Opinião

Sobre a legitimidade na execução de multas penais

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11 de abril de 2024, 16h18

Parece estranho que, mesmo com um Código Penal octogenário, ainda existam disputas sobre uma questão tão primária quanto é a legitimidade ativa das execuções penais relativas às penas de multa. Mas elas ainda existem. Se até pouco tempo havia séria dúvida quanto a quem incumbia executá-las — Ministério Público ou procuradorias da fazenda —, atualmente, essa dúvida é menor, graças a um amadurecimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Hoje, discute-se apenas se há, ou não, legitimidade subsidiária das procuradorias. Mas estaria faltando com a verdade quem dissesse que a matéria está pacificada.

A discussão é antiga. Remonta à louvável reforma de 1996, quando, para estampar uma obviedade na lei, o Parlamento quis inserir no Código Penal a impossibilidade de conversão da pena de multa em prisão. Digníssima pretensão de nossos legisladores. Mas como sempre se redigem as escusas nas mensagens presidenciais de veto, em que pese a boa intenção do legislador…, a fórmula empregada para implementar essa proibição foi a origem de um caos.

Quando o Código passou a prever que a multa seria “considerada dívida de valor” e que na sua execução se aplicariam as “normas da legislação relativa à dívida ativa”, o Brasil se tornou uma verdadeira Babel. Depois de 1996 ninguém sabia quem era parte legítima para executar as multas penais, qual era o prazo prescricional, qual era a lei aplicável ao processo da execução, qual o juízo competente, se seria possível inscrevê-la em cadastro de dívida ativa, qual era a sua natureza jurídica etc. Por todos os lados, a pena de multa estava aberta a dúvidas insolúveis.

Várias das disputas relativas à multa penal foram sendo pacificadas ao longo dessas quase três décadas de desavenças. Mas a questão da legitimidade ativa, apesar do esforço contínuo dos doutrinadores e dos tribunais, continuou sem solução.

Com o julgamento da ADI 3.150, a Suprema Corte fixou a natureza da multa penal: trata-se de sanção criminal, de pena, e não mera dívida pública. Como consequência, decidiu que o legitimado para executá-la seria o Ministério Público.

Mas anulou parte dos efeitos da própria decisão, permitindo que a Fazenda Pública executasse a multa em caso de inércia do MP. Ora, se a multa tem natureza de pena, se é resultado de uma prestação jurisdicional que provê uma pretensão punitiva do Estado, como poderia se dar uma legitimidade concorrente da fazenda pública? Questionamentos à parte, era essa a decisão.

Sobreveio, porém, antes do trânsito em julgado daquela ADI, a vigência da lei 13.964/2019, terrivelmente apelidada de “pacote anticrime”. E essa lei alterou a disposição do Código Penal sobre a pena de multa definitiva. Passou a prever que “a multa será executada perante o juiz da execução penal” (CP, artigo 51).

Era uma confirmação do que decidira a Suprema Corte. Mas era mais do que isso. Ao passo em que limitava a competência para execução das penas de multa ao juízo da execução penal, a lei limitava também a capacidade processual do seu exequente.

Quem deve processar

Spacca

Se agora a multa penal é claramente uma pena, e se o único Juízo competente para processá-la é o da execução penal, parece uma redundância dizer que a Fazenda Pública não tem mais legitimidade ad causam para executá-la — nem principal, nem subsidiariamente. Dizia-se, em razão disso, que a nova lei superou o decidido na ADI 3.150, e a questão voltou à Suprema Corte no RE 1.377.843-RS (tema 1.219 da repercussão geral), onde, embora pendente de julgamento, já consta o voto do ministro relator no sentido de que, “à luz do artigo 51 do Código Penal, na redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019, o Ministério Público é o legitimado exclusivo para a cobrança da multa criminal, a ser realizada na vara de execuções criminais, não cabendo indicar legitimidade subsidiária da Fazenda Pública”.

Era essa a intenção do legislador, expressa tanto na exposição de motivos do projeto encaminhado pelo Ministério da Justiça ao Congresso, onde se dizia que “no que toca à pena de multa (…), retira-se da Vara das Execuções Fiscais, onde as execuções penais se perdiam em meio a milhares de cobranças fiscais, passando-a para o juízo da execução penal” [1], como também no parecer do projeto de lei aprovado pelo Senado, que prevenia “a competência [sic] do Ministério Público para a sua execução”. [2]

Contrariamente à conclusão adotada pela Suprema Corte, porém, não parece juridicamente aceitável que, uma vez considerada a natureza penal da multa, possa-se admitir que as procuradorias da fazenda intervenham, de qualquer modo, em processos que serão, formal e materialmente, de execução penal.

No julgamento da ADI 3.150, para dar legitimidade subsidiária às Procuradorias da Fazenda, fez-se uma errada analogia com a ação penal privada subsidiária. Já que MP é titular da ação penal pública, mas, caso inerte, dá-se ao particular intentá-la em seu lugar, também no caso da execução, caso inerte o MP, justifica-se a sua substituição processual pelo estado ou pela União. Dizia-se.

O argumento, todavia, é um non sequitur, porque o direito do particular de promover a ação penal em caso de inércia do MP se restringe à fase de conhecimento da ação penal. Jamais existiu um direito do particular de executar a pena em substituição do Ministério Público. A legitimidade que o STJ deu às procuradorias — vide a revogada Súmula 521 — sempre foi um ornitorrinco jurídico: parte ação penal, parte execução fiscal, criava-se a esdrúxula figura da execução penal privada; o que o STF quis aprimorar, criando a execução penal privada subsidiária.

A execução penal é uma fase da ação penal, quando procedente. E é função do Ministério Público promover, privativamente a ação penal pública (CF, artigo 129, I), de modo que não há sobra de atribuição para terceiros.

Não se deve ignorar que a ação penal privada subsidiária da pública é uma garantia fundamental dos particulares (CF, artigo 5.º, caput e LIX) e que os estados e a União não são particulares, de modo que não existe ação penal subsidiária concedida a eles, pelo exato motivo de que as garantias fundamentais são oponíveis contra o Estado, e não em favor dele.[3] Se o Estado, portanto, não tem direito de promover a ação penal pública nem em sua fase de conhecimento em substituição do MP, por que haveria de ter o de promovê-la em sua fase de execução?

Seja como for, o ponto nodal da ADI 3.150 foi a definição da natureza jurídica da multa como sanção criminal. A questão da legitimidade das Procuradorias foi um excesso que a subida do RE 1.377.843-RS à Suprema Corte lhe permitirá decotar.

Daquilo que foi a questão principal da ação, resolvida como foi a natureza jurídica da multa penal, o resto se conclui por um exercício da razão.

Multa penal tem fundamento criminal

A multa penal é pena. Enquanto, por um lado, é lícito ao Estado tolerar a inadimplência de certas dívidas, é ilícito que, sem perdão, anistia ou indulto, deixe de aplicar pena. As dívidas públicas, pelo seu conteúdo patrimonial, são disponíveis, mas as sanções penais são indisponíveis.

As dívidas públicas têm fundamento obrigacional, mas a multa penal tem fundamento político-criminal. A inadimplência de uma dívida com o Estado prejudica o tesouro, mas o descumprimento de uma sanção penal lesa a confiabilidade do sistema judiciário — se não for correto dizer que lesa o próprio bem jurídico tutelado pela lei penal em razão da qual se originou a pena em si.

A multa não é um crédito, mas uma consequência imposta ao crime. Portanto, o não-pagamento da multa não é uma inadimplência civil ou administrativa, mas sim o descumprimento de uma sanção penal. Se, de um lado, o não-pagamento de uma dívida pública é uma questão de inadimplência, por outro, o não-cumprimento de uma pena é uma questão de impunidade.

Há ainda muitos inconvenientes processuais que decorrem da admissão de uma legitimidade subsidiária das procuradorias, porque o processo da execução terá forma e procedimento diverso conforme a pessoa que o promover. Ou seja, o sujeito processual, e não mais o objeto da lide, é que determina o processo.

A instabilidade e a insegurança que se seguem a essa volatilidade do procedimento, variável conforme o sujeito processual, são impróprias de qualquer sistema jurídico. A depender da iniciativa, o processo é distinto, as matérias de defesa são distintas, os recursos são distintos, as competências, a contagem dos prazos, as custas processuais etc. Tudo a variar com a conveniência dos sujeitos “capazes” para a relação jurídica do processo.

Estou plenamente convencido de que os inumeráveis inconvenientes decorrentes da possibilidade de uma legitimação subsidiária para as execuções das multas penais, somados à impossibilidade jurídica de admitir a participação de procuradorias da fazenda em processos de natureza essencialmente penal — opção legislativa muitíssimo transparente do legislador de 2019 —, permitem concluir pela superação do precedente da Suprema Corte na ADI 3.150.

Quanto à doutrina, para ser intelectualmente honesto, não poderia dizer que há unanimidade. Mas a posição amplamente majoritária dos penalistas segue o entendimento de que a Lei 13.964/2019 superou o precedente do Supremo, a exemplo do que lecionam os professores Gustavo Badaró, Cândido Rangel Dinamarco e Bruno Carrilho Lopes[4], Humberto Fabretti e Giapaolo Smanio[5], Renato Brasileiro[6], Guilherme Nucci[7], Luiz Fernando Rossi Pipino e Renee do Ó Souza[8], Rogério Sanches Cunha[9], Cleber Masson[10], Rogério Grecco[11], Cezar Bitencourt[12], André Estefam[13], Douglas Fischer[14], Damásio de Jesus[15] etc.

Que o mesmo entendam suas excelências, os ministros da Suprema Corte, com os votos de que, enfim, o nosso velho Código Penal repouse, com um problema a menos.

 


[1]/ Cf.: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/MJ/2019/14.htm.

[2] Relatório aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal no PL 6.341/2019, de relatoria do Ex.mo Sr. Senador Marcos do Val — item 1.2 do relatório.

[3] JUNQUEIRA, Gustavo. VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal — Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 765.

[4]DINAMARCO, Cândido Rangel. BADARÓ, Gustavo Henrique. LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Processo. 33.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2021, p. 528 — “(…) a execução da pena de multa continua a seguir o rito da lei 6.830, de 22 de setembro de 1980, mas a competência para sua execução será das varas das execuções criminais e, consequentemente, a legitimidade para sua propositura é do Ministério Público.”

[5] FABRETTI, Humberto Barrionuevo. SMANIO. Gianpaolo Poggio. Comentários ao Pacote Anticrime. 2.ª ed. Barueri: Atlas, 2021, p. 13-14 — “(…) com a redação atual do art. 51 dada pela Lei 13.964/2019, o responsável pela execução da dívida resultante da pena de multa não mais será a Fazenda Pública, mas sim o Ministério Público, que deverá realizar a execução perante o juízo da execução criminal.”

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Pacote Anticrime: Comentários à Lei 13.964/2019, artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2020, p. 28 — “Sepultando de vez toda a controvérsia em torno da legitimidade e competência para a execução da pena de multa (…) denota-se que, doravante, a execução da pena de multa deverá ser promovida exclusivamente pelo Ministério Público, e tão somente perante o Juízo da Execução Penal.”

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. 21.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 385 — “(…) não nos parece que, advinda essa alteração legislativa, deva permanecer a legitimação concorrente da Fazenda Pública para executar a multa penal. É atribuição do Ministério Público e, acima de tudo, um dever, motivo pelo qual não se concebe a hipótese, sob pena de falta funcional, que o seu membro não o faça, permitindo, então, que um órgão do Poder Público, ligado a questões cíveis, ingresse no cenário para a cobrança.”

[8] PIPINO, Luiz Fernando Rossi. SOUZA, Renee do Ó. Direito Penal — Parte Geral. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2022, p. 348 — “Para encerrar de vez o embate intelectual travado entre os Tribunais Superiores (STF e STJ), a Lei Federal no 13.694/2019 (“Lei Anticrime”) deu nova redação legal ao art. 51 do Código Penal e cravou expressamente na direção de que a multa será executada perante o Juízo das Execuções Penais, estabelecendo, pois, a legitimidade ativa do Ministério Público (única e exclusiva) para promover a sua execução.”

[9] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal — volume único. Parte Geral. 8.ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 595 — “Para adequar o texto legal à decisão do STF, a Lei 13.964/19 (Pacote Anticrime) alterou a redação do art. 51 do CP, que passou a prever expressamente a competência do juízo da execução penal, no qual, evidentemente, deve atuar o Ministério Público. Aboliu-se a legitimidade subsidiária da procuradoria da Fazenda Pública.”

[10] MASSON, Cleber. Direito Penal — Parte Geral. 14.ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020, p. 647 — “A execução deverá ser promovida exclusivamente pelo Ministério Público, perante o juízo da execução penal. O art. 51 do Código Penal não abre espaço à legitimidade subsidiária da fazenda pública.”

[11] GRECCO, Rogério. Curso de direito penal. Vol. 1. 24.ª ed. São Paulo: Atlas, 2022, p. 1.310 — “Hoje, com a atual redação do art. 51 do Código Penal pela Lei nº13.964, de 24 de dezembro de 2019, a discussão [sobre a legitimidade e a competência para a execução das multas penais] perdeu completamente o sentido, haja vista que o referido artigo menciona, expressamente, que a multa será executada perante o juiz da execução penal. Assim, o legitimado ativo para propor a ação de execução da pena de multa será o órgão de execução do Ministério Público, com atribuições nessa área, sendo competente o juiz da execução penal.”

[12] BITENCOURT, Cezar Roberto. Competência para execução da pena de multa a partir da Lei 13.964/19. Revista da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. n. 26 (2020), p. 294/312. Disponível: https://revista.defensoria.rs.def.br/defensoria/issue/view/2/6. Acesso: 3 abr. 2024 — “A execução ou a ‘cobrança’ da pena de multa integra a persecução penal, cujo único órgão do Estado com ‘competência’ para executá-la é o Ministério Público com assento no juízo criminal.”

[13] ESTEFAM, André. Direito Penal — Parte Geral. 11.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022, p. 668 — “Ocorre, porém, que a Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime) modificou a redação do art. 51, caput, do CP, estabelecendo que a execução da multa se dará no juízo da execução penal. Daí decorre, em nosso entender, que a atribuição para executá-la passa a ser exclusiva do Ministério Público, órgão que atua perante o citado juízo (não mais ‘prioritária’, como havia decidido o Supremo Tribunal Federal).”

[14] FISCHER, Douglas. Execução da pena de multa depois da Lei nº 13.964/2019: atribuição exclusiva do Ministério Público. Disponível em: https://bit.ly/3oaDm9g. Acesso: 3 abr. 2024 — “(…) depois da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, a execução da pena de multa deverá ser, necessariamente, perante o Juízo da Execução Penal, com atribuição exclusiva do Ministério Público, sendo descabido falar, desde então, em atribuição subsidiária da Fazenda Pública (…).”

[15] JESUS, Damásio de. ESTEFAM, André. Direito penal. v. 1. 37.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 567 — “Desde 23 de janeiro de 2020, com o início da vigência da Lei Anticrime, a legitimidade do Ministério Público passou a ser exclusiva (não mais prioritária), pois a execução, nos termos do dispositivo, sempre se dará perante o Juízo da Execução Penal.”

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