Opinião

PIC do Ministério Público após julgamento das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305

Autores

  • é advogado procurador municipal professor especialista em Direito Tributário pelo Centro Universitário 7 de Setembro (Uni 7) mestre em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

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  • É advogado criminalista associado ao Escritório de Advocacia Gonçalves Santos Advogados e pós-graduando (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino Pesquisa e Desenvolvimento (IDP) Brasília/DF.

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22 de abril de 2024, 15h15

Em maio de 2015, o STF (Supremo Tribunal Federal) fixou tese de repercussão geral no sentido de que o Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria e por prazo razoável, investigação de natureza penal, desde que respeitados os limites dos direitos e garantias individuais que assistem a qualquer suspeito, indiciado ou não, sob investigação do Estado [1].

Então, no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público, foi editada a Resolução nº 181/2017, que regulamentou o processo de instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal.

Em seu artigo 1º, a Resolução nº 181 estabelece que:

Art. 1º O procedimento investigatório criminal é instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e investigatória, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com atribuição criminal, e terá como finalidade apurar a ocorrência de infrações penais de iniciativa pública, servindo como preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal. (Redação dada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018)

Referida resolução ampliou as ferramentas de investigação à disposição do Ministério Público, de modo a favorecer sua atuação criminal a partir das previsões do artigo 127, caput, e do artigo 129, I, II, VIII e IX, da Constituição (CF/88), bem como do artigo 8º da Lei Complementar nº 75/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), do artigo 26 da Lei nº 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público) e do artigo 257, II, do Código de Processo Penal.

Embora legítimo o poder investigativo do Ministério Público, conforme bem destacou o ministro Gilmar Mendes, “essa atuação não pode ser exercida de forma ampla e irrestrita, sem qualquer controle, sob pena de agredir, inevitavelmente, direitos fundamentais” (RE n.º 593727).

Nas palavras do ministro Rogério Schietti Cruz, no sistema brasileiro, desde longa data, o juiz exerce na fase pré-processual da persecução penal o papel de controlar a legalidade das investigações encetadas pela polícia judiciária ou pelo Ministério Público e, sobretudo, de intervir nas providências que demandam a intervenção judicial, diante de medida que constitua reserva de jurisdição, por afetar a liberdade, o patrimônio das pessoas investigadas ou outro bem ou interesse constitucionalmente protegido [2].

Essa última característica da atuação judicial foi reforçada e potencializada com a introdução da figura do juiz das garantias, que, na formatação dada ao Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/2019, deixou claro que:

Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário […]

Ainda nas palavras do ministro Rogério Schietti Cruz, tal é a importância do juiz durante a fase pré-processual da persecução penal, seja ele o vindouro juiz das garantias, seja ele o juiz que atualmente exerce a jurisdição criminal, que, como dito, é o responsável por supervisionar o curso da investigação e assegurar que os direitos e as garantias do investigado sejam preservados (RHC nº 106.041/TO).

Reforçando a importância do controle judicial da investigação criminal, em agosto de 2023, na oportunidade do julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade 6.298 [3], 6.299, 6.300 e 6.305, o STF reconheceu a constitucionalidade do juiz das garantias e fixou diversos pontos acerca do direito processual penal brasileiro.

Na oportunidade, a Suprema Corte estabeleceu que todos os atos praticados pelo Ministério Público como condutor de investigação penal devem se submeter ao controle judicial, conforme trecho da ementa a seguir destacado:

[…] 4. Por unanimidade, atribuir interpretação conforme aos incisos IV, VIII e IX do art. 3º-B do CPP, incluídos pela Lei nº 13.964/2019, para que todos os atos praticados pelo Ministério Público como condutor de investigação penal se submetam ao controle judicial (HC 89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello) e fixar o prazo de até 90 (noventa) dias, contados da publicação da ata do julgamento, para os representantes do Ministério Público encaminharem, sob pena de nulidade, todos os PIC e outros procedimentos de investigação criminal, mesmo que tenham outra denominação, ao respectivo juiz natural, independentemente de o juiz das garantias já ter sido implementado na respectiva jurisdição […]

Para o STF, é essencial ao Estado democrático de Direito o controle judicial de todos os atos praticados nos Procedimentos Investigatórios Criminais (PICs) conduzidos pelo Ministério Público, pois, além de ser um poder-dever do vindouro juiz das garantias e, por ora, do juiz que já exerce a jurisdição criminal, ser informado sobre a existência de investigação é também um direito do investigado de não existir investigação sigilosa que o impeça de ser acompanhado pela defesa técnica [4].

Sobre o tema, em artigo [5] de fevereiro de 2023, na coluna “Limite Penal”, nesta Conjur, Alexandre de Morais da Rosa e Rômulo Gobbi do Amaral ressaltavam o cenário de perplexidade diante dos inúmeros casos alçados ao conhecimento do Poder Judiciário, retratando investigações conduzidas por muitos meses ou anos, em procedimentos obscuros, conduzidos sem nenhuma transparência no interior de gabinetes de membros do Ministério Público.

Verifica-se, então, uma preocupação da Suprema Corte em tentar superar esse cenário das investigações que não eram de conhecimento de ninguém, que não se sabia em que gaveta se encontravam, e que corriam por longos períodos distantes do essencial controle do Judiciário.

Para que este objetivo seja alcançado, como consequência da inobservância da necessidade de remessa dos procedimentos de investigação criminal para supervisão judicial, o STF destacou a possibilidade de se pronunciar a nulidade de tudo o que já foi praticado sem o devido controle judicial no caderno apuratório.

Para o Pretório Excelso, a supervisão judicial dos procedimentos de investigação criminal não tem o condão de afetar a autonomia do Ministério Público ou enfraquecer o protagonismo do órgão ministerial no exercício do poder investigatório, na medida em que seus atos não estão imunes à cláusula de reserva de jurisdição (artigo 5º, XXXV, da Constituição).

Não obstante, parece que o objetivo do STF com a necessidade de comunicação do PIC ao poder judiciário foi o de vincular o procedimento investigatório, desde o seu nascedouro, ao juiz natural, e não mais apenas na oportunidade em que o Parquet necessite realizar eventuais atos sujeitos à reserva jurisdicional, a exemplo de medidas cautelares reais (busca e apreensão, quebra de sigilos de dados e de comunicações) ou pessoais (prisão preventiva, monitoramento eletrônico, restrição do direito à liberdade de locomoção ou de comunicação entre investigados e testemunhas), frequentemente requeridas na persecução penal, dentre outras.

Parece que este foi o objetivo precípuo da Suprema Corte, uma vez que o legislador, por meio da Lei nº 13.964/2019, já havia vedado que juízes e tribunais continuassem decretando medidas cautelares de ofício [6].

O artigo 282, § 2º, do CPP é claro: “as medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público”.

Portanto, muito embora a decisão do STF não tenha fixado o exato momento em que o membro do Ministério Público terá de proceder com a comunicação do PIC ao juiz natural, ao que parece, essa comunicação não ficará restrita apenas aos casos em que o órgão ministerial proceda com o oferecimento de denúncia, solicite o arquivamento do PIC ou postule pelo deferimento de medidas cautelares no curso da investigação.

Supervisão judicial

Salvo melhor juízo, a atividade de supervisão judicial a ser realizada pelo juiz natural só será realmente efetiva se essa comunicação for efetuada juntamente com o ato de elaboração e publicação da portaria de instauração do PIC, que deve ser fundamentada, devidamente registrada e autuada com a indicação dos fatos que serão investigados pelo Ministério Público (artigo 4º, caput, da Resolução nº 181/2017).

Portanto, nessa nova sistemática estabelecida pela Suprema Corte, ao nosso ver, a portaria de instauração do PIC, por representar o primeiro ato oficial de condução da investigação ministerial propriamente dito, ganhou grande relevância, inclusive para fins de definição do juiz natural que ficará incumbido do controle da legalidade de todo o caderno apuratório e não mais apenas das matérias sujeitas à reserva de jurisdição.

Diz-se isso porque, nas lições de Eugênio Pacelli [7], a CF/88 desce às minucias em relação à distribuição da competência jurisdicional, prevendo a instituição de jurisdições especiais e comum, e, ao lado delas, a CF/88 cuidou também de vedar, expressamente, o que já era proibido implicitamente, ou seja: a instituição de juiz ou tribunal de exceção (artigo 5º, XXXVII, CF/88).

De acordo com Aury Lopes Jr [8]., sempre, para definição da “Justiça” competente, deve-se considerar a matéria em julgamento e começar a análise pela esfera mais restrita da Justiças especiais (começando pela Justiça Militar Federal, depois Estadual e, por fim, a Eleitoral), para, por exclusão, chegar às Justiças comuns (Primeiro a Federal), para só então chegar à Justiça mais residual de todas: a Justiça Comum Estadual.

Daí ser correto afirmar que o nosso juiz natural pode ser traduzido no conceito do juiz constitucional, cuja competência seja prevista no texto constitucional, anteriormente, portanto, à prática da infração penal, ou seja, aquele cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais [9].

Ministério Público fundamental

Nessa perspectiva, ao nosso ver, até mesmo em face do caráter inicial das investigações, parece essencial que o membro do Ministério Público fundamente na portaria de instauração do PIC, ainda que minimamente, a natureza jurídica dos bens jurídicos que se pretende tutelar, tendo em vista que interpretar a natureza dos bens jurídicos passíveis de lesão pelo crime que se pretende investigar, implica também na análise da competência do Juízo responsável para julgar o delito e, agora, para realizar igualmente o necessário controle judicial da investigação.

Por sua vez, pela regra da kompetenz-kompetenz [10], ao receber a comunicação encaminhada pelo Ministério Público, a partir da detida análise do material apresentado pelo Parquet, já em sede de supervisão da investigação, o juiz tem o poder-dever básico de aferir sua própria competência para exercer tal controle ou dele declinar, o que deve ser feito, salvo melhor juízo, por decisão devidamente fundamentada, para se prevenir até mesmo futuras nulidades como aquelas vistas na operação “lava jato”.

Nessa linha, antes da decisão da Suprema Corte, ainda que não fosse a regra, apareciam casos em que, infelizmente, se instaurava um PIC, por exemplo, onde a respectiva portaria indicava cinco fatos a serem investigados, não obstante, quando se precisava de algum elemento sujeito à reserva de jurisdição, ajuizava-se uma cautelar apontando que o objeto da ação só dizia respeito a apenas dois dos cinco fatos descritos na portaria originária do PIC.

Ocorre que, em não se obtendo naquele Juízo tudo o que havia pleiteado, se ingressava com uma cautelar diversa da inicial em outro juízo, agora versando, por exemplo, sobre os três fatos restantes previstos na portaria inaugural, sob a alegação de que para estes fatos havia sido instaurado um PIC específico e diverso do originário.

Com a decisão do STF estabelecendo a nova sistemática de controle em relação ao PIC conduzido pelo órgão ministerial, situações como a narrada acima certamente serão prevenidas na medida em que, se a portaria de instauração do PIC indica cinco fatos a serem investigados, o juiz natural ficaria vinculado ao controle da investigação daqueles cinco fatos, e eventuais outros conexos, ainda que fosse ajuizada uma ação cautelar com base em apenas dois deles, por exemplo, sendo justamente por este motivo, extremamente importante que o juiz natural receba a comunicação encaminhada pelo Ministério Público através de decisão devidamente fundamentada.

Ante o exposto, ainda que de algum modo se vislumbre certo grau de burocratização do procedimento investigatório criminal do Ministério Público com a nova sistemática estabelecida pelo STF, as garantias do investigado, a exemplo do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, CF), e o próprio Estado Democrático de Direito, foram reforçados ante a legítima outorga de poderes investigativos ao Parquet.

 


[1] RE n.º 593.727, Rel. Min. Cezar Peluso, red. do ac. Min. Gilmar Mendes, DJe de 8/9/15

[2] RHC n.º 106.041/TO, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 10/8/2020

[3] ADI 6298, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 24-08-2023, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n  DIVULG 18-12-2023  PUBLIC 19-12-2023

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 41.

[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-16/limite-penal-poder-investigatorio-ministerio-publico-pauta-stf/ Acesso em: 16/04/2024 as 09:35h.

[6] Giacomolli, Nereu José. Temas atuais de direito penal econômico (Série IDP –Linha pesquisa acadêmica): Editora Saraiva, 2021.

[7] Pacelli, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência. 13. Ed. São Paulo: Atlas, 2021. p. 193.

[8] Lopes, Junior, Aury. Direito processual penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 421.

[9] Neste sentido: Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Antonio Scarence e Eugênio Pacelli, dentre outros.

[10] Neste sentido: HC n. 5019932-97-2019.4.03.0000, rel. Des. Fed. José Lunardelli, Dje 20/11/2020 e HC nº 891537/CE, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 21/02/2024, DJe de 22/02/2024.

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