante aos direitos fundamentais [dignidade humana; privacidade; controle social etc.].

Denomina-se de Tecnologias da Informação e Comunicação [TICs] o conjunto de dispositivos [meios: dispositivos; ferramentas; instrumentos] aptos à otimização do armazenamento, do acesso, do processamento e da troca de dados e de informações com finalidades múltiplas.

Spacca

Os avanços tecnológicos propiciaram o aumento do potencial das máquinas, inserindo-se no cotidiano pessoal e profissional, especialmente por meio de computadores, da internet e da web (www).

A consequência foi a aceleração e a ampliação do volume das trocas de informações no contexto. No domínio do Direito e do Processo Penal o impacto das TICs é imenso, em geral, pouco integrado às atividades defensivas, embora amplamente utilizadas nas atividades de investigação e de inteligência.

Em consequência, a adoção de estratégias de integração dos achados das ciências de dados mostra-se como condição de possibilidade às atividades relacionadas à gestão de caso penal concreto. Ao mesmo tempo que confere ampla possibilidade de obtenção de dados e de informações, promove a disparidade de armas procedimentais em diversos campos.

Além da gestão do caso penal, o acesso, a aquisição e o processamento do imenso volume de dados disponível tornam-se privilégio de quem adquiriu dispositivos e competências relacionadas à implementação do devido processamento. Os demais esperam impávidos um milagre.

Processo Penal Onlife

Nesse ambiente difuso, define-se o Processo Penal Onlife como o momento atual em que as coordenadas de compreensão teórico-prática do funcionamento dos procedimentos penais são de “conteúdo variado” (expressão de Rui Cunha Martins), isto é, com sobreposições, alinhamentos; rupturas e ajustes no âmbito de incidência, sem que tenhamos uniformidade, coerência e consistência, muito em decorrência da ausência de entendimento sobre os atributos das entidades digitais.

O Processo Penal Onlife é um modelo dinâmico que negocia constantemente as fronteiras entre a ultratividade das coordenadas analógicas e os impactos das inovações tecnológicas (inteligência artificial; big data; internet; web; smartphones; etc.) do contexto digital.

Para tornarmos mais precisa a abordagem, o contexto ou mundo analógico se refere aos fatos penais sem qualquer conexão ao Contexto Digital, quer como ambiente ou meios de prova, restringindo-se à coleta de evidências analógicas (documentos e/ou objetos físicos; depoimentos e perícias materiais), em número cada vez menor. Estima-se que mais de 80% das provas sejam digitais ou digitalizadas (inseridas em formato eletrônico).

No extremo oposto estão os crimes genericamente designados de Digitais, praticados no ambiente digital, em franco crescimento (Scott Sydow). No entremeio estão os crimes híbridos, em que tanto a realização da conduta, quanto as provas, conectam-se direta ou indiretamente ao contexto digital, atualmente em maior número.

Ainda que assumamos a autonomia do Direito e, por consequência, da especificidade do domínio jurídico, também é verdade que o Contexto Analógico se alterou substancialmente em face Contexto Digital (Virada Digital, diz Dierle Nunes), exigindo a aquisição de competências [conhecimentos; habilidades; experiencias; atitudes] ausentes na formação convencional do agente penal [qualquer humano que interage nos procedimentos penais; investigador; acusador; defensor ou julgador].

Transformação

A transformação do contexto analógico em digital promoveu a modificação das coordenadas do cotidiano e, por consequência, do Processo Penal, especialmente a imensa produção de dados por meio de dispositivos (sensores, smartphones, câmeras etc.), ampliando a produção de prova eletrônico-digital. Segue-se que a ausência de conhecimentos mínimos quanto aos novos temas e artefatos fomenta a disparidade de armas digitais (confiram-se os escritos de Luiz Eduardo Cani).

Basta indicar a controvérsia mundial sobre a extensão da privacidade dos dados armazenados nos “smartphones” que, desde sua criação, em 1989, promoveram imensas controvérsias na doutrina e jurisprudência, ainda não dirimidas (estatuto e limites à privacidade).

A atualização teórica e operacional de cada agente depende tanto da disposição subjetiva individual quanto ao prévio reconhecimento das fraquezas, associada à aquisição de novas competências digitais (conhecimentos, habilidades; experiências; atitudes).

Diferentemente da Polícia e do Ministério Público que fazem constantes treinamentos e são providos de Unidades de Inteligência (muitas vezes às sombras e com desvio de finalidade; vide textos de Luis Guilherme Vieira), os defensores públicos e advogados privados contam somente com o esforço individual, em geral, com orçamentos limitados e preconceitos limitadores das mais variadas ordens quanto à incorporação de tecnologia defensiva.

Embora tenhamos avanços quanto à regulação e aceitabilidade da Investigação Defensiva (Gabriel Bulhões; Michelle Aguiar; Fernanda Ravazzano), a disparidade dos recursos tecnológicos disponíveis entre acusação e defesa tende a aumentar, salvo quanto aos profissionais que se deram conta das limitações digitais e, por si, avançarem no sentido de adquirirem novas competências necessárias à redução da defasagem das armas digitais, especialmente por introduzirem ferramentas opensource e Osint (Maltego; IPED; Osint Brazuca).

De minha parte foi necessário um longo letramento digital (alfabetização) porque formado em 1996, desde então, embora tenha acompanhado a criação e evolução dos computadores, da internet (estrutura física) e da web (aplicações), não tinha a compreensão adequada das novas entidades, do funcionamento e das oportunidades (conhecidas/desconhecidas ou desconhecidas/desconhecidas).

Reconhecer os próprios limites e abandonar a arrogância analógica é um ato de coragem, talvez de sobrevivência profissional. Embora tenha iniciado o letramento digital, o esforço direcionado à compreensão do Contexto Digital é imenso, exigindo a necessária e constante atualização, porque a cada dia surgem novidades (é impossível deixar de lado a inteligência artificial generativa e conversacional atualmente: GPT4; Copitot; Gemini etc.).

Obstáculo

O maior obstáculo é o de que a maioria dos agentes penais conta apenas com papel, caneta e um editor de texto para gerenciar o caso penal. A metodologia se resume em anotar o que se julga relevante/irrelevante, com riscos e rabiscos, associando o material selecionado às competências (conhecimentos; habilidades; experiências; atitude), além da pesquisa parcial na doutrina e, principalmente, na jurisprudência, com imensas dificuldades de identificar, diante do excesso de fontes (abundância digital), o que é compatível e útil do que é incompatível e inútil.

Aloca-se tempo e recursos em atividades redundantes, ineficientes e repetitivas. O amadorismo metodológico, embora existam ferramentas disponíveis, inclusive gratuitas (obsidian.md, p.ex.) tende a ampliar a exposição ao risco de erros (perigos; catástrofes).

O pior é que muitos sequer se dão conta do cenário de risco, por desconhecerem a existência de instrumentos e ferramentas digitais e ágeis à melhoria do desempenho na gestão do caso penal. No entanto, desde a passagem da máquina de escrever para os computadores, com a criação da Internet (a estrutura física) e as infinitas possibilidades da Web (a conexão de conteúdo; rede; aplicações), Open Source Intelligence [Osint; Rodrigo Camargo; Antônio Souza, Rômullo Carvalho; Wanderson Castilho], a incorporação de recursos tecnológicos às práticas jurídicas, especialmente à gestão de caso penal, é condição necessária à competitividade (Isabela Ferrari; Fabiano Hartmann; Fernanda Lage).

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Do contrário, a defasagem aumenta a exposição aos riscos decorrentes da lentidão de acesso, localização e processamento do imenso volume de dados e de informações produzidos em um caso penal, ainda que aparentemente simples.

Por isso a importância das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), os achados da Gestão do Conhecimento e as novas oportunidades de aquisição e de tratamento de dados. Até porque a Proteção de Dados Pessoais, especialmente o conceito de “autodeterminação informacional”, é inerente ao Processo Penal, motivo pelo qual se deve avaliar o impacto, dentre outras normativas, da Emenda Constitucional 115, do Marco Civil da Internet, da Lei Geral de Proteção de Dados e da Convenção de Budapeste.

Ainda que não tenhamos, ainda, a LGPD-Penal, os princípios e regras gerais incidem no Processo Penal. Do contrário, estaríamos em Zona de Exceção, situação incompatível com o regime democrático. Então, do ponto de vista da Administração Pública, lugar da Investigação Criminal, as exigências mínimas são exigíveis. Quem sabe você tenha ficado curioso e possa ler o acórdão da Ação Direta de Constitucionalidade 51, proferido pelo Supremo Tribunal Federal.

ADC 51

Dentre as diversas possibilidades, encontra-se a alegação da Perda de Uma Chance Probatória Digital, consistente na omissão quanto à aquisição ou produção de prova por parte do Estado Investigador e/ou acusador, reduzindo as chances defensivas de modo tangível, objetivo e mensurável.

Se existem sensores disponíveis no cotidiano, a ausência de levantamento das câmeras públicas, privadas ou bodycam podem significar, a depender do caso, a alteração da valoração do conjunto probatório.

O Supremo Tribunal de Justiça, no julgamento do AgRg. HC 213.387, voto ministro Gilmar Mendes (2ª Turma, PV; 05-12/05/2023), deixou assentado:

“Embora em julho a de 2020, os agentes policiais insistem em realizar a diligência sem uso de câmeras corporais, aquisição de imagens de câmeras da região ou mesmo da viatura, confiando na sobrevalorização da força das declarações que se mostra inválida no contexto digital atual. Em consequência, a omissão dos agentes estatais retira a tração cognitiva das declarações dos policiais analisadas no contexto dos autos, principalmente quanto às premissas adotadas pela decisão monocrática.”

Há um longo caminho a ser construído, incompatível com a inércia analógica de muitos agentes penais. Se, em geral, os currículos do Curso de Direito são insuficientes à aquisição de competências [conhecimentos; habilidades; experiências; atitudes] associadas ao mundo digital e/ou Onlife (híbrido), vinculados às novas oportunidades com dados, então a formação adequada dependerá da motivação e do esforço pessoal.

O letramento digital autodidata pode ocorrer com pesquisas aleatórias no google ou supervisionada por alguém com mais tempo de estrada e que, por isso, sinaliza previamente as armadilhas e de erros evitáveis.

Os desafios são imensos porque ninguém se torna profissional de elite sem esforço pessoal, alocação de tempo e de recursos orientados à melhoria do desempenho. Essa parte é com você. Só não espere que o coelhinho da Páscoa traga de presente a atualização digital embalada num ovo de chocolate. Talvez seja o caso de você se presentear com atualizações possíveis, viáveis e de baixo custo.

Longe de ser uma escolha, você já está embarcado no Processo Penal Onlife. Nessa trajetória de aquisição de competências, conte conosco da comunidade www.criminalplayer.com.br ou no insta @alexandremoraisdarosa. Boa Páscoa!

 

* argumento desenvolvido no Guia de Processo Criminal, edição 2024. Versão reduzida no Informativo Trincheira do Ibadapp.

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