Senso Incomum

Olhe de novo: ainda o concurso pós-moderno do MP-SC (sempre pode piorar)

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28 de março de 2024, 8h00

1. O garçom que sabia mais do que o promotor — continuação

Antes que o assunto esfrie — afinal, notícia encobre notícia — volto ao tema neste avulso (vejam na sequência comentário sobre o livro Olhe de Novo). Minha coluna da semana passada (Chamem o sommelier: modelo TikTok de concurso desagrada ao MP-SC) tratou da trolagem que o arguidor pretendeu fazer com o MP-SC. A prova, com duzentas perguntas tipo “certo” ou “errado” é, para além dessa bizarrice, um exemplo de como não se deve fazer concurso público.

2. As perguntas sobre filosofia do direito

A parte final continha quatro perguntas “Sobre o Jusnaturalismo, o Juspositivismo e Hermenêutica Jurídica” (sic) e pedia que os candidatos julgassem os itens. Afinal, um concurso não pode deixar de falar em temas “teóricos” e “humanísticos”.

2.1. A pergunta sobre positivismo (?)

Não encontrei a questão sobre positivismo (ou todas eram? Contém ironia). A pergunta 197 trata de um enunciado falando de tipos de sanções. Há de se indagar: O que seria uma sanção menos que perfeita? Quem disse isso? Qual é o fundamento epistemológico disso? E qual é utilidade? Uma pergunta sem sentido. Nula totalmente. Tem menos valor do que perguntar sobre a teoria da graxa (já anulada pelo CNMP).

2.2. Kelsen e Reale

Já o enunciado da questão 198 dizia: Confirmando o posicionamento lógico e hipotético concebido por Hans Kelsen, o jusfilósofo brasileiro Miguel Reale afirma que “o que efetivamente caracteriza uma norma jurídica, de qualquer espécie, é o fato de ser uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória”.

Bom, Reale defende aquilo ali mesmo — mas o que se espera do candidato? Confirmar que o Reale disse isso mesmo? Avaliar se a “teoria da norma” oferece uma boa concepção de direito? Avaliar se Reale leu Kelsen corretamente? Faça-me o favor… Uma pergunta pegadinha.

2.3. A decoreba de jurisprudência sobre consumerismo

A pergunta 199 tratava de um problema de direito de consumidor e aplicação de antinomia. Um imbróglio que exigia uma espécie de decoreba de jurisprudência. Era para ser “a questão de hermenêutica” (ao que parece). O candidato devia ter decorado a posição do STF.

Incrível. Ora, se é para fazer questões sobre filosofia do direito e hermenêutica (onde está a questão sobre hermenêutica? Seria essa sobre antinomia e jurisprudência do STF?), melhor não fazer, se o modelo for o da prova. Aliás, questões sobre hermenêutica devem ter uma especificidade (uma pergunta “institucional”), pelo simples fato de que toda a prova é sobre interpretação. E não apenas uma que indaga sobre aplicação de tratado internacional — uma decoreba.

2.4. Kant, direito e moral e o que não foi perguntado

Já a de número 200 indaga sobre Kant: “Em sua clássica obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Immanuel Kant preconiza a separação entre direito e moral, apenas sob o aspecto formal, mas não material. A obediência do homem à sua própria vontade livre e autônoma constitui, para Kant, a essência da moral e do direito natural”.

Spacca

O ponto: o candidato deve “avaliar” as proposições, mas as proposições estão mal formuladas ou, no mínimo, incompletas.

Por exemplo, o tema dessa questão posta no enunciado está desenvolvido (também) em Crítica da Faculdade de Julgar (1790), Teoria e Prática (1793), Paz Perpétua (1795) e Metafísica dos Costumes (1797), bem depois da Fundamentação. Mas, como o candidato vai avaliar um enunciado feito desse modo? Procurando, encontrará em Kant essa temática. Por que obedecer? O que é moral? O que é direito? O que é restrição interna? O que é coerção? Todavia, aqui entre nós, tem um zilhão de questões sobre filosofia do direito para serem feitas e o arguidor vai lá atrás em Kant — e nessa especificidade?

Sugestão: o arguidor poderia perguntar sobre a relação da “questão moral-direito” em Kant com o “agir por princípio no direito versus agir por consequência”, por exemplo. Esse é o ponto central.

E relacionar isso com alguns dispositivos da Lindb, que são consequencialistas. Ou relacionar com o ativismo judicial. Ou com o “decido conforme minha consciência” (consciência v. direito?). Colocar enunciados bem explicitados, bem contextualizados e, então, perguntar “certo ou errado”. Mas aí já é exigir demais…porque aproximaria o concurso da realidade.

3. O rescaldo desse tipo de prova e o seu simbolismo

Pouco se salva da imensa e cansativa prova. Nem a parte mais simples, a da dogmática. Um conjunto de perguntas sobre exceções e decoreba de posições jurisprudências. Como conseguiram chegar a esse formato? Ou foi o ChatGPT?

Esse é o simbólico de todo o problema dos concursos públicos. Se o “sistema” nada aprender com esse episódio, então, de fato, institucionalizamos o fracasso.

Não evoluímos em termos de concursos. Ao contrário. O aumento do número de candidatos fez com que se passasse a “pós-modernizar”. Certo ou Errado, F ou V, decorebas, “lei seca” e perguntas-pegadinhas sobre exceções, mesmo nas provas escritas. Venho denunciando esse panorama há décadas.

4. A função dos concursos. Para que servem? Qual é o seu propósito? Porque temos de “desabituar” disso tudo!

Nesse contexto, qual é a função dos concursos? Alguns pontos para reflexão. Assim:

(i) Não se pode esquecer que as provas de concurso devem servir para selecionar os candidatos mais aptos para o serviço público.

(ii) Isso não se faz cobrando memorização passiva de informações aleatórias. E fragmentadas. Há muito tempo a pedagogia (sim, existe teoria para ensinar e verificar aprendizado!) abandonou o paradigma de um ensino meramente “conteudista”, passando a focar as competências e habilidades necessárias a um bom profissional.

(iii) Estou falando de capacidade analítica ao operar com conceitos, de reflexão crítica, de interpretar e argumentar, de compreender fenômenos sociais, de se pautar dentro dos aspectos éticos da profissão etc.

(iv) Além de selecionar verdadeiros autômatos para as carreiras jurídicas (e arrogantes – veja-se a questão sobre o promotor v. sommelier e o caso — real – recente de Alto Paraíso em que o promotor chamou a advogada de feia e os jurados se revoltaram), burocratas incapazes de refletir e agir criticamente diante das injustiças (um prato cheio para análises na linha de Hannah Arendt), essas provas mal elaboradas de concurso ainda causam um dano geral ao sistema jurídico como um todo.

(v) Tais questões vão parar no final dos capítulos de manuais usados em sala, muitas vezes reutilizadas nos cursinhos de preparação e também em provas dos alunos nas faculdades. Vão pautar as discussões em aula, e influenciar o modo como o próprio direito é ensinado. Que aula daremos para resolver provas assim? Se o professor tentar dar a aula correta, ele é que será visto como o errado pelos alunos! Assim o sistema todo se retroalimenta, num círculo vicioso.

(vi) Tudo isso é vitaminado “pela construção de realidades” por meio das redes sociais (tik tok, Instagram e X), que dão palco a subcelebridades e palpiteiros de toda ordem “ensinando” (sic) e “dando dicas” (sic) de concursos e oferecendo “facilitações” em vídeos de 30 segundos sobre complexos temas, reduzidos a platitudes que são aplaudidas por milhares de seguidores (que, em vez de lerem textos, regozijam-se dando clicks e coraçõezinhos para memes produzidos por atores jurídicos e correlatos).

Como falar a sério nesse “novo mundo” de instantaneidades? O resultado é “pura imitatio”. Um mundo de ficções que diz não à realidade.

5. “Mas, e se você pudesse restaurar seu sentimento de espanto em relação às coisas que você não sente ou percebe mais? E se você pudesse, até certo ponto, desabituar?”

Em outras palavras, o que estamos vendo – e esse concurso é apenas a ponta do iceberg – ocorre em face daquilo que Cass Sunstein e Tali Sharot chamam de “habituação”, no livro Olhe de Novo – O Poder de Perceber o que Sempre Esteve Lá (Look Again: The Power of Noticing What Was Always There)[1]: temos de desabituar (dishabituate).

Sharot e Sunstein mostram como as pessoas param de perceber o que há de mais maravilhoso em suas vidas… e também param de perceber o que é terrível. As pessoas se acostumam com o ar poluído, com a mediocridade, com as ficções, com as platitudes. Habitua(ra)m-se. Esse é o busílis. Por isso, o título deste item de número 5, retirado do livro Olhe de Novo: “Mas, e se você pudesse restaurar…”.

Em breve lanço o livro Ensino Jurídico e(m) Crise — Ensaio contra a Simplificação, em que abordo essa problemática que tomou conta de parte do ensino, da prática jurídica, da parte da doutrina e dos concursos: a perda do espanto com a simplificação.

Quando nos habituamos à simplificação, ao império do resumo, da lacração em redes sociais, ficamos menos motivados a lutar pela mudança (parafraseio aqui uma das máximas de Sunstein e Sharot).

Ensino jurídico e(m) Crise — Ensaio contra a Simplificação pretende fazer uma pequena radiografia do sistema de ensino e de concursos públicos. Nele, faço uma tentativa de desabituar, para usar o citado conceito.

Contra a simplificação, o livro vem acompanhado de um glossário com os conceitos de Positivismo, Realismo, Precedentes, Epistemologia (conceito muito precariamente manejado na doutrina), Criterialismo, Dogmática Jurídica, Ponderação e Ativismo-Judicialização. É a continuação de uma luta que travo há mais de 25 anos.

6. Portanto…

… desabituemo-nos desse mundo da pseudoconcreticidade, desse claro-escuro de que falava K. Kosik na sua Dialética do Concreto, em que perdemos a capacidade de…perceber! Por quê? Porque nos habituamos. Se as pessoas que vivem nesse mundo do simples, da platitude, da leitura de textos de até cinco linhas, da fama de 30 segundos, dos likes, tiques e toques e clicks, morassem debaixo da água, estariam tão habituadas que não se dariam conta…da água.

Olhe de novo, pois.  E responda: por que paramos de notar bons textos e paramos de ler bons livros? Por que trocamos as coisas sofisticadas pela simplificação? Por que aplaudimos platitudes? O que aconteceu com as pessoas? Os grupos de WhatsApp e os demais meios de redes servem apenas para autolouvações e postagens? Essa é a pergunta de um milhão de likes.

Habituamo-nos com postagens sobre postagens, que encobrem postagens, sobrando apenas drops. É só testar. Poste um texto de algumas páginas e receberá, como troco, um post que ignorará o texto, seguindo de outros que farão o mesmo com o post anterior. Moto contínuo. Platão foi o primeiro a denunciar isso tudo.

Dizia que as sombras eram sombras. Fosse hoje, a sua Alegoria da Caverna seria encoberta pela foto de alguém em um restaurante. E mais: parte considerável dos atores das redes sociais se pretendem críticos… Como a charge abaixo bem explica:

 

 


[1]  New York, Atria, 2024.

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