Opinião

É possível que o mesmo fato tenha respostas distintas no direito?

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26 de abril de 2024, 12h20

Não, não é possível que o mesmo fato tenha duas respostas diferentes uma da outra no sistema jurídico

No livro Unos mismos hechos, Marien Aguilera Morales enfrenta o problema das contradições nos juízos de fato em diferentes processos. Questiona a autora: pode um mesmo fenômeno ter duas apreciações e proporcionar resultados diferentes?

Por aqui, interessa-me discutir o fenômeno que se transformou em um “mito do dado” — e me permito não concordar com essa “lenda urbana”. Há que se questionar a normalização da tese “esferas diferentes, resultantes diferentes”.

Portanto, filosoficamente, a resposta é não.

O mesmo fato não pode receber do Estado-juiz soluções diferentes-contraditórias. Desde Aristóteles, sabe-se que uma coisa não pode, ao mesmo tempo, ser e não ser. Juridicamente, também não.

Essa resposta é bastante singela e encontra fundamento, a título ilustrativo, no Código de Processo Penal, em seu artigo 580, cotidianamente aplicado por todos os tribunais do país. É por isso, também, que existem os recursos e, da mesma forma, um conjunto de instrumentos destinados à uniformização da jurisprudência.

Com a incorporação, pelo sistema judicial brasileiro, dos institutos da reclamação, da repercussão geral, dos recursos fundados sobre divergência interpretativa, dos incidentes de assunção de competência e de demandas repetitivas, parece que já não se pode conviver com julgamentos discrepantes acerca dos mesmos fatos.

Spacca

Caso concreto

Existe um caso interessante sobre o tema pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal, em que dois cidadãos foram denunciados pelo Ministério Público pelos mesmos fatos (coautoria). Até aí, nada de novo. Ocorre que a acusação foi cindida no curso do processo após um dos acusados submeter-se ao foro por prerrogativa de função (FPF). O

réu sem FPF foi absolvido por insuficiência de provas. Essa absolvição transitou em julgado. No entanto, diante do mesmo contexto fático-probatório, o réu com FPF foi condenado no FPF (STF).

Assim, formou-se o imbróglio: dois réus acusados pelo mesmo fenômeno (fato delituoso) podem ter respostas jurídicas diferentes? Já que a absolvição do corréu não detentor de FPF é imutável e indiscutível (se o MP não recorreu, presume-se, inclusive, que se contentou com a absolvição!), por qual razão o Estado-Juiz poderia dar ao outro réu pronunciamento contrário sobre o mesmo caso tratando da mesma discussão (os mesmos fatos)? Eis a grande questão a ser posta em mesa.

Outros sistemas

Vejamos como essa fenomenologia vem abordada em outros sistemas jurídicos. O Tribunal Constitucional da Espanha tem um antigo e muito interessante julgado em que tratou de temática muito parecida: a colisão de duas esferas independentes (jurisdicional e administrativa).

No referido caso, a questão envolvia a absolvição de Don Tomas Rodrigues por um juiz ordinário após ampla apreciação das provas. Ocorre que o fundamento da acusação – um telefonema anônimo – também acarretou uma condenação administrativa. O réu foi punido administrativamente pelo mesmo fato que havia sido judicialmente absolvido.

Na sentença 77/1983, ao julgar recurso de amparo, o Tribunal decidiu pela impossibilidade do bis in idem processual, para além da clássica concepção do ne bis in idem material. O princípio de âmbito processual faz uma interdição da duplicidade de sanções – administrativas e penais – pelos mesmos fatos.

Mais do que isso, ele conduz à impossibilidade de, quando o ordenamento permitir uma dualidade de procedimentos — e esse é o caso brasileiro —, julgar e qualificar juridicamente os mesmos fatos de maneira independente (e, menos ainda, contraditória).

Qual o ponto fulcral em jogo? Houve desarmonia entre a apreciação dos fatos (hechos) por parte de duas instâncias do Estado. O Tribunal Constitucional anulou a multa administrativa e a decisão que a homologou. Deu razão ao recorrente e reforçou a importância da prevalência dos princípios constitucionais.

O contexto do julgamento do Tribunal Constitucional espanhol pode ser observado sob a ótica da dupla eficácia do ne bis in idem processual. A decisão assenta a proibição da duplicidade de sanções, que conduz também à impossibilidade de que, no plano jurídico, possam se produzir decisões independentes e contraditórias. [1]

Na Alemanha, o Tribunal Constitucional vem se posicionando no sentido de que até uma sentença de primeira instância pode, pela sua força jurídica substantiva, vincular a decisão do tribunal em outra demanda, “especialmente se as partes e o conteúdo que cria a lei forem idênticos e ambos os processos estão tão intimamente relacionados em termos de conteúdo que os requisitos de segurança jurídica e harmonia decisória não são atendidos, não permitindo uma resposta contraditória à mesma questão jurídica, que é decisiva em ambos os casos.” [2]

Veja-se que as decisões se contrapõem à dogmática jurídica do Brasil, segundo a qual as esferas são independentes entre si e, portanto, mesmo absolvido no crime, o réu pode ser condenado no âmbito administrativo (por exemplo). Esse brocardo ignora o fato de que uma decisão judicial absolutória gera presunção de ausência dos requisitos para a sanção, só podendo ser superada com novos e suficientes elementos de prova, sob pena de violação aos princípios da presunção da inocência, da igualdade e do ne bis in idem.

Dessa forma, diferentemente do que se diz, um advogado absolvido do crime de apropriação indébita por insuficiência de provas não pode ser condenado pelo Tribunal de Ética com base nos mesmos fatos [3].

E aí se encaixam os preceitos constitucionais: a coisa julgada. A verdade — e a coisa julgada transforma o preto no branco porque é pura imputação — não pode ser alterada, nem mesmo pela Suprema Corte, em se tratando do mesmo fato.

Se tivéssemos, mesmo, uma cultura de precedentes, essa questão estaria resolvida. Explico: há, nesse sentido, um importante precedente do STJ, oriundo de uma decisão de relatoria do ministro Sebastião Reis, no qual a Corte reconheceu que “[e]m hipóteses em que o único fato que motivou a penalidade administrativa resultou em absolvição no âmbito criminal, ainda que por ausência de provas, a autonomia das esferas há que ceder espaço à coerência que deve existir entre as decisões sancionatórias.” [4] Basta aqui entender o que é um precedente, uma holding e já teríamos a solução.

Insisto: os mesmos fatos não podem existir e deixar de existir para o mesmo Estado. Assim, ainda que se discuta a (in)dependência entre as esferas — administrativa e civil em relação à esfera penal — ou entre processos, parece não haver dúvidas que a autonomia neste caso é, ao menos, relativa. Isso se dá, concretamente, em virtude das exigências legais de coerência e integridade que caracterizam nosso ordenamento jurídico.

Um fato, duas decisões? Um fato, duas apreciações? Nenhum tribunal tem competência para valorar juridicamente fatos de forma diversa de uma decisão judicial transitada em julgado, seja pela segurança jurídica posta em causa, seja em decorrência da contradição lógica de assumir-se que um fato poderia ser e ao mesmo tempo não ser.

Eis o que o TC Espanha chamou de Unos Mismos Hechos. Eis aí uma boa polêmica: de Aristóteles ao precedente oriundo da decisão do ministro Sebastião Reis, passando pelo TC de Espanha, quais os caminhos que o STF trilhará? E nossa jurisprudência? E a doutrina?

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[1] Recentemente, ao julgar a Reclamação 41.557, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, a Suprema Corte destacou o liame entre as esferas penal e administrativa, bem como a necessidade da extensão de garantias individuais tipicamente penais para o espaço do direito administrativo sancionador. Nesse importante precedente, a Segunda Turma assentou que a independência entre as esferas é mitigada, em razão das exigências dos princípios da segurança jurídica e do ne bis in idem.

[2] BVerfG, Sentença de 3/2/1988. Rechtssatznummer RS0041157.

[3] Se uma esfera, examinando os mesmos fatos (los mismos hechos), disse que não conseguiu provar nada e isso transita em julgado, por qual razão o mesmo Estado poderá dizer o contrário, se os fatos e a investigação forem os mesmos? E, na prática, tem sido assim: a esfera que não a criminal busca produzir provas; depois isso acaba na outra esfera. Mas os fatos são os mesmos. Poder-se-ia discutir, no limite, se houve uma investigação totalmente independente dos mesmos fatos realizados por essa esfera. O que se tem é a mera repetição. Com resultados diferentes. E aí reside o problema. E quando é matéria criminal em instâncias diferentes em face de foro por prerrogativa de função, pouco importa o tipo de absolvição. Mesmos fatos, mesma resposta. Ademais, veja-se o precedente do Min. Sebastião Reis (AgRg nos EDcl no HC 601.533/SP – citado na sequência deste artigo). Ele é claro no sentido de que até mesmo independe o tipo de absolvição. Veja-se também a mitigação da “independência” das esferas (STF-Reclamação 41.557).

[4] AgRg nos EDcl no HC 601.533/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma STJ, DJe 1/10/2021

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