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Chamem o sommelier: modelo TikTok de concurso desagrada ao MP-SC

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21 de março de 2024, 8h00

O ‘novo’ modelo de concursos — a ‘pós-modernidade’: o direito vira picadinho

Circula nas redes… bom, como não circularia, se o próprio modelo de concurso para ingresso no Ministério Público de Santa Catarina (2024) é, ele mesmo, uma coisa pós-moderna (conceito fluído que não diz muita coisa)?

O MP-SC terceirizou o concurso para uma empresa. Que resolveu “trolar” com o próprio MP-SC. E isso gerou revolta em setores “ministeriais”. Explicarei.

O novo modelo “tiktokeado” ou “pós-modernizado” ou modelo “influencer” [1] já começa “diferente”, com a seguinte questão “instigante”, verbis:

“ATENÇÃO! Transcreva no espaço apropriado da sua FOLHA DE RESPOSTA (gabarito), com sua caligrafia usual, considerando as letras maiúsculas e minúsculas, a seguinte frase”: “Não há ordem sem a justiça”.

Que difícil, não? Será que alguém errou? Essa é uma pergunta “platitude”. Até influencer, essa nova classe de “filósofos”, acerta. Ah, era para saber se o candidato sabe escrever? Bom, aí a coisa aperta, mesmo. É mais grave do que pensei.

Na verdade, ainda que não seja facilmente compreensível o objetivo e o fundamento da questão, a frase não me parece adequada. O “a” está em demasia. Está definindo “a” justiça. A frase correta seria Não há ordem sem justiça. A menos que a palavra justiça estivesse em maiúscula.

Spacca

Mas, vamos em frente. O modelo da prova é problemático. Trabalha no dualismo “Certo e Errado”. E se preocupa com exceções. O conjunto da prova é poluído. Poluição estética e semântica. Mistura de assuntos. Parece direcionado a quem fez determinado tipo de cursinho de preparação. Pergunta a exceção da exceção e exige que o candidato seja memorizador.

O beach tennis e a carta de vinhos lida pelo promotor

A questão “que está nas redes” é a seguinte:

Ainda durante o curso de formação, após extenuantes partidas de beach tennis, um recém-empossado Promotor de Justiça do Estado de Santa Catarina convida sua noiva para um jantar romântico em um pomposo restaurante de Florianópolis. Após minuciosa análise da carta de vinhos, ele escolhe um caríssimo exemplar tinto e, ao verificar o rótulo do produto e ver sua altíssima classificação em um aplicativo em seu celular de última geração, preocupado com sua dieta e forma física, questiona veementemente o sommelier sobre a ausência de informações a respeito da quantidade de sódio e de calorias no rótulo do produto, em ofensa ao CDC. Exaltado, além de citar que tais informações seriam uma exigência da ANVISA, leu em voz alta o Art. 6º, III, da Lei consumerista. Muito educadamente, o sommelier responde que, de acordo com o entendimento pacificado pelo STJ, inexiste a obrigação legal de se inserir nos rótulos dos vinhos informações acerca da quantidade de sódio ou de calorias presentes no produto. (eu grifei)

Vamos lá. É uma nítida trolagem (para usar a linguagem das redes e, portanto, do próprio concurso) para com o MP-SC. Não sou contra ironias e sarcasmos. Nesta coluna uso ironias. Sei que muita gente do MP-SC ficou irritada e vai questionar a empresa e o arguidor.

Nem é necessário que os membros do MP façam nota ou processem a empresa. Acho que a empresa já está enrolada. Isto é, o cerne do problema é a própria questão, para além da “trolagem”.  A questão mais parece uma “tirada” de stand up, em que o estagiário levanta a placa com os dizeres “rizadas” (sarcasmo do “z”).

A pergunta da empresa encarregada do concurso requeria a resposta: o sommelier está correto. Ou seja, marque “certo” (C). Porque tem decisão do STJ. Grande sommelier. Dando lição! Professor Sommer Lier! Aqui uma questão: ingressos em carreiras públicas podem ser terceirizados? Isso é adequado? Quais condições epistemológicas que possuem os integrantes da empresa para fazerem uma aferição de pessoas que tratarão da liberdade e dos direitos? Nem é preciso falar dos episódios envolvendo membros do MP nos recentes anos…e que dizem respeito à própria democracia. Deixar uma empresa cuidar disso?

A questão “em questão” não é nada pedagógica. A situação apresentada não desafia o raciocínio do candidato para aplicar o direito ao caso concreto, apenas serve como pretexto para perguntar uma informação a ser memorizada passivamente (decisão de um tribunal). Isso não é recomendado em capacitações para elaboração de questões. Aqui o arguidor chumbaria. E a empresa também. Didática e pedagogia zero.

Aliás, o arguidor perdeu a chance de, em vez de trolar, perguntar: pode o STJ decidir contrariamente à lei sem fazer jurisdição constitucional? Em quais hipóteses o judiciário pode deixar de aplicar uma lei? Somente essa questão já valeria o concurso. Mas é “melhor trolar”…

O imaginário forjado nas redes sociais

Contudo, feita essa ressalva, a questão não deixa de segurar um espelho para o ministério público se enxergar. Brinca com a moda do beach tennis (vejam nas redes como há membros de carreiras jurídicas praticando esse esporte como autolouvação), com a arrogância em tratar mal um garçom (ou sommelier). E a gozação da prova é que o sommelier sabia mais…! Acho que o MP precisa falar sobre concursos…

O teor da questão é realmente indefensável, tanto isoladamente considerado, como em termos de padrões para o futuro. Se a moda pega, os certames estariam autorizados a adotar, doravante, linguagem de shows de stand-up comedy repletos de alfinetadas e gozações com as mais diversas carreiras jurídicas.

Exames da OAB poderiam virar espetáculos de sátira tendo como alvo juízes, promotores e delegados. Provas para a magistratura poderiam se estribar em gozações com advogados e por aí vai. Por isso, vejo esse caso como algo inadequado e pouco inteligente.

De todo modo, a questão mira em um estereótipo que se formou no imaginário das redes sociais, com concursados usando bolsa Louis Vuitton e coisas do gênero. Dito de outro modo: a questão-piada não “inventa” aquela imagem esdrúxula de agente público gourmetizado: apenas apela para algo que já existe no imaginário social, possivelmente como reflexo de comportamentos individuais e coletivos devidamente observados.

Há também outras questões-perguntas esquisitas. Vejamos:

Eis o enunciado: tendo em vista os princípios que norteiam a moralidade administrativa, julgue (sic) os itens a seguir.

  1. O princípio da eficiência foi introduzido na Constituição pela Emenda Constitucional nº 19/1998.

Assim. Seco. O candidato deveria dizer o quê? Julgar o quê? Que foi boa a emenda? Que foi ruim? Que a eficiência pode obnubilar a moralidade?  Não. Era só para dizer Certo ou Errado. Que tal?

  1. O STF, por meio da súmula vinculante, sedimentou o entendimento que as nomeações de administradores públicos devem obedecer aos princípios da moralidade e da impessoalidade previstos no artigo 37, caput , da Constituição brasileira.

Aqui o arguidor perdeu a chance de discutir a nomeação do filho do governador do estado de SC… Aplicável a súmula ao caso? Enfim…

O ponto: como venho denunciando há décadas, concursos viraram quiz shows. Esse caso acima relatado é mais um exemplo. Que ficou marcado porque um dos arguidores resolveu “trolar”.

A parte boa é que gerará reuniões e discussões. Precisamos falar sobre concursos públicos. Arrolo aqui links de textos que escrevi nos últimos anos sobre o tema (aqui, em 2012;  aqui, em 2014; em 2017, escrevi Concursos, resumocracia e pedagogia da prosperidade; e dezenas de outros textos). Cheguei a propor, em um texto, em um misto de reclamação e ironia, que se fizesse uma agência reguladora de concursos…!

No caso do concurso catarinense, faltou a clássica pergunta sobre os gêmeos xifópagos. Ou da teoria da graxa. Ou a do Caio e Tício que querem matar Mévio com veneno e, incompetentes, só usam meia dose.

O que os concursos deveriam fazer é uma “desidealização do Direito”. Um banho de realidade.  Como na pedagogia, não adianta você ensinar as crianças a escovar os dentes se a maioria não tem dentes; ou tratar de matemática somando maçãs se os alunos nunca comeram essa fruta. Ivo viu a Uva?

Uso aqui, alegoricamente, o que disse Paulo Freire — e isso se aplica ao que chamo de “desidealização” do Direito: “Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”.

Reprodução

Estes são os tempos da “pós-modernidade”. Tempos das redes. Em que todo mundo é feliz. Em que não há causas perdidas. E nem advogado em dificuldades. Tudo é divino e maravilhoso. E os concursos públicos são rentosos: a cada click aparece alguém dando dicas de como “passar em concursos”. Deu e está dando no que deu e no que dá.

Reprodução

Talvez a solução esteja em chamar o sommelier!!! Ele sabe!

A propósito, eu era — e sou — muito fã de Fausto Wolf. Ele escreveu o livro “Matem o cantor e chamem o Garçom”. Esse sabe!!!!!

 

 

[1] Trata-se de uma alegorização do tipo de prova diante das novas linguagens das redes sociais.

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