Interpretação gramatical

Uma palavra pode afetar destino de invasores do Congresso dos EUA

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28 de março de 2024, 8h23

No próximo mês, a Suprema Corte dos Estados Unidos começará a julgar o caso Fischer v. United States, em que se discute uma das acusações contra um invasor do Congresso em 6 de janeiro de 2021 — a de obstrução de um procedimento oficial. O tribunal vai analisar decisões conflitantes das cortes inferiores, que emperraram o processo por causa do significado de uma palavra: otherwise.

Oxford English Dictionary

Inteerpretação de juiz contraria o Oxford English Dictionary

De acordo com o Departamento de Justiça dos EUA (DoJ), Joseph Fischer (e cerca de outros 330 réus, incluindo o ex-presidente Donald Trump, cujos processos serão afetados pela decisão da corte) foi acusado de violar a lei 18 U.S.C. , cujo parágrafo 1512, subseção (c), é aplicável a:

“(c) Quem corruptamente…
(1) alterar, destruir, mutilar ou ocultar registro, documento ou outro objeto ou tentar fazê-lo, com a intenção de prejudicar a integridade ou disponibilidade do objeto para uso em um procedimento oficial; ou
(2) otherwise obstruir, influenciar ou interromper qualquer procedimento oficial ou tentar fazê-lo,
… deve ser multado de acordo com a lei ou ser preso por não mais de 20 anos ou ambos”.

A tradução mais comum de otherwise é “de outra forma”, o que significaria a culpa do réu. No entanto, juízes interpretaram diferentemente a palavra. O juiz federal de primeira instância, Carl Nichols, decidiu que otherwise pode significar “de uma forma similar”. Assim sendo, a palavra otherwise interliga a subseção 2 à subseção 1, e tudo passa a se referir a “registro, documento ou outro objeto” — e não à invasão do Congresso.

O juiz invalidou essa acusação em particular — mas manteve outras — com a justificativa de que era preciso, nesse caso, fazer uma “interpretação restritiva” do texto da lei. Mas o Tribunal Federal de Recursos do Distrito de Colúmbia decidiu, por 2 votos a 1, que era preciso fazer uma “interpretação extensiva” — do tipo: a lei incrimina apenas a bigamia, mas, por extensão, também se aplica à poligamia.

O voto dissidente foi do juiz Gregory Katsas, que se alinhou à decisão do juiz de primeira instância. Katsas escreveu que o Departamento de Justiça fez uma leitura duvidosa da palavra otherwise ao interpretar que significa “de uma maneira diferente”, quando deveria ser “de uma maneira similar”.

Isso significaria, segundo o juiz, que “a subseção (2) cobre apenas a obstrução, que é similar à destruição ou manipulação de um documento”. No caso, não cobre a ação violenta dos invasores do Congresso com o objetivo de interromper o procedimento de certificação da vitória de Joe Biden nas eleições de 2020.

Contra os dicionários

Segundo a juíza Florence Pan, que escreveu o voto vencedor, a interpretação do juiz Katsas da palavra otherwise está em desacordo com os dicionários.

“O Oxford English Dictionary define a palavra otherwise como de outra maneira ou maneiras; de uma maneira diferente; por outros meios; em outras palavras; diferentemente. O Black’s Law Dictionary a define como de uma maneira diferente; de outra maneira, ou de outras maneiras.”

O voto explica que, no entendimento da maioria, não há ambiguidade nos dispositivos do § 1.512 da lei. As subseções 1 e 2 se referem a infrações diferentes: a 1 proíbe a adulteração corrupta de “um registro, documento ou outro objeto, para interromper um procedimento oficial; já a 2 condena conduta corrupta que, de outra maneira, procura obstruir, influenciar ou prejudicar qualquer procedimento oficial ou tenta fazê-lo.

“Por isso, a acusação de obstrução de um procedimento oficial deve ser mantida. (…) É claro que o governo deve provar suas alegações no julgamento. Nesse caso, basta ao governo provar que o réu recorreu a meios ilegais (como o de atacar um policial), com o objetivo de beneficiar outra pessoa, o ex-presidente Donald Trump.”

Os cerca de 330 réus que esperam a decisão dessa questão pela Suprema Corte representam um quarto de todos os acusados pela invasão do Congresso.

Até o momento, 15 juízes federais de primeira instância presidiram julgamentos que continham essa acusação específica de violação da lei 18 U.S.C., § 1.512. Deles, 14 mantiveram a acusação. Apenas o juiz Carl Nichols, que preside o julgamento de Joseph Fischer, chegou a uma conclusão diferente, que foi sustentada pelo juiz de segundo grau Gregory Katsas.

Interpretação de corruptly

A Suprema Corte poderá esclarecer também a implicação da palavra “corruptamente” na história — uma questão que foi levantada pelo juiz Justin Walker, que aderiu ao voto vencedor.

Walker expressou preocupação com a possibilidade de a palavra corruptly ser interpretada de uma forma ampla demais. Para ele, isso poderia levar a um entendimento de que a lei da obstrução pode abranger “tentativas lícitas de influenciar um procedimento do Congresso, como protesto ou lobby”.

Para impedir esse resultado, Walker argumentou que a palavra “corruptamente” deve ser definida “de forma a significar que o réu agiu com a intenção de buscar um benefício ilegal para ele ou para alguma outra pessoa”.

Nesse caso, a lei se aplica especificamente aos réus acusados de obstrução de um procedimento oficial em benefício do ex-presidente Donald Trump, que tentou subverter o resultado das eleições de 2020 para se manter no poder.

A decisão da Suprema Corte deverá ser divulgada antes do encerramento deste ano judicial, em 30 de junho.

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